Em tempos de novos formatos e plataformas tecnológicas, a demanda por informações é puxada sobretudo por investidores internacionais. A conclusão é que há muito a evoluir, em especial na transparência das cadeias de valor
Por Andrea Vialli
As transformações na comunicação pelas quais passa o mundo, com proliferação de canais digitais de difusão das informações até o uso de Inteligência Artificial na curadoria de conteúdos, modificam também a forma como as empresas expõem suas narrativas e exercem a transparência. Canais tradicionais, como os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor, geralmente via telefone ou e-mail), coexistem com sites na internet, mídias sociais, plataformas de troca de mensagens e outros aparatos tecnológicos. Se antes as empresas exerciam a transparência de forma mandatória – a obrigatoriedade de publicar balanços financeiros para empresas de sociedade anônima, por exemplo –, hoje exercer algum grau de disclosure começa a deixar de ser uma opção.
No campo da sustentabilidade, os relatos ganharam força a partir do início dos anos 2000, com a criação de indicadores específicos para reportar não só as informações financeiras das empresas, mas também sua atuação nas questões ambientais, sociais e de governança, sigla que ficou conhecida como ASG (ou ESG, em inglês). No Brasil, instituições como o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e o Instituto Ethos ofereceram as diretrizes para os primeiros balanços sociais a partir de 1997. O padrão GRI da Global Reporting Initiative desembarcou no País em 2001 e passou a ser utilizado pelas empresas brasileiras. Mais recentemente, foi lançado o relato integrado, metodologia do International Integrated Reporting Council (IIRC) que reúne, no mesmo documento, informações sobre os diferentes capitais da empresa – social, humano, natural e econômico (mais sobre o histórico em box abaixo).
O cardápio aumentou, assim como a discussão sobre o papel dos relatos de sustentabilidade. A era dos relatórios impressos extensos, com descrições detalhadas sobre as boas práticas das companhias, dá sinais de esgotamento. Em seu lugar, entram relatórios mais enxutos no papel, abrangentes em suas versões digitais – muitas empresas já aboliram as versões impressas. Já na quarta geração, a partir de 2013, os indicadores da GRI frisam a necessidade de a empresa elaborar seus relatórios com maior atenção à materialidade – as informações nos relatos devem cobrir temas e indicadores que reflitam os impactos econômicos, ambientais e sociais significativos da empresa, que possam influenciar as decisões dos públicos de interesse.
Para Ricardo Young, veterano na disseminação do conceito de sustentabilidade nas empresas brasileiras, os relatos continuam sendo uma fonte relevante de informação para a sociedade, mas insuficientes, face às mudanças no modo como a informação hoje circula no mundo.
“Há casos em que as empresas investem muito na forma e pouco na substância. Exemplos são as tantas companhias envolvidas em esquemas de corrupção, que publicavam seus relatos, mas estavam longe do compliance”, diz Young. O desafio é reportar não apenas as boas práticas e onde ela pontua bem, mas o esforço que tem sido feito para resolver as questões de materialidade da empresa ou do setor. “Hoje, o que interessa à sociedade é como a empresa está agindo para mudar a realidade. Por isso as empresas não podem ficar na platitude da informação”, afirma.
Essa mudança também é incentivada por avanços na gestão. Iniciativas como o Sistema B e os negócios de impacto, que nascem com a intenção de causar impactos socioambientais positivos, tornam a sustentabilidade mais inerente ao negócio. Nas empresas certificadas como B Corp, por exemplo, o compromisso de se fazer negócios com impacto positivo e seguir os indicadores propostos (nas áreas de governança, funcionários, comunidade, meio ambiente e clientes) entra em cláusulas que devem estar presentes em seu estatuto social. Isso incorpora os temas socioambientais à missão corporativa, e a empresa é reavaliada a cada dois anos.
[Criado dos Estados Unidos, o Sistema B tem o objetivo de apoiar e certificar as empresas que criam produtos e serviços voltados para resolver problemas socioambientais]
A demanda por transparência cresceu no mundo conectado, segundo Sonia Favaretto, diretora de sustentabilidade e de comunicação da B3. O processo de seleção das empresas que compõem o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da bolsa, em vigor desde 2005, ilustra bem as transformações na forma como as empresas divulgam suas informações sobre os aspectos ambientais, sociais e de governança.
