Eventos climáticos extremos, como secas e tempestades, estão se tornando mais frequentes nos últimos anos, e seus efeitos sobre a segurança alimentar e a saúde básica no mundo já estão sendo sentidos, principalmente pelos mais pobres e vulneráveis
Nos últimos meses, Bangladesh tem convivido com crises humanitárias sucessivas que pressionam as condições de vida já delicadas em um país empobrecido. Ao mesmo tempo em que sofrem com os efeitos da crise social que se alastra na vizinha Myanmar contra a minoria muçulmana Rohingya, que foge às centenas de milhares de pessoas para o país, os bengalis precisam lidar com os efeitos de um clima cada vez mais instável.
As ondas de calor e as tempestades tropicais que atingem a região do sul da Ásia vem se tornando mais fortes a cada ano. Neste verão, as regiões central e sul de Bangladesh passaram por altas temperaturas, com sensação térmica na casa dos 50 graus Celsius. Na região, o calor chegou a causar mortes na Índia e no Paquistão em 2017.
Da mesma forma, as chuvas de monção também ganharam força nos últimos anos. De acordo com o departamento meteorológico de Bangladesh, em apenas um dia de agosto passado, o equivalente a uma semana de precipitação média desabou sobre partes do país em um intervalo de poucas horas. No final do mês passado, 1/3 do território bengali estava debaixo d’água, matando 142 pessoas e desalojando 8,5 milhões (saiba mais).
Junto com as chuvas mais intensas, vieram também tempestades tropicais mais fortes. Em maio passado, o ciclone Mora causou grande devastação no país, destruindo mais de 52 mil casas e deixando 260 mil pessoas sem teto. No total, estima-se que 3,3 milhões de pessoas foram afetadas de alguma forma pelo ciclone, inclusive refugiados Rohingya ao longo da fronteira com Myanmar.
Os desastres seguidos evidenciam a vulnerabilidade climática de Bangladesh e, num plano mais geral, mostram como a maior incidência de eventos climáticos extremos nas próximas décadas pode afetar as condições básicas de vida de bilhões de pessoas em todo o mundo, causando ou piorando crises humanitárias cada vez mais dramáticas e complexas no futuro.
A ameaça vai muito além da destruição material e das perdas humanas causadas por furacões ou enchentes: a segurança alimentar e a saúde básica das pessoas estão sob risco crescente em um cenário climático instável como o que desenha para as próximas décadas.
Um relatório da revista médica The Lancet aponta que a mudança do clima pode minar os ganhos obtidos globalmente nos últimos 50 anos em matéria de saúde. Eventos climáticos extremos, como ondas de calor, enchentes, e secas terão impacto direto sobre as condições básicas de vida ao longo deste século, particularmente a disponibilidade de alimentos para um mundo cada vez mais populoso – e a situação atual já é bem problemática.
A fome avança
De acordo com relatório sobre a situação da fome no mundo publicado por agências das Nações Unidas na última sexta (15/9), a mudança do clima já desempenha um papel importante nas condições de nutrição e alimentação em regiões vulneráveis. Depois de uma década de declínio, a fome no mundo aumentou em 2016, afetando mais de 810 milhões de pessoas – 38 milhões a mais que no ano anterior. Segundo a organização, a maior ocorrência de secas e enchentes está exacerbando conflitos armados e recessão econômica em locais como a África subsaariana e a Ásia Central.
“Eventos associados à meteorologia – em parte ligados à mudança do clima – afetaram a disponibilidade de alimento em muitos países e contribuiu para o aumento da insegurança alimentar”, apontou o relatório (tabela abaixo). “Problemas de insegurança alimentar aguda e desnutrição tendem a ser magnificados quando desastres naturais como secas e enchentes agravam as consequências dos conflitos. A ocorrência conjunta de conflitos e desastres naturais associados ao clima provavelmente aumentará com a mudança do clima, já que ela não apenas magnifica problemas de insegurança alimentar, mas também contribui para uma nova espiral descendente para mais conflitos, crises prolongadas e fragilidade contínua”.
Por conta da falta de chuvas, a situação humanitária na África subsaariana, particularmente nas regiões do Sahel e no chamado “Chifre da África”, na ponta oriental do continente, é dramática.
No Sahel, a estiagem que se arrasta há seis anos afetou diretamente a subsistência de milhões de pessoas, reforçando tensões políticas, econômicas e sociais em países afligidos por conflitos armados, como Chade, Mali e Niger. As agências humanitárias que atuam na região estimam que cerca de 30 milhões de pessoas sofrem com insegurança alimentar na região, sendo que 12 milhões já estão em situação crítica.
A pobreza extrema, a insegurança alimentar e a violência na Sahel acabam sendo reforçadas pela falta de chuvas e pelas sucessivas safras fracassadas, o que restringe ainda mais o acesso à comida e aprofunda dificuldades estruturais para a subsistência local.
