Além de estimular os excessos do consumo, o progresso tecnológico contemporâneo põe em risco a democracia, ao concentrar o controle da informação
A revolução digital é responsável por algumas das mais importantes e promissoras realizações rumo ao desenvolvimento sustentável. A energia solar deverá responder por quase um quarto da geração global de eletricidade em 2040, chegando a 29% do total em 2050, segundo importante relatório recente. O mesmo relatório prevê que os carros elétricos serão 35% do transporte rodoviário individual em 2035 e dois terços do total em 2050. Estes são apenas dois exemplos, mostrando a ciência e a tecnologia como condições necessárias para que se altere de forma radical a maneira como as sociedades contemporâneas usam a energia, os materiais e os recursos bióticos dos quais dependem. Mas, nem de longe, são condições suficientes.
O rumo do progresso tecnológico contemporâneo ameaça os valores básicos do desenvolvimento sustentável em ao menos dois sentidos. O que está em jogo é o cerne do crescimento digital dos últimos dez anos, expresso na inteligência artificial, na computação em nuvem, no aprendizado das máquinas e na utilização sistemática e gratuita, por parte dos gigantes digitais, da massa de dados que cada um de nós lhes oferece involuntariamente e que são a base de sua riqueza e de seu crescente poder.
É com base no rastreamento e na capacidade de analisar e mimetizar as informações transmitidas à rede por meio dos mais diferentes dispositivos digitais (mas, sobretudo, pelos smartphones) que se aperfeiçoam os sistemas de reconhecimento facial e de voz, as traduções e, sobretudo, o conhecimento minucioso e individualizado dos comportamentos, das opiniões, das reações e das aspirações das pessoas. E aqui reside a primeira ameaça ao desenvolvimento sustentável.
Ficou célebre a tirada de John Wanamaker (1838/1922), considerado o pioneiro do marketing contemporâneo: “Metade do dinheiro que eu gasto com publicidade é desperdiçada. O problema é que não sei qual metade”. Desde o surgimento dos smartphones em 2007, essa ignorância foi em boa medida superada e, cada vez mais, a publicidade vem deixando de ser genérica e converte-se em mensagens individualizadas e customizadas.
Mais que mudança na publicidade, a inteligência artificial está dando lugar à emergência do que o recém lançado livro de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee chama de economia de plataforma e cujos exemplos mais notáveis são o Uber, o AirBnb, a chinesa Alibaba, o Waze e todas as que crescem não pelos ativos materiais de que dispõem, mas pela capacidade de utilizar a internet para reunir sob seu comando uma quantidade crescente de atividades econômicas e de serviços. As plataformas respondem a uma lógica segundo a qual o vencedor leva tudo: se na sua cidade houver seis serviços semelhantes ao Waze, dificilmente algum deles poderá funcionar.
A agilidade das plataformas e o conhecimento individualizado das demandas de consumo de cada um de nós resulta numa capacidade inédita de pressão para ampliar o consumo. Com isso, não só o valor das empresas-plataforma tende a aumentar (tanto mais quanto maior for sua difusão), mas, com ele, o próprio consumo.
A chinesa Alibaba, que não detém estoques, frotas de caminhão e outros ativos típicos dos atacadistas convencionais, atende 300 milhões de pessoas por mês e vale hoje mais que a Walmart. Na celebração chinesa do Dia dos Solteiros (11 de novembro de 2016) a Alibaba vendeu quase US$ 18 bilhões, três vezes o total combinado do Black Friday e do Cyber Monday nos Estados Unidos.
A segunda ameaça aos valores básicos do desenvolvimento sustentável representada pelos rumos da revolução digital nos últimos dez anos, é fundamentalmente política. A pergunta que dá título a um artigo recente de John Elkington não poderia ser mais pertinente: “Google poderia tornar-se Deus”? Não se trata apenas de seu impressionante poder econômico e dos impactos deste poder sobre a concorrência. O mais importante é o conhecimento e, a partir daí, o controle sobre a própria vida dos indivíduos a que as tecnologias digitais contemporâneas estão dando lugar.
Mas será razoável, e compatível com a própria democracia, que uma empresa privada detenha de forma tão concentrada o controle e a capacidade de manuseio dessas informações? Responder a esta pergunta exige que se discuta a proposta do especialista Evgeny Morozov: “Todos os dados de um país deveriam estar em um fundo de dados, do qual todos os cidadãos seriam proprietários… Quem quiser construir novos serviços a partir daí terá que fazê-lo em um ambiente competitivo, altamente regulamentado e pagando uma parcela de seus lucros por usá-los”.
Pode parecer tímido, mas seria o início de uma transição significativa para democratizar a sociedade da informação em rede e, portanto, para o desenvolvimento sustentável.
Ricardo Abramovay é professor sênior do Programa de Ciência Ambiental (Procam) do Instituto de Energia e Ambiente da USP – www.ricardoabramovay.com @abramovay