O quadro de fome e de má nutrição, que já era preocupante, ganha novos contornos em razão da pandemia e do aumento no abismo socioeconômico. Nada mais razoável do que se pensar no compartilhamento, por empresas de alimentos, bebidas e produtos em geral, de sua estrutura logística. Isso inclui transporte e armazenagem, rede de distribuição, capilaridade e pontos de venda, acolhendo e incluindo os pequenos produtores locais e possibilitando a eles o acesso a mercados neste momento – inclusive apoiando a sua integração a ferramentas de e-commerce
A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) traz efeitos que extrapolam a questão da doença em si: impacta a vida das pessoas, os negócios e o meio ambiente – este favoravelmente. Assim como os efeitos são múltiplos, o seu enfrentamento demanda ações diversas e colaborativas, destacando-se, na presente análise, a necessidade de iniciativas integradas e urgentes para a garantia do acesso a alimentos da agricultura familiar e dos pequenos produtores.
A proteção jurídica do direito à alimentação tem grande relevância por ser condição para um nível de vida adequado e digno. Em sua raiz, foi normatizado com o intuito de enfrentar a fome, mas, ao longo dos anos, ganhou novos e mais amplos contornos jurídicos, com a inclusão do tema da desnutrição, também chamada de fome oculta. Mais recentemente, o aspecto da adequação nutricional ganha relevo em razão do aumento das doenças crônicas como diabetes, hipertensão e câncer e do peso da população.
Tão grave quanto a fome é a baixa qualidade nutricional dos alimentos e o seu impacto na saúde e bem-estar do ser humano. Segundo a FAO, a má nutrição traz custos econômicos e sociais para a sociedade: “Dois bilhões de pessoas não consomem vitaminas e minerais suficientes, a taxa de obesidade dobrou nos últimos 30 anos”.
O quadro de fome e de má nutrição, que já era preocupante, ganha novos contornos em razão da pandemia e do aumento do abismo socioeconômico. De acordo com o documento da ONU divulgado em junho de 2020, milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema, gerando, nas palavras de António Guterres, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, uma “emergência alimentar iminente”, que pode afetar centenas de milhares de crianças e adultos no mundo. É preciso agir!
Uma alimentação saudável e equilibrada, que inclua alimentos frescos na dieta, é a atitude recomendada, mesmo porque as doenças crônicas não transmissíveis, o sobrepeso e a obesidade são fatores de risco para agravamento da virose. O relatório da FAO, de abril, recomenda uma série de medidas para garantir a segurança alimentar, incluindo a expansão de programas de proteção social e da promoção de hábitos alimentares de consumo saudável.
Todavia, as medidas de distanciamento prejudicaram o acesso aos alimentos frescos em razão dos desafios para sua distribuição, além de questões econômicas, como aumento do desemprego e da queda na renda das família e a ideia – equivocada – de que os alimentos frescos não seriam seguros. Quem mais sente a dificuldade no escoamento são os agricultores familiares e pequenos produtores, para os quais a fonte de renda vinha sobretudo de escolas e serviços de alimentação.
O setor produtivo precisa pautar-se pela agenda de Direitos Humanos. Primeiro, no que toca à qualidade do que produz e às estratégias de publicidade que adota. Segundo, quanto ao reconhecimento do seu potencial para contribuir para educar a população em relação ao consumo seguro dos alimentos frescos durante a pandemia e apoiar os produtores locais para que seus produtos cheguem aos mercados e feiras. Essas medidas resultariam na redução do desperdício, no acesso a uma alimentação nutricionalmente adequada e mais diversa e, ainda, na garantia de renda por parte dos pequenos produtores.
Se, de um lado, os impactos do Covid-19 nas empresas são muito grandes – e podem se agravar em razão da retração no crescimento – de outro, as empresas que resistirem poderão apresentar resultados muito positivos quanto às suas ações com relação às comunidades afetadas e aos seus colaboradores, o que tem sido valorizado pelo mercado financeiro para analisar o desempenho das empresas em relação aos critérios Environmental, Social and Governance (ESG).
Estamos iniciando uma nova era como sociedade, uma era da cooperação e da integração, não somente no campo das comunicações e da tecnologia, mas com oportunidades para a melhoria dos serviços e da qualidade de vida das comunidades e pessoas. Portanto, nada mais razoável do que se pensar no compartilhamento, por empresas de alimentos, bebidas e produtos em geral, de sua estrutura logística. Isso inclui transporte e armazenagem, rede de distribuição, capilaridade e pontos de venda, acolhendo e incluindo os pequenos produtores locais e possibilitando a eles o acesso a mercados neste momento, inclusive apoiando a sua integração a ferramentas de e-commerce.
Tal cooperação pode vir a se consolidar e a evoluir para uma aliança mais permanente no período pós-pandemia. É esse tipo de ação que a Agenda 2030 quer quando brada que ninguém deve ser deixado para trás.
Todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) postos na Agenda 2030 são igualmente relevantes, mas, a cada novo desafio, são necessárias acomodações, reorganizações e ajustes. Fazemos um convite a olhá-los, a partir de novos prismas, a todo momento, para extrair de sua inteiração o que houver de melhor e mais efetivo. Um verdadeiro caleidoscópio a serviço da humanidade, do planeta e da prosperidade.
*Maria Cecilia Cury Chaddad é doutora em Direito Constitucional, advogada e empreendedora cívica
**Kalil Cury Filho é empresário e consultor em sustentabilidade
[Foto: Maarten van den Heuvel/ Unsplash]