Sem “acidentes de percurso”, a Conferência do Clima de Bonn conseguiu fechar entendimentos importantes para o futuro do Acordo de Paris, mas procrastinação em temas fundamentais para viabilizá-lo, como ambição imediata e financiamento, irrita e preocupa ambientalistas e países pobres
De Bonn, Alemanha – Às seis da manhã de sábado (18/11), três horas no horário de Brasília, quase 12 horas além do prazo formal, Frank Bainimarama, primeiro-ministro de Fiji e presidente da Conferência do Clima de Bonn (COP 23), bateu o martelo pela última vez e concluiu mais uma rodada de negociação internacional sobre mudança do clima.
Entre jornalistas e observadores credenciados pelas Nações Unidas, um público pequeno permaneceu acordado na madrugada com os negociadores, bem distante das mais de 20 mil pessoas que participaram da COP 23 nas últimas duas semanas na capital da antiga Alemanha Ocidental. Isso porque, a despeito dos dramas que sempre caracterizam as horas finais de uma Conferência do Clima, não havia grande suspense na conclusão dos trabalhos em Bonn – boa parte das decisões tinha sido tomada nos dias anteriores.
Assim, sem surpresas, a COP 23 encerrou-se fechando entendimentos importantes para o processo de implementação do Acordo de Paris, como a estrutura do chamado “livro de regras” do tratado e a formalização da proposta Talanoa – diálogo participativo voltado para aumentar o nível de ambição das metas nacionais de redução de emissões definidas há dois anos.
No entanto, ao mesmo tempo que questões técnicas avançaram em Bonn, itens fundamentais para tirar o Acordo de Paris do papel e dar mais efetividade aos seus compromissos e instrumentos continuaram sendo pontos problemáticos na COP 23. Questões como perdas e danos, ações de redução pré-2020 (aquelas que serão realizadas antes do início do período de aplicação do Acordo) e financiamento de medidas de mitigação e adaptação à mudança do clima em países pobres, que tradicionalmente contrastam nações desenvolvidas e em desenvolvimento, foram motivo de tensões e declarações públicas mais ásperas de negociadores nas últimas semanas.
Regras para o Acordo de Paris
De caráter mais técnico do que político, a Conferência do Clima de Bonn tinha objetivos mais modestos do que encontros anteriores. O principal ponto na agenda era a definição de elementos para fundamentar a construção do “livro de regras” para orientar os países durante o processo de implementação do Acordo de Paris.
Na Alemanha, os negociadores conseguiram chegar a um entendimento sobre uma estrutura básica para esse documento, que será esboçado com mais detalhamento ao longo do próximo ano. A ideia é que os negociadores cheguem a uma versão final dele antes da Conferência do Clima de Katowice (COP 24), que acontecerá em dezembro de 2018, na Polônia.
Outro ponto importante, também com vistas à próxima Conferência, era a proposição do modelo de diálogo participativo sobre ambição e ações contra mudança do clima, um item previsto no texto do Acordo de Paris. O foco desse diálogo é permitir uma discussão pública ampliada sobre possibilidades para aumentar o grau de ambição dos compromissos nacionais submetidos em 2015 para fundamentar o tratado.
Essa questão é importantíssima, pois é notório que as reduções de emissões acordadas pelos países no texto do Acordo são insuficientes para conter o aquecimento do planeta em 2 graus Celsius até 2100. Um estudo do Climate Action Tracker apresentado em Bonn na semana passada revisou os números e apontou que, se as contribuições nacionais foram implementadas plenamente, o aumento médio da temperatura global até o final deste século ficará em torno dos 3,2 graus, bem acima da meta de Paris – abaixo de 2 graus, com vistas a mantê-lo até 1,5 grau.
Diálogo participativo: a proposta Talanoa
A presidência da COP 23, exercida pelo governo de Fiji, apresentou em Bonn a proposta Talanoa para o diálogo participativo, inspirada em costumes tradicionais de compartilhamento de histórias, ideias e capacidades entre as pessoas. Pela propostas, os países realizarão um ciclo de discussões ao longo do próximo ano sobre possibilidades para ampliar o grau de ambição das metas nacionais dentro do Acordo de Paris. Ao mesmo tempo, para aumentar a transparência e a confiança entre as Partes, os governos deverão apresentar relatórios de atividades e informações para apoiar e orientar o diálogo.
“O diálogo Talanoa pode ser uma ferramenta poderosa para que o Acordo de Paris ganhe força”, avaliou Mohamed Adow, da Christian Aid, durante coletiva de imprensa na sexta passada (17/11) na COP 23. “O Acordo não é um documento estático, com metas definitivas. Ele é vivo, dinâmico, e o Talanoa nos permitirá casar compromissos e metas”.
