[Legenda: A falta de visão de um estadista, capaz de lançar patamares de sustentabilidade necessários para a proteção dos bens difusos e de uma economia que agregue aspectos científicos e sustentáveis, poderá levar o Brasil ao estágio basilar da República das Bananas citada em 1904 no conto O Almirante. Foto: Mike Mozart/ Flickr Creative Commons]
Como é usual no caráter oligárquico, este governo se preocupou apenas, no primeiro ano de mandato, em atender sua base eleitoral, a começar pela nomeação de um advogado da área ruralista conceitualmente mais despreparada para ocupar o Ministério de Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em vez de tentar previsões neste cenário insólito, devemos nos dedicar às lições de casa necessárias, em sua maioria corretivas. Aqui vão cinco propostas
Por Carlos Bocuhy*
A política ambiental do governo encerra 2019 de forma melancólica e com inúmeros retrocessos. À arrogância inculta travestida de autenticidade do atual governo e de seu principal representante, o presidente Jair Bolsonaro, já se deu o nome de falta de educação. Como é usual no caráter oligárquico, este governo se preocupou apenas, no primeiro ano de mandato, em atender sua base eleitoral, a começar pela nomeação de um advogado da área ruralista conceitualmente mais despreparada para ocupar o Ministério de Meio Ambiente (MMA), Ricardo Salles.
Os primeiros atos em 2019 foram voltados a desestruturar o ministério, deixando acéfalos e inoperantes os órgãos federais do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama). Com esse objetivo, e de forma nunca vista no País, o governo eliminou ou reduziu os meios de participação social que dariam transparência à gestão ambiental federal. Dessa forma, feriu, em seus primeiros meses, a regularidade que deve reger os atos da boa administração pública, além de praticar discursos e atos administrativos que estimularam os interesses da devastação ambiental, especialmente na Amazônia Legal.
Diante das consequências e sob pressão nacional e internacional, foi obrigado a gastar milhões de reais de dinheiro público com as medidas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Mas o tamanho do estrago na Floresta Amazônica em 2019 foi equivalente em área a dois municípios de São Paulo.
De forma equivalente, as ações de governo tardaram no litoral do Nordeste, duramente atingido pelas manchas de óleo que continuam a provocar danos nas áreas frágeis como manguezais, corais e de mariscos, dos quais dependem comunidades tradicionais. A situação foi mais grave do que deveria ser, justamente pelo mesmo motivo que permitiu a devastação da Amazônia: um sistema acéfalo, sem participação social e sem inteligência, que levou meses para agir.
Depois de desestruturar o Fundo Amazônia e proceder de forma mal-educada com seus doadores, o Brasil foi de chapéu na mão à conferência do clima, COP 25, que se recusou a sediar. Acabou voltando de mãos vazias.
Em síntese, 2019 demonstrou um insustentável voo de galinha na gestão ambiental de Bolsonaro. Então, diante dos precedentes, o que nos aguarda para 2020? Em vez de tentar previsões neste cenário insólito, creio que devemos nos dedicar às lições de casa necessárias, em sua maioria corretivas.
Em primeiro lugar, temos que avaliar qual o resultado concreto das recomendações, emitidas pelo Ministério Público Federal, ao MMA, Ibama e ICMBio, no sentido de atuarem de forma efetiva e independente na defesa do meio ambiente.
Os organismos criados e à disposição da sociedade para garantir a regularidade dos atos administrativos não podem resumir sua atuação a um mero aconselhamento do governo, quando este vem atingindo duramente dispositivos constitucionais.
É preciso que os atores responsáveis pela salvaguarda da boa administração pública funcionem a contento, promovendo a estrita e obrigatória observância da boa governança. Ao mesmo tempo, é necessário averiguar quais medidas têm sido tomadas pela Controladoria Geral da União (CGU) para aferir a regularidade dos atos administrativos do MMA.
Em segundo lugar, o Brasil precisa fazer cessar a falta de política ambiental, para estancar a sangria e não arcar com as implicações econômicas. O excessivo uso de agrotóxicos, incluindo os banidos internacionalmente, assim como a desconformidade das áreas desmatadas, já recebeu sinalização de restrições à exportação de produtos da pecuária e da agricultura brasileira.