Parte importante da degradação das condições de vida no Sahel acontece na bacia do Lago Chade (saiba mais), outrora um dos maiores corpos d’água do planeta, mas que perdeu quase 95% de seu volume de água nos últimos 50 anos. Dentre os fatores responsáveis por esta redução, a mudança do clima tem um peso relevante: o cinturão de chuvas tropicais que incidia sobre o lago se moveu para o sul nas últimas décadas, resultando em menor precipitação sobre a bacia do Chade e acelerando seu esvaziamento.
Sem a água do Lago Chade para abastecer as pessoas e irrigar as lavouras, a subsistência de 20 milhões de pessoas está em risco, com casos de desnutrição crônica e fome. A falta de água e de comida é agravada pela crise de refugiados nigerianos que fogem da violência brutal do grupo terrorista Boko Haram, responsável pela morte de 20 mil pessoas e pelo deslocamento forçado de 2,3 milhões desde 2009, e buscam refúgio no entorno do Lago Chade.
Na Somália, o cenário também é crítico. Castigada por décadas de violência e destruição material e humana, o país vem sofrendo desde 2015 com mais uma forte seca que afetou a produção agrícola no interior, particularmente nas regiões de Puntlândia e Somalilândia (na ponta do continente), além de Jubalândia (no sul do país). Como em outras ocasiões, a seca reforçou as tensões políticas e econômicas que dividem a Somália desde o final dos anos 1980, intensificando o conflito armado local.
O fenômeno El Niño de 2015-16 (saiba mais) agravou um cenário de estiagem que arruinou as lavouras, reduzindo a disponibilidade de alimentos para uma população que já sofre com problemas persistentes de desnutrição. Estima-se que 3,2 milhões de somalis estão sofrendo hoje com efeitos diretos e indiretos da seca.
Até junho passado, as Nações Unidas apontavam que mais de 730 mil pessoas estavam desalojadas por conta da seca na Somália – deste total, quase 65% era composto por jovens com até 18 anos de idade.
A crise atual na Somália acontece apenas seis anos depois da última grande estiagem, que também devastou o interior do país, resultando na morte de 250 mil pessoas, segundo dados do Escritório das Nações Unidas para Coordenação Humanitária (OCHA, sigla em inglês).
Na vizinha Etiópia – famosa nos anos 1980 pela profunda crise humanitária que inspirou músicos e artistas para a realização de concertos beneficentes como o Live Aid, em 1985 (saiba mais) -, a seca também ameaça a subsistência humana local. De acordo com a ONG Norwegian Refugee Council (NRC), mais de oito milhões de pessoas (incluindo cerca de 800 mil refugiados somalis ao longo da fronteira) estão em situação de necessidade pela falta de água e comida.
O país também sofreu bastante com os efeitos do El Niño entre 2015 e 2016, com dificuldades que persistem até hoje. Na última temporada chuvosa, entre a primavera e o verão no hemisfério norte, a precipitação média ficou novamente abaixo da média, particularmente no sul e leste do país, o que intensificou as condições de seca nos últimos meses.
Os riscos para segurança alimentar na América Latina
Pelas circunstâncias socioeconômicas e climáticas, a África e a Ásia acabam sofrendo mais fortemente com os efeitos da instabilidade do clima sobre a disponibilidade de alimento para a população, mas o cenário latino-americano não é melhor. Seguindo a tendência global, a fome na América Latina e Caribe avançou ligeiramente em 2016. De acordo com as Nações Unidas, o percentual de pessoas subnutridas na região aumentou de 6,3% para 6,6% no último ano, o maior índice desde 2011. No continente, mais de 40 milhões de pessoas não tem acesso suficiente a alimentos.
Na região, a fome está mais associada às condições socioeconômicas do que à questão climática e a produção e disponibilidade de alimento. Parte importante da piora dos indicadores regionais se deve à grave crise político-econômica que afeta a Venezuela nos últimos dois anos, que reduziu a disponibilidade de alimentos e de recursos para sua compra por parte dos venezuelanos. No país, a taxa de desnutrição passou de 10,5% para 13% na última década, saltando de 2,8 milhões para 4,1 milhões de desnutridos – sendo que os números não incluem dados de 2017.
Porém, a maior ocorrência de secas e outros eventos climáticos extremos poderá colocar a América Latina em uma situação de insegurança alimentar nas próximas décadas. “O aumento da incidência da seca e de fenômenos meteorológicos extremos, entre outros efeitos da mudança do clima, apontam para consequências negativas na produção alimentar que serão cada vez mais graves após 2030”, indicou Crispim Moreira, especialista brasileiro da Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em entrevista à Agência EFE.
Citando dados do relatório “Estado Mundial da Alimentação e da Agricultura 2016”, publicado pela FAO no final do ano passado, Moreira aponta o Brasil como um dos países com maior potencial de ser afetado, dado o tamanho do setor agropecuário. No entanto, a situação deverá ser mais delicada em outros países da região, mais vulneráveis aos efeitos da mudança do clima. “Três dos cinco países com maior risco de enfrentar desastres vinculados ao clima estão na América Latina e no Caribe – Honduras, Haiti e Nicarágua”, disse Moreira.