“Para as pessoas em Fiji, o Talanoa não é apenas uma discussão, mas um processo político que depende da participação das pessoas que são importantes [em uma dada questão]”, explicou Raijeli Nicole, da ONG Oxfam, que alerta para a importância que os líderes (no caso, Fiji e Polônia, a anfitriã da próxima COP) terão no desenrolar das discussões em 2018. “O líder tem o papel de conduzir a discussão, de buscar incluir aqueles que importam, que estão sendo afetados pela mudança do clima. O resultado precisa ser justo para essas pessoas”.
Nas últimas horas da COP 23, a proposta Talanoa acabou sendo um dos obstáculos para o entendimento final. Isso porque muitos países consideraram que, da forma como estava desenhada, eles seriam forçados a indicar novas possibilidades de metas nacionais já em 2018. A presidência de Fiji conseguiu contornar as desconfianças e manter o texto original, com o argumento de que ele dá mais espaço para aumentar a ambição dos países.
Ambição pré-2020 e a rebelião dos países em desenvolvimento
Se a questão da ambição estava na mesa de discussões de Bonn desde o começo, ela se resumia temporalmente apenas a partir do início do período de implementação das ações e metas do Acordo de Paris, o ano de 2020. Para desgosto de especialistas e de representantes de países em desenvolvimento, a agenda da COP 23 nem sequer tratava da ambição de medidas de mitigação antes de 2020.
Essa negligência não passou batida. Na 1ª semana da COP 23, os países em desenvolvimento pressionaram a presidência da Conferência e os representantes das nações desenvolvidas pela inclusão da ambição pré-2020 na agenda de discussão do encontro, um conflito que consumiu praticamente a primeira metade do calendário de Bonn.
“Precisamos de ambição desde agora, para que entremos em 2020 partindo não de uma velocidade zero, mas de um ritmo de ação mais alto”, afirmou o embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho, chefe da equipe negociadora brasileira.
Um ponto destacado pelos países em desenvolvimento durante a Conferência de Bonn era o fato de que a Emenda Doha, que estabelece um segundo período de aplicação dos compromissos do Protocolo de Kyoto entre 2012 e 2020, ainda não entrou em vigor pelo fato de não ter atingido o número necessário de ratificações. Mesmo sem ter compromissos vinculados no Protocolo, o Brasil é um dos países que ainda não ratificou a Emenda.
Ao final, os negociadores conseguiram chegar a um entendimento básico para definir ambição pré-2020 como item permanente na agenda de discussão das Conferências do Clima até o início do período de aplicação do Acordo de Paris. A Secretaria Executiva da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) comprometeu-se a incentivar os países a acelerar o processo de ratificação da Emenda Doha.
Financiamento para ação climática, o “eterno nó”
Os avanços técnicos contrastam com a dificuldade latente dos negociadores conseguirem se entender com um tema crucial para viabilizar qualquer medida de mitigação e adaptação à mudança do clima: o financiamento. Como tem sido tradicional em Conferências do Clima, a questão financeira novamente despertou tensões acentuadas entre os países, contrapondo nações desenvolvidas (potenciais doadores) e em desenvolvimento (potenciais receptores de recursos).
Na COP 23, diferentemente das Conferências anteriores, não houve grandes anúncios de compromissos financeiros para apoiar ação climática em países em desenvolvimento. Junto com a ausência de novas promessas, a falta de informações e detalhamento sobre compromissos assumidos anteriormente despertou críticas e incomodou representantes de governos em desenvolvimento e ambientalistas em Bonn.
“Temos um longo caminho a trilhar na questão de financiamento”, afirmou Mohamed Adow. “Este ponto não foi devidamente endereçado em Bonn, o que coloca os países em desenvolvimento em uma situação delicada, já que eles dependem dos recursos financeiros externos para viabilizar seus compromissos no Acordo de Paris. Se quisermos tirá-lo do papel, precisamos apoiar os países pobres.”
A Conferência de Bonn não conseguiu avançar em pontos importantes da agenda de financiamento, como o “mapa do caminho” para viabilizar o principal compromisso financeiro internacional para apoiar ação climática nos países pobres: a promessa das nações ricas de destinar US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020 através do Fundo Climático Verde (GCF, sigla em inglês) da UNFCCC. Este compromisso foi o principal resultado da malfadada Conferência do Clima de Copenhague (COP 15), realizada há oito anos; no entanto, até hoje, não existe um escalonamento definido para viabilizar essa meta para daqui a três anos, muito menos discussões sobre uma nova meta para o período posterior.
