Termômetros não mentem e não têm ideologia, frisa o Instituto Socioambiental (ISA) neste comunicado em que faz uma anatomia do desmonte ambiental promovido pelo governo recém-empossado.
O ISA salienta que a questão climática é reconhecida por 99% da comunidade científica mundial, a qual, ao contrário do que Bolsonaro apregoa, não é um bando de comunistas. Também é reconhecida e objeto de políticas públicas em praticamente todos os países do mundo. Entre outras evidências, segundo a Organização Mundial de Meteorologia, os últimos quatro anos foram os mais quentes da História. Trata-se de questão pragmática, que coloca em risco a qualidade de vida de em todo planeta, mesmo daqueles que fingem discordar do consenso global.
Leia a seguir a íntegra do comunicado:
A Medida Provisória (MP) n.º 870/2019 e os decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro para reorganizar a estrutura e as competências ministeriais deixaram, deliberadamente, graves lacunas nos instrumentos e políticas socioambientais. A medida denota contrariedade a deveres atribuídos à administração federal pela Constituição e legislação correlata.
Já comentamos o caráter secundário com que ministérios importantes para essa agenda, como os do Meio Ambiente e Direitos Humanos, foram tratados na formação do governo (saiba mais). Agora a sinalização negativa, porém, traduz-se na drástica redução ou mesmo na eliminação de estruturas e competências.
Da lista de atribuições do MMA, espanta a ausência de qualquer menção ao combate ao desmatamento, que sempre constituiu atividade nuclear da política ambiental. Caso se confirme a inação estatal contra o crime ambiental, como dá a entender a nova normativa governamental, as consequências serão danos irreversíveis ao meio ambiente, caracterizado pela Constituição como patrimônio de toda a sociedade.
No momento em que atingimos 19% de desmatamento acumulado na Amazônia e os índices anuais crescem, importante recordar o alerta da comunidade científica (leia estudo). As pesquisas mostram que, atingidos entre 20% e 25% de desmatamento, a maior floresta tropical do mundo entraria em um “ponto de não retorno”, a partir do qual todo o seu equilíbrio seria modificado de forma irreversível, com a perda de serviços ambientais, incluindo a manutenção do regime de chuvas do qual dependem, entre outros, a agropecuária brasileira.
A desestruturação das políticas socioambientais parece fazer de conta que seus desafios e demandas não existem mais. A nova normativa chegou ao ponto de praticamente extinguir as referências ao combate às mudanças climáticas na estrutura do MMA. A Secretaria de Mudança do Clima e Floresta não existe mais. Restou apenas uma referência, de passagem, ao Fundo Nacional sobre Mudança Climática e ao seu comitê gestor. É como se o presidente quisesse acabar com o problema omitindo referências a ele.
No entanto, o problema existe e é reconhecido por 99% da comunidade científica mundial, que, ao contrário do que Bolsonaro imagina, não é um bando de comunistas. Também é reconhecido e objeto de políticas públicas em praticamente todos os países do mundo. Os termômetros não mentem e não têm ideologia. Entre outras evidências, segundo a Organização Mundial de Meteorologia, os últimos quatro anos foram os mais quentes da história. Trata-se de questão pragmática, que coloca em risco a qualidade de vida de em todo planeta, mesmo aqueles que fingem discordar do consenso global.
O nível dos oceanos está subindo, o que põe em risco a vida de milhões de brasileiros. A seca deixou de ser um problema nordestino e crises hídricas assolam cidades outrora abundantes em disponibilidade de água. Processos de desertificação – que também deixaram de ser objeto das atribuições do MMA – se expandem. Fenômenos climáticos extremos ocorrem com intensidade crescente. Os impactos das mudanças climáticas sobre cidades e regiões agrícolas serão cada vez maiores (assista ao documentário ‘O Amanhã é Hoje’).
O esvaziamento do MMA seguiu com a transferência das políticas e instrumentos de recursos hídricos, incluindo a Agência Nacional de Águas (ANA), ao Ministério do Desenvolvimento Regional, além do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e seu principal instrumento, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), repassados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
Outra marca da nova estrutura administrativa é a subordinação de direitos fundamentais de minorias a interesses econômicos. Ficaram sob a responsabilidade do MAPA a oficialização de terras indígenas e quilombos, além de outros temas fundiários, como a reforma agrária e a regularização fundiária na Amazônia Legal e nos territórios tradicionais. Os temas ficarão sob o comando da nova Secretaria Especial de Assuntos Fundiários.
Já o Ministério dos Direitos Humanos ficou ainda mais magro. Havia sido anunciado como gestor de políticas para vários segmentos sociais e minorias, mas ficou reduzido a um conjunto de secretarias sem instrumentos executivos, destinado a cumprir uma função retórica e ideológica. A Fundação Nacional do Índio (Funai) é o único (pedaço de) órgão vinculado à sua estrutura, mas, com o seu esvaziamento, não se sabe exatamente quais serão suas funções. A Fundação Cultural Palmares, responsável pela certificação de comunidades quilombolas, ficou vinculada ao Ministério da Cidadania.
A desestruturação dos instrumentos de governo e a irresponsabilidade para com o País e as populações mais vulneráveis deixarão o próprio governo sem anteparos para responder a eventuais crises, que tenderão a bater na sua porta. A impressão é de que o novo desenho administrativo não implica apenas subordinação da agenda socioambiental a interesses econômicos e perda de poder de alguns órgãos, mas abre caminho ao desmonte de políticas reconhecidas, inclusive internacionalmente, construídas ao longo de décadas de avanços.