A repetição do termo “planeta” contribui para que o foco deixe de estar no que é o principal – a vida – e, sobretudo, no principal vetor que a ameaça: as atuais atividades humanas
Certamente veio para ficar o slogan lançado ao final do incisivo protesto de Emmanuel Macron na noite parisiense do 1º de junho contra a deserção dos Estados Unidos do Acordo de Paris, que havia sido anunciada horas antes do jardim rosa da Casa Branca por Donald Trump. De forma inédita para um chefe de estado, dirigiu-se em inglês, principalmente aos americanos, fechando seu pronunciamento com a frase “Make our planet great again” (Tornar nosso planeta grandioso de novo).
As virtudes dessa fórmula em termos de comunicação parecem estar acima de qualquer tipo de dúvida, especialmente por servirem de perfeito antídoto ao nacionalismo isolacionista escancarado na versão original de Donald Trump. Ou, pior ainda, na patriotada de seu refrão “America first” (“A América em primeiro lugar”).
Alguns dias depois, em Nova York, na conferência da Organização das Nações Unidas para o Oceano, focada na implantação do 14º ODS da Agenda 2030, surgiu até um balão de ensaio do tipo “Make our ocean clean again” (“Tornar nosso oceano limpo outra vez”), o que mostra que a tirada poderá render muitas outras utilíssimas metamorfoses.
Tudo isso parece excelente, mas uma revista como Página22 é um veículo dos mais oportunos para que se vá um pouco além do senso comum sobre tão bem-vindo slogan. Neste caso, para perguntar se, de uma forma das mais sub-reptícias, não poderia estar corroborando com certa ingenuidade sobre o desafio anunciado pela ambição do desenvolvimento sustentável. E já responder positivamente, pois ele reforça ao menos duas ilusões.
A primeira está no uso do termo planeta. Nada do que de pior possa ser feito a essa parte da natureza que foi batizada de meio ambiente ameaçaria, de fato, o planeta. Muito menos colocaria em risco sua “sobrevivência”, como por vezes se lê ou se ouve. Planetas são massas inertes que, por definição, nem vivem, nem sobrevivem. Mesmo que a humanidade resolva promover um apocalíptico inverno nuclear – ou, pior, mesmo que venha a adquirir a capacidade de extinguir todas as formas de vida – nem assim fará sequer cócegas no planeta Terra, que por muito tempo ainda continuará a girar em torno do Sol, mesmo depois que este se apague.
Com certeza seria um inútil excesso de rigor substituir o já consagrado uso do termo planeta pelo de biosfera, embora fosse bem mais apropriado, uma vez que é ela que realmente está sendo excessivamente agredida pela espécie humana. Diferentemente do planeta, é apenas seu finíssimo e delicadíssimo invólucro, exatamente aquilo que garante a possibilidade de existência de qualquer organismo, com óbvio destaque para o próprio sapiens.
Mesmo assim, é preciso torcer para que ao menos os leitores desta revista sempre levem em conta que – por mais que já possa estar legitimado por suas virtudes comunicativas – essa repetição do termo planeta contribui demais para que o foco deixe de estar no que é o principal – a vida – e, sobretudo, no principal vetor que a ameaça: as atuais atividades humanas.
A segunda ilusão que pode ser promovida pelo slogan lançado pelo jovem presidente da França, assim como por todas as suas possíveis metamorfoses, está no termo final “again” (“outra vez”, ou “de novo”). Pois ele carrega uma conotação totalmente irrealista de que a sustentabilidade poderia ser uma espécie de volta a alguma situação que já existiu. Justamente quando o real desafio é encontrar um caminho de coevolução no qual possa ser mantido razoável metabolismo entre a humanidade e o restante da natureza, mas de um modo que com certeza será absolutamente novo.
É claro que seria uma lástima perder a oportunidade de dizer com tanta contundência que a própria existência da América dependerá do futuro saneamento do oceano e de todo o restante da biosfera. Porém, também é duvidoso que se possa caminhar com mais firmeza nessa direção se forem estimulados sonhos de uma noite de verão com algum tipo de volta àquele remoto passado em que era muitíssimo inferior nosso poder de degradação da natureza.
O que realmente está em jogo é a própria descoberta de alguma inédita capacidade de recuperação ecossistêmica, e isso só poderá ser bem diferente do que quaisquer das realidades históricas passadas. Dizer apenas algo como “tornar sã nossa biosfera”, seria o mais correto, mas não emplacaria.
No fundo, tanto entusiasmo com o excelente slogan lançado por Macron só confirma que em termos psicossociais ainda se está lá no fundão do Holoceno, quando já se tornou urgentíssimo correr para a janela ver o Antropoceno começar. É por essa e várias outras razões que convido os distintos leitores a também me enviarem críticas ao artigo “A primeira utopia do Antropoceno”, que está na mais recente edição online da revista Ambiente & Sociedade (vol. 20, nº 2).
JOSÉ ELI DA VEIGA é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de Para entender o desenvolvimento sustentável (Ed. 34: 2015). www.zeeli.pro.br