Outro ponto problemático na agenda de Bonn relacionado ao financiamento foi a definição dos critérios para utilização de recursos dos fundos de apoio à ação climática no âmbito da UNFCCC, como o GCF e o Fundo Adaptação.
Os países desenvolvidos defendem a adoção dos critérios do Banco Mundial para definir quais nações poderão requisitar recursos desses fundos financeiros. De acordo com a instituição, apenas países de baixa renda estão aptos a receber doações, já países de média renda, por sua vez, podem recebê-los por empréstimo.
A proposta irritou as nações em desenvolvimento na COP 23, que enxergaram nela uma tentativa de reescrever o regime internacional de clima. “Essa proposta representa um retrocesso perigoso para as negociações, já que elas estão ao arrepio do que temos hoje nos textos da Convenção e do Acordo de Paris”, alertou o embaixador Marcondes de Carvalho.
De acordo com o negociador-chefe brasileiro, se os critérios propostos pelos países desenvolvidos fossem aplicados, apenas o Haiti poderia receber doações dos fundos financeiros nas Américas – os demais países em desenvolvimento da região somente poderiam receber recursos na modalidade de empréstimo.
Na COP 23, a coalizão Basic (que reúne Brasil, África do Sul, Índia e China), em nome do G77, declarou que essa proposta “não tem base legal e, em nossa visão, é o equivalente a renegociar [o Acordo de Paris]. Isto pode potencialmente minar o nível de ambição dos países em desenvolvimento no esforço global contra mudança do clima”.
Opiniões sobre a COP 23
Em geral, as negociações tiveram algum avanço, porém ainda estão muito aquém do necessário para enfrentar os problemas climáticos que, da porta de fora das conferências da ONU, são reais e afetam principalmente populações mais pobres. Tivemos um destaque vindo de alguns setores da sociedade americana que, em um claro contraponto à decisão de Donald Trump de abandonar o Acordo de Paris, comprometeram-se com ações positivas para o clima. Já o Brasil sai desta conferência com a estampa do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Somos importantes nas negociações, mas nossas políticas internas, que ameaçam as florestas e seus povos e dão grandes subsídios para energias poluentes, são um exemplo real de tudo o que o mundo não precisa neste momento.
Márcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace Brasil
Vimos avanços importantes na regulamentação do Acordo de Paris, demonstrando alinhamento e comprometimento dos países. Entretanto, não podemos esquecer que ainda há uma lacuna muito grande entre os compromissos atuais e o que é necessário para entrar na rota do 1,5 grau Celsius. Precisamos de mais ambição nas negociações, e muito mais ação prática nos países. O Brasil, em especial, continua tomando decisões políticas que vão na contramão dos objetivos do Acordo de Paris.
Maurício Voivodic, diretor-executivo do WWF Brasil
“Bonn cumpriu a sua promessa, mas não atendeu às necessidades do planeta. Previa-se uma COP técnica, desinteressante, e foi exatamente isso. O processo foi resgatado de uma possível reabertura da fissura entre ricos e pobres, mas, infelizmente, a atmosfera não se preocupa com o processo. O que precisamos agora é mais ambição em cortes de emissões e finanças, e isso esteve fora da mesa. Enquanto isso, a janela para evitar o aquecimento global de 1,5 grau está se fechando rapidamente.
Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima
Durante toda a COP, o governo brasileiro enfrentou fortes críticas sobre sua contradição entre os retrocessos socioambientais domésticos e sua posição nas negociações, especialmente, sobre a proposta de incentivar os subsídios aos combustíveis fósseis até 2040. Por outro lado, o Brasil mandou um recado forte, ao lado de outros países em desenvolvimento, sobre a necessidade de aumentar a ambição do Acordo de Paris e buscar compromissos pré-2020.
Marcelo Furtado, facilitador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura
Os resultados modestos das negociações deste ano elevam a barra para os países. O Diálogo Talanoa intensificará seus esforços no próximo ano, acionando o mecanismo de ambição do Acordo de Paris. O mundo real está se preparando para uma maior ação climática; os países agora precisam estabelecer as regras para dar clareza e ajudar os governos a planejar suas economias e dar certeza aos investidores.
Camilla Born, senior policy advisor da consultoria E3G
Progresso foi feito no desenvolvimento das regras de implementação do Acordo de Paris, mas o ritmo das negociações deve aumentar significativamente se esse documento for concluído na conferência de Katowice. Poucos avanços foram feitos sobre a questão crítica de aumentar o apoio financeiro e de capacitação para ajudar os países em desenvolvimento a implementar energia limpa e outras soluções e para se adaptar aos impactos crescentes da mudança do clima.
Alden Meyer, diretor de estratégia e política da Union of Concerned Scientists (UCS)