[Foto: @fechristo_fotografia]
Esta reportagem integra o “Especial 10 anos da PNRS”,
uma série de conteúdos produzida pela Página22
em parceria com a Coca-Cola
Com aumento da produção de resíduos nas residências, a pandemia de Covid-19 expõe a importância do engajamento para a sociedade valorizar o trabalho dos catadores e o consumo sustentável
Desde criança, o gaúcho Alex Cardoso, 40 anos, está envolvido no trabalho com recicláveis na cooperativa Ascat, no bairro da Cavalhada, Zona Sul de Porto Alegre. Ele representa a terceira geração de uma família de catadores, e não foi fácil conviver com estigmas e superar a dura realidade econômica e social do ofício. Nos últimos seis anos, Cardoso passou da 5ª Série do Ensino Fundamental ao curso superior – Ciências Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; viu a profissão ser valorizada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e chegou à posição de liderança no Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, representando a categoria na Região Sul. Nesta função, frequentou o gabinete de ministros, participou de agendas nacionais e internacionais, conheceu diversos países.
Enfim, foi uma trajetória de oportunidades, diferentes das que normalmente se apresentam para a grande maioria dos catadores que atuam ruas, ajudando a resolver um importante problema ambiental das cidades: a destinação do lixo – um trabalho que Cardoso luta para que seja mais reconhecido e apoiado. Por tudo que viveu nas esteiras de triagem ao lado dos pais e avós, o catador sabe o tamanho do desafio. Mas jamais podia imaginar o cenário de riscos e fragilidades que se desenhou pelo impacto da Covid-19 na reciclagem.
“A quantidade de resíduos aumentou, mas a qualidade do que chega às cooperativas para reciclagem caiu com o distanciamento social e o crescimento do consumo doméstico, e isso demonstra a falta de consciência e informação da sociedade sobre a nossa atividade”, afirma Cardoso, hoje dedicado à gestão e a parcerias com prefeituras visando a participação dos catadores no serviço municipal de coleta seletiva. Além de misturar sujeira e fazer a separação incorreta das embalagens, “as pessoas resolveram jogar fora objetos velhos e muito material de pouca reciclabilidade acabou parando nas cooperativas”.
Em paralelo, diz Cardoso, os preços pagos aos catadores caíram até 50% em função da baixa demanda das empresas recicladoras que paralisaram atividades e da estocagem de materiais pelos aparistas (intermediários) à espera da normalização do mercado. “A ‘pandemia’ ambiental é anterior à da ‘saúde’ e não podemos combater uma crise induzindo outra”, ressalta.
Foram necessárias medidas emergenciais de renda, protocolos para coleta e manuseio dos materiais e articulação com o Ministério Público para campanhas de conscientização nas cidades, diante do quadro de vulnerabilidade e riscos de contágio inerente a esse trabalho. “Estaríamos mais preparados se houvesse maior envolvimento das prefeituras”.
A lição da pandemia pode favorecer um novo marco na história de reconhecimento dos catadores? “O momento mostrou que a reciclagem é essencial à vida no planeta, mas falta maior empatia com o outro”, observa Cardoso, ao lembrar que “a Covid-19 colocou todo mundo no mesmo barco, porém uns mais protegidos que outros”.
Impacto à renda evidencia desafios no pós-pandemia
“Somos essenciais para atividades que na maioria das vezes não nos remuneram: limpeza pública, logística reversa de embalagens (obrigatória para as empresas fabricantes) e fornecimento de matéria-prima à indústria recicladora”, destaca Roberto Laureano, presidente da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT). Para diminuir o impacto à renda dos cooperados na pandemia, a organização lançou campanha de solidariedade para distribuição de vale alimentação de R$ 200, por meio do cartão Sodexo, para 3 mil catadores, com 25 mil na fila de espera.
Estima-se que cerca de 90% dos recicláveis passe pelas mãos desses trabalhadores antes de voltar às indústrias, e a maioria das cidades não tem contratos com cooperativas para a coleta seletiva, com dispensa de licitação para o serviço, conforme permite a lei. “Precisamos ser remunerados por tudo isso, para prosseguir com protocolos de segurança no cenário pós-Covid-19”, observa Laureano, na expectativa de recompensa pelo bem prestado ao meio ambiente e à saúde.
“O momento escancarou fragilidades que estavam adormecidas”, pondera Eric Burger, diretor da Recicleiros, organização que assessora prefeituras na implementação da coleta seletiva em conformidade com PNRS. Ele diz que “ainda estamos tentando fazer o básico com toda a restrição de orçamentos e recursos”, e pergunta: “Se é tão importante, a reciclagem já está estabelecida como serviço essencial? Quão preparada está para operar com segurança?”.
“É um desafio complexo, pela forma de trabalho e moradia dos catadores, e pela dificuldade de orientação à distância”, acrescenta Burger, para quem a pandemia evidencia “um sistema de pouco investimento e eficiência”. Em sua análise, neste momento delicado, empresas e organizações que têm contribuído para ver a reciclagem como fator de desenvolvimento social “foram colocadas na berlinda”. Ele conclui: “O modelo é viável, mas exige um investimento mínimo”.