Ao longo dos anos, o questionário enviado às companhias recebeu várias revisões. As respostas passaram a ser auditadas a partir de 2012 e, em 2017, tornou-se pré-requisito disponibilizar as respostas do questionário no site da bolsa para fazer parte da carteira. Tornar públicas as respostas das empresas do ISE, a princípio, não foi bem recebido: representantes do mercado de capitais se opuseram à ideia. A negociação foi intensa até que as partes aquiesceram – um sinal de que alçar níveis maiores de disclosure é uma tarefa que ainda requer esforço.
A partir do próximo ano, a B3 dará um passo além: utilizará análise de Big Data para capturar informações públicas sobre as empresas listadas. De acordo com Favaretto, o ISE será o primeiro índice com análise de dados por meio de ferramentas de Inteligência Artificial.
“A carteira do ISE que entra em vigor em 2021 já trará essa mudança. A tecnologia nos ajudará a tornar o questionário mais enxuto, o que é uma demanda das companhias”, diz. No futuro, abrir mão do questionário e só utilizar dados públicos poderá ser uma tendência – desde 2013 a B3 já monitora diariamente as notícias publicadas sobre as empresas listadas no ISE, fruto de uma parceria com a agência Imagem Corporativa.
Ainda de acordo com Favaretto, os relatos de sustentabilidade continuam sendo uma fonte importante de consulta para investidores, quando trazem informação de qualidade, materialidade e ritmo – as informações ASG têm de vir no mesmo timing das informações financeiras. “Se não contiver esses elementos, cai o apetite do investidor pelo relato de sustentabilidade”, afirma. Ao mesmo tempo, as fontes de consulta às quais os investidores recorrem aumentaram com o passar dos anos: além dos relatórios, as próprias respostas abertas das empresas listadas no ISE; ratings de agências de classificação de riscos e provedores de informação, como a Bloomberg.
NOVAS PLATAFORMAS
Mas a nova fronteira são as startups, e empresas de TI estão criando ferramentas para rastrear informações ASG. É o caso da Arabesque, que oferece uma plataforma capaz de monitorar diariamente dados disponíveis sobre 6.750 empresas em 15 idiomas, alcançando 50 mil fontes. A plataforma utiliza 250 métricas, construídas a partir de divulgações não financeiras e relatos integrados. Também faz a pontuação ASG, com escala de 0 a 100, e com análise específica do desempenho de cada empresa nas questões ambientais, sociais e de governança.
A Datamaran é outro exemplo. Concentra-se no gerenciamento de riscos não financeiros e na tomada de decisões sobre riscos regulatórios, de reputação e competitivos, cobrindo cerca de 5 mil empresas no mundo todo, com análise de mídias sociais, notícias online, pesquisas com stakeholders e as próprias fontes fornecidas pelas empresas, como relatórios corporativos, comunicados ao mercado e releases para a imprensa. A RepRisk também tem foco na provisão de informações ASG para due diligence, gerenciamento de risco e insights sobre prevenção e mitigação de risco. Cobre 115 mil empresas e monitora dados públicos disponíveis em 20 idiomas de aproximadamente 80 mil fontes – além de mídia impressa, online e mídias sociais, também vasculha órgãos governamentais (incluindo reguladores), think tanks, boletins informativos e outros.
A proliferação de plataformas para busca de informações ASG corrobora a aposta da B3 de que essa será uma forte tendência para os próximos anos. Porém, mesmo com o avanço da tecnologia, é pouco provável que as empresas deixem de publicar seus próprios relatos. “Continuará necessário que a empresa conte sua história, como ela se vê e comunique isso de forma criteriosa, não fantasiosa, ao mercado. Ao mesmo tempo, a credibilidade de quem fala de si tende a ser menor e a empresa vai ter que competir com outras narrativas, que podem corroborar ou contestar seu relato”, diz Aron Belinky, sócio da consultoria ABC Associados, parceira técnica do ISE da B3.
