Esta reportagem integra o “Especial 10 anos da PNRS”,
uma série de conteúdos produzida pela Página22
em parceria com a Coca-Cola
A Política Nacional de Resíduos Sólidos criou aprendizados e legados em 10 anos, como no retorno de embalagens após o consumo, mas precisa de aperfeiçoamentos que deem o devido valor econômico aos recicláveis
Se há um problema ambiental que requer a participação de todos para ser solucionado é o que envolve a gestão de resíduos. De empresários a consumidores, passando por profissionais de design, legisladores, governos de todas as esferas, sociedade civil organizada, distribuidores, comerciantes, processadores de material reciclável e catadores, todos têm um papel a cumprir no processo que dá uma destinação adequada aos resíduos.
São cerca de 80 milhões de toneladas coletadas por ano, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), o que corresponde a 400 quilos por pessoa. Ou seja, uma família urbana de três pessoas produz em média mais de uma tonelada de lixo por ano. Desse montante, aproximadamente metade é matéria orgânica, 30% são embalagens e 20% são outros resíduos secos, de acordo com informações do IBGE e indústrias de embalagens.
Quando vemos imagens degradantes de lixões a céu aberto, ou quando nos chocamos com a visão de embalagens flutuando em extensas áreas oceânicas, significa que um ou mais elos da cadeia de coleta e de reciclagem estão falhando na missão de dar destinação correta aos resíduos.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei nº 12.305/2010, traz um dos textos mais completos e avançados do mundo sobre como um país deve fazer a gestão do seu lixo. Mas não tem sido fácil tirá-la do plano teórico. Por exemplo, a legislação estabeleceu o fim dos lixões, cujo prazo venceu em agosto de 2014. Apesar dos avanços, segundo dados da Abrelpe, 40% do lixo coletado em 2018 seguiram para lixões a céu aberto ou aterros controlados (um meio caminho entre o lixão e o aterro sanitário).
Calcula-se que apenas 3% do material potencialmente reciclável é reaproveitado. Mas essa referência diz respeito apenas ao que é contabilizado oficialmente pelas prefeituras e empresas que prestam serviço de coleta seletiva, sem levar em consideração o trabalho realizado por um grande contingente de catadores autônomos, que atuam na informalidade e representam a maior parte da reciclagem no Brasil.
Os balanços realizados pelas associações empresariais relativas a cada tipo de embalagem traçam uma realidade diferente, pois cruzam o volume de embalagens que colocam no mercado com o material processado pelas empresas recicladoras. As latinhas de alumínio representam o caso mais emblemático, com um índice de 97,3% de reciclagem. Elas vêm seguidas das garrafas PET (55%), embalagens longa-vida (30%), e dos recipientes de plástico em geral (26%).
Um critério estabelecido pela PNRS e aplaudido por todos é o da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. O compartilhamento da responsabilidade envolve toda a cadeia da reciclagem, mas cabe à indústria operar o sistema de logística reversa, principal instrumento para fazer essa roda girar. O Ministério do Meio Ambiente classifica a logística reversa como “um conjunto de ações destinado a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial (…)”
“Fizemos uma ação inédita que foi a Coalizão de Embalagens [grupo de 14 organizações representativas do setor empresarial que, em 2015, assinou o acordo setorial federal para implantação do Sistema de Logística Reversa de Embalagens em Geral de Produtos não Perigosos], mas precisamos avançar mais”, afirmou o diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola, Victor Bicca, durante o seminário virtual “10 Anos da Lei de Resíduos: Como Avançar?”.
A Coca-Cola está entre as maiores responsáveis pelo consumo de garrafas pet do mundo e lançou uma campanha cuja meta é até 2030 coletar uma lata ou garrafa usada para cada embalagem colocada no mercado. Para melhorar os índices, é necessário investir em educação ambiental, infraestrutura e coleta seletiva. “Mas é fundamental também desenvolver instrumentos que deem sustentabilidade econômica para o setor de reciclagem”, disse Bicca.
“Somente por meio desses mecanismos conseguiremos balancear oferta e demanda. Não adianta coletar material se não houver demanda. Da mesma maneira, não adianta criar demanda se não houver material reciclável disponível. Esse controle é um dos itens que precisam avançar daqui para frente”, assinalou.
Nessa mesma linha, o deputado federal Arnaldo Jardim crê que o novo Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), em consulta pública até 30 de setembro próximo, e a reforma tributária, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, representam uma janela de oportunidade para introduzir os instrumentos econômicos nas legislações brasileiras. Na opinião dele, é preciso vincular o setor de reciclagem a uma determinada fonte de recursos, como Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), IPTU verde, taxa de lixo, entre outros. “O espírito é promover a valorização dos resíduos”, afirmou.
