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São cada vez mais frequentes os processos jurídicos que cidadãos movem contra Estados nacionais, locais e contra empresas, exigindo que se reduza a emissão de gases de efeito estufa para que a destruição do sistema climático não ameace direitos humanos básicos
Por Ricardo Abramovay*
A Corte Suprema da Holanda decidiu, no fim de dezembro último, que faz parte da defesa dos direitos humanos a obrigação governamental de proteger os cidadãos contra as mudanças climáticas. Para isso, a Corte estabelece que as emissões de gases de efeito estufa dos Países Baixos, em 2020, deverão ser cortadas em 25%, comparativamente a seus níveis de 1990. Esta decisão veio ao fim de um processo que a Fundação Urgenda, representando 886 cidadãos holandeses, moveu contra o Estado daquele país em 2015. O tribunal julgou que os esforços do governo na luta contra a crise climática eram insuficientes, uma vez que, em 2018, o corte nas emissões tinha sido de apenas 15% (relativos a 1990). Os proponentes da ação listaram nada menos que 40 medidas a serem tomadas para que a meta seja atingida.
Também em dezembro, a Comissão de Direitos Humanos das Filipinas – uma nação-ilha que, com a elevação do nível do mar é classificada como o terceiro país do mundo sob maior risco diante da crise climática – concluiu, após três anos de investigação, que as 47 maiores empresas fósseis são responsáveis por violar os direitos humanos em virtude dos danos causados pelas emissões de gases de efeitos estufa. Em causa estão a ExxonMobil, a Chevron, a Shell, a BP e a Repsol, entre outras.
Nesse caso, o interessante é que o processo não se referia à ação das empresas nas Filipinas e sim aos impactos sobre o país do desequilíbrio provocado por elas (pelo próprio produto que oferecem) no sistema climático. Embora as conclusões da Comissão não tenham efeito legal, ainda mais em um governo de extrema-direita como o de Rodrigo Duterte, a investigação teve impacto internacional considerável.
Em abril de 2018, respondendo a um processo movido por 25 crianças e jovens, a Suprema Corte de Justiça da Colômbia decidiu que o governo teria quatro meses para apresentar um plano de ação voltado a reduzir o desmatamento na Amazônia colombiana. Entre 2015 e 2016 a destruição florestal havia avançado 44%. Da mesma forma que nas Filipinas e na Holanda, a Suprema Corte colombiana reconheceu o vínculo entre a destruição florestal, as mudanças climáticas e a violação dos direitos humanos à vida, à saúde, à alimentação e à água.
O processo pede não apenas a interrupção do desmatamento, mas também a garantia de participação pública na criação de um plano para atingir tal objetivo. E este plano deve envolver várias gerações (intergeracional): daí a importância do fato de o processo ter como protagonistas crianças e jovens. A Suprema Corte reconheceu a Amazônia Colombiana como “sujeito de direitos”, decisão que tinha um precedente na atribuição deste estatuto ao Rio Atrato, em 2017.
São cada vez mais frequentes os processos jurídicos que cidadãos movem contra Estados nacionais, locais e contra empresas, exigindo que se reduza a emissão de gases de efeito estufa para que a destruição do sistema climático não ameace direitos humanos básicos. No mundo todo já há mais de 1.200 processos desta natureza e já se acumula vasta literatura sobre o tema tanto em sites especializados como em relatórios, artigos científicos e manuais.
Nesse sentido, é importante assinalar o lançamento pela Conectas Direitos Humanos, durante a COP 25, em Madri, do Guia de Litigância Climática, que está aberto na internet. O ponto de partida do Guia é que existem hoje mais de 1.500 políticas climáticas em todo o mundo, das quais 106 foram introduzidas depois do Acordo Climático de Paris de 2015.
Apesar deste avanço legislativo, as emissões não pararam de aumentar desde então. É o que explica a formação de um forte movimento envolvendo advogados, juízes, pesquisadores e organizações multilaterais no sentido de pressionar juridicamente Estados e empresas a ampliar a ambição para que o mundo possa chegar perto da meta de cortar pela metade as emissões durante a próxima década, conforme preconizado pelo IPCC.
Nada garante, claro, que esse objetivo será atingido. Mas é fundamental a contribuição da Conectas introduzindo para o público brasileiro essa ligação decisiva entre a luta contra a crise climática e a defesa dos direitos humanos.
Professor sênior do Programa de Ciência Ambiental da USP. Autor de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay. www.ricardoabramovay.com