Em nota, a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb), da Prefeitura de São Paulo, informa que as 24 cooperativas habilitadas para receber o material da coleta seletiva oficial da cidade estão programando a retomada das atividades, suspensas temporiamente em março. As 905 famílias associadas a essas cooperativas receberam assistência de R$ 1,2 mil (R$ 600 do município e R$ 600 do governo federal), por três meses – auxílio prorrogado em julho por mais um mês, incluindo-se outros 1,4 mil catadores autônomos.
De acordo com a Amlurb, entre 23 de março a 30 de julho, a quantidade de resíduos da coleta domiciliar comum apresentou uma queda de 3% – foram 32,3 mil toneladas a menos, quando comparados com igual período de 2019. Durante o mesmo período, os resíduos provenientes da coleta seletiva tiveram aumento de 27% – cerca de 7,1 mil toneladas a mais, levadas para duas centrais mecanizadas de triagem, que normalmente também fazem a separação, além das cooperativas, e permanecem em funcionamento. “Estima-se que esses números podem estar ligados a uma maior adesão dos paulistanos à reciclagem durante o período de pandemia”, diz a nota.
“O descarte passou a ocorrer dentro das residências, o que mudou o perfil da demanda, mas não tanto a quantidade”, aponta Auri Marçon, presidente da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet). Devido à retração da economia, com queda do consumo de material reciclado por alguns setores, como o têxtil, a ociosidade do parque reciclador aumentou de 25% para 55% nos primeiros dois meses da pandemia.
“A matéria-prima reciclada passou a custar mais caro do que a resina virgem, o que trouxe dificuldades maiores para a reciclagem, amenizadas pelo fato de grandes players do mercado de bebidas terem mantido a compra do material pós-consumo por razões socioambientais”, explica Maçon. Ele estima impacto de 12% a 15% na redução da reciclagem de embalagens PET, até o momento, na pandemia, mas “a tendência é de estabilização no abastecimento”.
Campanhas arrecadam apoio financeiro
O engajamento de empresas sensíveis a temas de sustentabilidade e também a questões de compliance, pela obrigatoriedade da logística reversa de embalagens conforme a PNRS, pode fazer a diferença no desafio de reduzir fragilidades da reciclagem. A Coca-Cola, por exemplo, tem o compromisso de trazer de volta todas as embalagens colocadas no mercado, até 2030. “Como poderíamos entrar em quarentena e trabalhar em home office, sem olhar para nossos fornecedores e cooperativas que apoiamos?”, destaca Fernanda Daltro, especialista em sustentabilidade na companhia.
No “Reciclar pelo Brasil”, programa conduzido há três anos pela multinacional de bebidas em parceria com a concorrente Ambev e outras empresas, 225 cooperativas de catadores espalhadas no País, no total de 4,6 mil recicladores, receberam recursos como ajuda de custo para a travessia da crise, com autonomia para permanecer trabalhando ou não, dependendo das realidades locais. As ações, em parceria com a ANCAT, incluíram apoio emergencial para aquisição de máscaras, protetores faciais e álcool em gel.
“Na pandemia, ficou mais evidente a importância de cuidar de quem cuida do nosso lixo”, afirma Daltro, lembrando também o valor do trabalho em rede para se atingir quem precisa – esforço traduzido também na doação de R$ 300 mil ao Cataki, plataforma digital que aproxima geradores de resíduo e catadores autônomos, aumentando a reciclagem e a renda.
“Foi uma grande preocupação garantir o sustento mínimo a esses trabalhadores invisíveis”, conta Juliana Fullmann, coordenadora de projetos do Cataki, que mobilizou a sociedade na ajuda para a redução dos impactos, na Covid-19. “São pessoas que não tem sequer água de beber, quanto mais lavar a mão e passar álcool em gel”, diz. Após a distribuição de kits com água a sabão, a plataforma iniciou a distribuição de cartões bancários de débito, para repasse que doações até o momento somaram R$ 1,5 milhão, R$ 650 por catador, com foco naqueles não vinculados a cooperativas, os que atuam na informalidade nas ruas de cidades em todo o Brasil.
O desafio exigiu um amplo esforço de cadastramento, “tarefa complexa para quem muitas vezes sequer tem documentos”, ressalta Fullmann. “Só o ato de ter um cartão e colocar senha na máquina do banco tem sido motivo para autoestima”, completa. Mais que isso, a iniciativa está permitindo a aproximação necessária para o reconhecimento e inclusão desses trabalhadores como agentes da reciclagem, tendo em vista a retomada da economia e da atividade no pós-Covid-19. “Logística reversa não é só monitorar o volume de materiais, mas garantir que toda a cadeia funcione”, conclui a coordenadora. A questão, diz ela, passa por enxergar o outro, e a torcida é que não seja necessária mais de uma pandemia para cair a ficha da sociedade.
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