O olhar dos investidores para as questões ASG está se tornando mais afiado, pelo menos na avaliação de Luzia Hirata, coordenadora de sustentabilidade da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Pesquisa divulgada em dezembro de 2018 pela entidade indicou que 85% das gestoras de recursos do Brasil levam em conta ao menos um dos três aspectos (ambiental, social e governança) ao analisarem riscos e oportunidades de investimento. Em 2016, quando foi realizado o primeiro estudo, esse percentual era de 68%. A pesquisa ouviu 110 gestores de recursos, que representam 78% do patrimônio líquido sobre gestão no país, além de fundos de private equity e capital de risco.
Também cresceu o número de gestores com políticas específicas sobre investimento responsável: de 18% em 2016 para 21,3% em 2018. “As discussões sobre sustentabilidade nos investimentos estão evoluindo. Embora não seja um processo rápido, a atenção aos riscos socioambientais é um caminho sem volta”, diz Hirata. Ela afirma que aspectos regulatórios e a própria exposição do Brasil na recente crise envolvendo as queimadas na Amazônia contribuem para isso.
Segundo a coordenadora da Anbima, há níveis diversos de transparência nos relatos corporativos para as questões ASG, embora veja com frequência a tendência de a empresa reforçar suas boas práticas, com visão de marketing. “O investidor demanda um nível de transparência além do que é apresentado. As empresas precisam se ater às suas questões de materialidade e também aos aspectos críticos de seus negócios porque, no fim das contas, o investidor terá acesso a informações nem sempre positivas”, diz Hirata. Para ela, agências de classificação de risco, a mídia e provedores de informação são cada vez mais consultados na busca por informações ASG.
O Brasil está sendo pressionado por investidores: isso ficou evidente em setembro, quando um comunicado de 230 fundos de investimento, que juntos administram US$ 16,2 trilhões em ativos financeiros, pediram ao governo que tome medidas eficazes para proteger a floresta amazônica do desmatamento e das queimadas – e é preciso frisar que, dos 230 fundos, apenas dois eram brasileiros: Fama Investimentos e SulAmérica.
A carta, uma iniciativa dos Princípios para o Investimento Responsável (PRI), cita o mais recente relatório do IPCC sobre a relação entre desmatamento e aumento das emissões de gases de efeito estufa. Os investidores, especialmente os europeus, estão muito atentos às questões envolvendo uso da terra no longo prazo. “Se o modelo de negócios de uma empresa depende de expansão agrícola ou pode, de alguma forma, comprometer a disponibilidade de água, isso é um sinal de alerta para o investidor”, diz Danielle Carreira, especialista sênior em meio ambiente do PRI e responsável pelo comunicado sobre a Amazônia.
[Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, criado no âmbito das Nações Unidas para sintetizar e divulgar o conhecimento científico mais avançado sobre a mudança do clima]
Carreira, que é brasileira e mora há 20 anos em Londres, relata que estava de férias no final de agosto, quando as queimadas na Amazônia ganharam a mídia internacional e geraram uma crise diplomática entre os presidentes Jair Bolsonaro, do Brasil, e Emmanuel Macron, da França. Quando retornou, havia mais de 800 mensagens de gestores de fundos questionando a situação ambiental no Brasil, o que levou o PRI a se posicionar sobre o tema. Mais do que alertas, a especialista trabalha em iniciativas do PRI para engajar investidores e setor privado na melhoria das condições das cadeias produtivas de três commodities – óleo de palma, na Ásia, e soja e carne bovina na América do Sul.
LACUNAS NAS CADEIAS PRODUTIVAS
Para Marcelo Seraphim, gerente de relacionamento do PRI no Brasil, o País ainda precisa avançar na transparência das cadeias produtivas, especialmente no que se refere à rastreabilidade de commodities agrícolas. “O Brasil carece de mecanismos de regulação nos critérios ASG. As empresas tendem a fazer disclosure das boas ações, mas a busca de dados que sejam relevantes para os investidores demanda até a contratação de empresas especializadas”, diz.