O deputado explicou que, enquanto os resíduos sofrerem tributações que lhes retirem valor, como IPI, ICMS, PIS e Cofins, eles deixam de ser competitivos. Ou seja, pode ser mais vantajoso para uma empresa adquirir matéria-prima virgem do que incorporar material reciclado na composição de suas embalagens. Para o deputado, ignorar o peso da carga tributária sobre materiais que serão reutilizados pela indústria representa um total desprezo ao conceito de externalidades (reflexos negativos ou positivos de uma atividade que são sentidos por aqueles que pouco ou nada contribuíram para gerá-los).
De acordo com o consultor André Vilhena, da AV Ambiental, taxar o lixo é importante, mas não da forma como é feito hoje, embutindo a cobrança em outros impostos como o IPTU. A taxa deve vir discriminada para que os recursos captados não se confundam com o de outros itens igualmente importantes para os municípios. “É hora de enfrentar essa questão de frente, apesar do temor por parte dos prefeitos de eventuais respingos políticos negativos”, afirmou Vilhena. Um dos principais problemas da cobrança da taxa de lixo por intermédio do IPTU, além da falta de transparência, é que não dá para fazer a distinção entre o cidadão que recicla e composta os seus descartes daquele que simplesmente despeja todo o lixo para o lado de fora do portão.
Para resolver esse tipo de complexidade, existem modelos, como o pay as you throw – Payt (pague pelo que jogar fora), que trazem o princípio do usuário-pagador e são adotados em vários países europeus. Há também modelos não coercitivos de engajamento do cidadão na cadeia de reciclagem, mais adequados às sociedades com mais desigualdade social. Por exemplo, remunerar com créditos virtuais a serem consumidos no próprio município os cidadãos que limparem, separarem e entregarem seus materiais recicláveis nos pontos de coleta.
Como não judicializar a reciclagem
Mesmo que aprovados os instrumentos econômicos para ajudar a financiar a reciclagem, outro fator que incomoda o setor empresarial é o excesso de judicialização. A experiência mostra que não são poucos os casos em que o Ministério Público judicializa iniciativas, como aconteceu com o acordo setorial firmado entre empresários e o Ministério do Meio Ambiente para logística reversa de embalagens. “Entendemos as competências do Ministério Público, mas a judicialização, ao colocar todos no mesmo balaio, impede o andamento das atividades e tem penalizado apenas quem está tentando fazer ações para aumentar a reciclagem”, argumentou Victor Bicca. “Só com diálogo e união conseguiremos aumentar a reciclagem”.
Segundo a desembargadora Consuelo Yoshida, vice-presidente do Tribunal Regional Federal de São Paulo, para resolver o problema do excesso de judicialização, o empresariado brasileiro precisa melhorar sua interlocução com juízes e membros do Ministério Público, principalmente ao tratar de questões mais polêmicas. “Muitas vezes, os empresários discutem acordos entre si e nos deixam alheios a essas decisões”, comentou a desembargadora.
Ela defende um Ministério Público resolutivo e um judiciário que agiliza as soluções. E concorda que a adoção de instrumentos econômicos, que trazem o princípio de protetor-recebedor ou de poluidor-pagador, são fundamentais em uma sociedade de economia capitalista. Segundo afirmou, não será apenas em favor do meio ambiente e da inclusão social que um empreendedor irá se mobilizar, mas também se enxergar vantagens econômicas. No entanto, ela reconhece que esse é um daqueles temas “polêmicos” com grande chance de ser judicializado também. A sugestão da desembargadora aos legisladores e empresários é que evitem falar em oneração. “É mais correto falar em usuário-pagador, termo que remete ao compartilhamento dos custos das externalidades, expressão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”.
Outra opção, segundo Consuelo Yoshida, é buscar o reconhecimento judicial para além da fase de consulta pública. Ou seja, para se ter certeza de que uma atividade que envolve serviços públicos não será judicializada, só mesmo buscando uma aproximação prévia com o Ministério Público e os demais setores da justiça. Desse modo, ela acredita ser possível deixar em debate na Justiça apenas os tópicos mais controversos e seguir em frente com a iniciativa. “É uma forma de evita a suspensão por judicialização do conjunto da ação”, afirmou.
Apenas duas das questões levantadas no seminário dos 10 anos da PNRS – a necessidade de se criar instrumentos econômicos e o excesso de judicialização – denotam a complexidade que é criar um sistema de reciclagem com engrenagens girando com perfeição para atingir o objetivo maior da economia circular. Apesar de ser um marco na área ambiental e de apresentar alguns bons resultados no setor de reciclagem de embalagens, ainda não é possível dizer que a PNRS tenha “decolado”. No entanto, temos uma lei que traz em seu cerne a sustentabilidade. Isso, no mínimo, mantém viva a esperança.
[Foto: Jonathan Chng/ Unsplash]
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