A postura antidiplomática, por vezes ofensiva – e o não cumprimento de acordos internacionais como o de Paris e da Biodiversidade –, são outra face de uma necessária moeda de troca, sem a qual pode haver estragos tanto no Mercosul como na Comunidade Europeia, além da China, que no passado já devolveu navios inteiros com produtos contaminados.
Em terceiro lugar, o voo de galinha de Bolsonaro se deve a um impulso eleitoral conjuntural que não tem base cognitiva palpável e sensível à nossa realidade social e biodiversa. A falta de sintonia com nossos tempos apresenta o estertor de um neoanticomunismo dissociado da realidade de desigualdade social que a Europa em sua maioria já superou.
Depois de 30 anos da queda do Muro de Berlim e de uma China que desde 1980 cultua que “enriquecer é glorioso”, segundo análise de Orville Shell (1984), assistimos à postura superficial neopentecostal da teologia da prosperidade, atrativa para uma sociedade consumista muito distante dos princípios da simplicidade voluntária vivenciada por Francisco de Assis.
Como trabalhar neste cenário requisitos de baixo consumo e redução da pegada ecológica que poderia levar o planeta à sustentabilidade? Isso nos leva a um diagnóstico de quanto ainda será preciso avançar na consciência pública e portanto é imprescindível a necessidade da implementação, prevista em lei, sobre a obrigatoriedade da temática ambiental nos currículos de todos os níveis de ensino. O voo de galinha, sem sombra de dúvida, é fruto de um péssima formação cultural.
Em quarto lugar, o voo de Bolsonaro é impulsionado por um medieval negacionismo científico, desprestigiando a ciência e a pesquisa, que poderiam tirar o Brasil do purgatório da devastação ambiental e do exacerbamento do setor primário como pedra angular ad eternum para o Produto Interno Bruto (PIB).
É preciso integrar o conhecimento científico às políticas públicas, deixando de lado as convicções pessoais pouco progressistas e que apresentam fragilidade democrática. Acima de tudo, o governo precisa parar de simular e valorizar o direito à informação prestada à sociedade, com transparência sobre seus atos e suas consequências.
Esse governo sinaliza uma desastrosa gestão para a ciência brasileira, com consequente fuga de cérebros e interrupção de programas que poderiam criar núcleos de excelência e processos de desenvolvimento que agregariam maior valor às simples commodities.
Em quinto lugar, o voo de galinha não representa modelo seguro de desenvolvimento que traga garantias para o aporte de recursos voltados a uma infraestrutura sustentável, assim como os atos de governo neste ano não proporcionaram estabilidade e segurança jurídica para captação desses recursos. Os atores do mercado global estão preocupados com consumidores mais esclarecidos e com a regularidade da certificação ambiental nos moldes internacionais.
Como consequência, a política ambiental do governo faz com que a instabilidade ronde o Brasil. A falta de visão de um estadista, que consiga lançar patamares de sustentabilidade necessários para a proteção dos bens difusos e de uma economia que agregue aspectos científicos e sustentáveis, poderá levar o Brasil ao estágio basilar da República das Bananas citada em 1904 no conto O Almirante, do escritor americano William Sydney Porter, conhecido como O. Henry, em que um país que se torna exclusivamente dependente dos capitais especulativos decorrentes da exportação de suas bananas.
O Brasil tem de assumir uma postura contemporânea e em conformidade com os avanços internacionais na prática de compliance, da regularidade ambiental, eliminando as distorções e retrocessos. A insegurança institucional e jurídica, decorrente de posturas retrógradas, precisa ser saneada, sob pena de agravar a imagem e credibilidade do país perante a comunidade internacional.
É preciso compreender e fazer jus à generosidade ambiental e de inteligência que a Criação concedeu ao Brasil. A nossa grande lição de casa para 2020 será dizer não ao voo de galinha e ao projeto de uma República anacrônica, para que o Brasil possa alçar um voo de águia, de estadista, de forma a vivenciar de forma plena sua potencialidade, suas conquistas sociais e seus dispositivos constitucionais.
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)