Destinar corretamente os resíduos ao mesmo tempo em que se gera energia: as lições da Suécia para o Brasil
Um dos principais problemas brasileiros é a destinação de resíduos. Mesmo no universo dos resíduos sólidos urbanos coletados, mais de 40% desses resíduos vão parar em “lixões”, contaminando lençóis freáticos e criando ambiente favoráveis para vetores de doenças. Outra grande quantidade nem chega a ser recolhida e acaba na rua, bueiros e nos corpos d’água. O fato é que, para o brasileiro, o lixo é apenas um estorvo do qual ele tenta se livrar da forma mais barata possível.
Em outro país, entretanto, os resíduos sólidos urbanos são considerados importantes recursos. Estamos falando da Suécia, onde praticamente não há mais resíduo urbano sequer em aterros. Menos de 1% dos resíduos gerados no país escandinavo é aterrado, o resto tem uma destinação útil: metade serve ou como matéria prima para a reciclagem e a outra metade como combustíveis para gerar aquecimento e eletricidade.
O país escandinavo por onde passa o Círculo Polar Ártico precisa muito de calor e a fonte do aquecimento tão necessário é obtida a partir dos resíduos sólidos urbanos, ou, mais propriamente, do lixo das residências. Além do aquecimento, as usinas térmicas suecas produzem também eletricidade e até mesmo refrigeração a partir de resíduos.
Quando a temperatura está mais amena, são apenas os resíduos urbanos que abastecem as usinas, já que, em vez de pagar pelo combustível que necessitam, as usinas recebem pelo tratamento do lixo. Quando o tempo vai esfriando, vão entrando outros combustíveis, inicialmente os renováveis (resíduos, chips, pallets de madeira), que pagam menos impostos e, só nos casos extremos os não renováveis.
Não foi sempre assim. No início, cada residência possuía o seu próprio sistema de aquecimento, como lareiras ou pequenas caldeiras. Mas, à medida que as cidades iam se adensando e outras fontes de emissões de poluentes (como indústrias e carros) surgindo, a poluição passou a se tornar um problema sério. Frente a isso, a partir da metade do século XX, surgiram os sistemas de aquecimento centralizado para reduzir as emissões.
O primeiro sistema de District Heating (sistema de aquecimento centralizado) na Suécia foi o da cidade de Karlstad, construído em 1948. Os sistemas foram se proliferando e, em função de uma eficiência maior e da concentração das emissões em uma única (e alta) chaminé, reduziram consideravelmente o problema da poluição – mas o combustível que alimentava esses sistemas era basicamente o petróleo. Até a década de 1970, cerca de 90% do aquecimento sueco usava essa fonte.
Com a crise do petróleo nos anos 1973 e 1979, passou-se a buscar novos combustíveis, como carvão e biomassa. Ao mesmo tempo, o aumento da geração de resíduos sólidos e a consequente necessidade de destinação gerou preocupação. São dessa época também as primeiras leis e marcos regulatórios voltados à questão do lixo. Aos poucos, percebeu-se que era possível juntar a questão da alta demanda energética com a necessidade de tratamento dos resíduos.
O primeiro boom de plantas waste-to-energy (plantas de geração térmica com incineração de resíduos) ocorreu do final dos anos 1970 até a metade dos anos 1980, quando surgiram as preocupações com dioxinas e furanos, substâncias cancerígenas derivadas da queima de alguns materiais.
Em fevereiro de 1985, o governo sueco estabeleceu uma moratória para novas plantas de recuperação energética de resíduos e, em maio, montou uma comissão para investigar a questão. Em junho de 1986, a comissão considerou a tecnologia adequada para tratamento de resíduos sólidos urbanos ou industriais, sugerindo apenas o aperto nos parâmetros admitidos nas emissões. Deste modo, a moratória foi suspensa.
No começo dos anos 1990 também começava a entrar na agenda a questão climática. Em 1991, o país aproveitou uma ampla reforma tributária e criou o imposto sobre emissões de carbono. Essa foi uma das principais medidas para descarbonizar a economia sueca radicalmente. De 1990 a 2015, o PIB da Suécia cresceu 69%, enquanto as emissões caíram 25%, diminuindo consideravelmente a intensidade de carbono do país (quantidade de emissões por unidade de PIB).
Os resíduos tiveram importante papel nesse sentido, já que não apenas a reciclagem reduz a demanda energética, como também resíduos se tornaram importantes fontes de energia, seja por meio da digestão anaeróbica que transforma resíduos orgânicos como restos alimentares em biogás, seja pelo aproveitamento do valor calorífico dos resíduos não recicláveis nas plantas de recuperação energética de resíduos (waste-to-energy).
No começo da década de 2000, novos marcos regulatórios vieram reforçar o empenho do país em não desperdiçar esses recursos. A partir do ano 2000 foram criados impostos sobre o aterramento de resíduos mas, a partir de 2002, foi proibido o aterramento de resíduos combustíveis, obrigando que o seu valor calorífico fosse energeticamente aproveitado para a geração de energia.
A partir de 2005, também foi proibido o aterramento de resíduos orgânicos, dando mais impulso para a indústria do biogás e biometano que, na Suécia, alimenta principalmente ônibus, caminhões e parte da frota particular. A separação de resíduos alimentares virou uma prioridade e o país tem a meta de coletar separadamente metade dos resíduos alimentares até 2018. A coleta separada dos resíduos alimentares visa principalmente abastecer as plantas de digestão anaeróbica que permitem não só a produção de biogás a partir desses resíduos, mas também propiciam o retorno aos agricultores de vários nutrientes que precisam para produzir, como o fósforo.
A combinação de marcos regulatórios fez com que a recuperação energética dos resíduos se disseminasse no país, seja por meio da recuperação térmica (incineração), seja através digestão anaeróbica (biogás e biometano). Tudo isso sem comprometer a reciclagem, uma das mais altas do mundo e que alcança mais do que um terço (35,9% em 2014) da geração total de resíduos do país.
Com todas essas cadeias industriais precisando de matéria-prima, o país chegou ao extremo de aproveitar resíduos de outros países. Países que precisam destinar seus resíduos adequadamente pagam para as empresas suecas pelo tratamento adequado dos mesmos. Por isso, embora o fluxo material seja o de uma importação, o fluxo financeiro é de uma exportação de serviços.
Essa experiência pode ser muito útil para o Brasil. Gerar eletricidade com plantas de cogeração a partir do lixo e mover os ônibus com gás a partir de resíduos poderia tornar as nossas cidades menos poluídas e mais sustentáveis. Não precisamos tanto de aquecimento como na Suécia, mas precisamos muito de refrigeração, o que pode ser obtido da mesma forma.
Recentemente, o pico de consumo de energia elétrica no Brasil saiu do horário do início da noite – quando os brasileiros chegavam em casa, tomavam banho (também precisamos de calor), ligavam as luzes e a TV – para o meio da tarde, quando os aparelhos de ar-condicionado estão à toda. Resfriar os nossos ambientes com resíduos sólidos poderia reduzir o nosso consumo elétrico e diminuir os impactos ambientais da expansão do parque gerador.
* Especialista em Regulação na Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), doutorando no Instituto de Energia e Meio Ambiente da USP e ex-secretário executivo do Fórum Capixaba de Mudanças Climáticas