As lacunas na busca de informação sobre cadeias produtivas sensíveis também são um desafio para ONGs ambientais e de direitos humanos. “No geral, ainda temos dificuldades de acessar informações sobre violações aos direitos humanos nas cadeias de produção”, diz Julia Cruz, advogada da ONG Conectas. “Quando há uma denúncia de trabalho infantil ou análogo ao escravo, por exemplo, a primeira reação das empresas é negar os fatos e apresentar os compromissos contidos em seus relatos de sustentabilidade”, diz.
O Greenpeace, que realiza campanhas contra o desmatamento nas cadeias das commodities de alto risco (soja, carne e madeira), vê avanços na rastreabilidade da soja após a Moratória da Soja.
[Compromisso firmado por entidades representativas dos produtores de soja no Brasil de não comercializar grãos de áreas desmatadas da Amazônia. O pacto foi subscrito pelo governo brasileiro em 2008]
Para as demais cadeias, é preciso estar in loco. “Lançamos mão de todas as fontes de informações disponíveis sobre as empresas, mas o que faz mais diferença é o trabalho de campo”, diz Rômulo Batista, da campanha Amazônia do Greenpeace. Com 33 anos de atuação ambiental, a Fundação SOS Mata Atlântica analisa minuciosamente as empresas que propõem à ONG parcerias ou patrocínios. Relatórios corporativos, sites, notícias na mídia e certificações entram na análise, bastante focada em temas materiais. “Avaliamos os impactos do negócio, como atuam diretamente com as comunidades, como previnem riscos, como gerenciam suas cadeias produtivas”, explica Márcia Hirota, diretora executiva da SOS Mata Atlântica.
A percepção de investidores, comunidades, trabalhadores e organizações da sociedade civil é de que a régua precisa subir na questão da transparência. Já não basta para as empresas contar boas histórias em seus canais de relato: a demanda por disclosure é maior, assim como a própria circulação da informação segue em ritmo nunca antes pensado. E os algoritmos da Inteligência Artificial só estão começando a entrar em cena.
BOX – O relato de uma trajetória
Na esteira do desastre ambiental provocado pelo petroleiro americano Exxon Valdez, que encalhou no Golfo do Alasca em 1989, deixando vazar 40 milhões de litros de petróleo, vieram leis, regulações e iniciativas da sociedade civil para tentar subir o nível da responsabilidade social e ambiental das atividades empresariais. Logo após a tragédia, um grupo de investidores ligados à causa fundaram nos EUA a Coalition for Environmentally Responsible Economies (Ceres), com o propósito de persuadir empresas a adotar um conjunto de princípios ambientais e produzir relatórios anuais de suas ações.
Dentro da Ceres nasceu o projeto Global Reporting Initiative (GRI). Cinco anos mais tarde, a iniciativa já era uma referência em metodologia de produção de relatórios de sustentabilidade – mais do que guiar a elaboração de relatos, estimulava uma mudança nos modelos de gestão. Assim, a GRI tornou-se uma organização da sociedade civil, com sede em Amsterdã, na Holanda – um território mais neutro, do ponto de vista geopolítico, para quem ambiciona conversar com o mundo todo.
O pano de fundo desse cenário eram os impactos da Eco 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, que debateu o desenvolvimento sustentável e lançou a Agenda 21.
No Brasil, o Balanço Social Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) foi o instrumento que primeiro se dedicou a tornar público dados empresariais sobre responsabilidade social. Mas, como seu viés era mais social que ambiental, em 1998 o Instituto Ethos ocupou essa lacuna com os Indicadores Ethos de Responsabilidade Social.
A iniciativa dos indicadores dialogava bem com a ideia dos relatos. Assim, o próprio Ethos ajudou a articular a vinda da GRI para o Brasil. A Natura foi a primeira empresa brasileira a publicar um relatório socioambiental com base no método GRI, em 2002. Hoje, cerca de 400 outras grandes companhias também publicam seus relatos anualmente. No mundo, as adesões somam 40 mil empresas falando regularmente de transparência e informações ASG (Ambiental, Social e de Governança). – por Magali Cabral