Meu caro amigo,
perco o sono ao ver teus parentes morrerem pela precariedade da assistência oferecida aos povos indígenas diante da pandemia do Covid-19. Há cinco séculos, nós, os brasileiros, vimos criando formas perversas de domínio, invadindo as tuas terras, prejudicando o teu povo e, agora, somos os portadores desta doença avassaladora. E, pior, somos surdos aos teus pedidos e de tantos povos indígenas, que pedem, pelo menos, a mesma qualidade de atendimento dado a outros brasileiros.
Em contraponto, quero aqui dizer-te que a iniciativa da Associação Matereilá, pela criação da Universidade Paiter a Soeitxawe, que resultou do plano de 50 anos de teu povo, é das mais belas propostas que conheço para a Amazônia. Quem somos nós, brasileiros, que não temos plano algum, e conduzimos este país como uma mula sem cabeça desgarrada para ignorar tal projeto?
Quero aqui ler em voz alta, admirado, a proposta da Universidade Paiter a Soeitxawe: “um espaço de trabalho regular e contínuo de sistematização do conhecimento ancestral do povo Paiter feita em parceria com professores doutores não Paiter, de maneira que 1) a reflexão filosófica, 2) os diferentes modos de conhecer o mundo e 3) as tecnologias desenvolvidas pelos sábios Paiter Suruí ganhem condições e possibilidades de estabelecer um diálogo horizontal no âmbito acadêmico com as tradições de conhecimento de outros povos e com as epistemologias ligadas à tradição greco-romana”.
E, observo que não se trata de uma ideia solta, oportunista. Ele vem das múltiplas reflexões discutidas anualmente desde 2015, quando vocês realizaram o “I SOEITXAWE – I Congresso Internacional de Pesquisa Científica na Amazônia”.
E, nós, os brasileiros, os “caraíbas”, o que temos oferecido aos Suruí? E aos povos indígenas da Amazônia Brasileira? Até agora só contribuímos com o aumento das hordas de bárbaros garimpeiros, milícias de grileiros de terras públicas, ladrões de madeira, com criadores de gado invasores e, a vocês, na fronteira, traficantes de todas as sortes.
Estou envergonhado pela absoluta indiferença nossa, dos caraíbas, que transformaram Cacoal e a tua Rondônia num grande pasto para bois e, crescentemente, no deserto da agricultura mecanizada de alto impacto socioambiental da soja.
Diante da Covid-19 será que devemos insistir no poder das motosserras e tratores de esteiras, nas faturas de madeira, dragas e mercúrio para a extração do ouro ilegal, venenos e contratos para entregar soja para alimentar porcos e galinhas na China? A nossa cordialidade nefasta só está demonstrando como em uma crise internacional como esta, os brasileiros nunca priorizaram os povos e comunidades tradicionais.
Peço-te que não desistam. Precisamos que vocês nos ensinem a superar estes quinhentos anos de “progresso”, em que nos vangloriamos como os campeões mundiais do desmatamento e queimadas, do desrespeito e massacre de povos indígenas, os arautos da atividade econômica mais destrutiva do planeta – a pecuária bovina extensiva. Pior, acreditamos que isto seja bom e seguimos insistido neste caminho suicida, e ficamos nervosos quando cobrados por outros países que superaram esta fase bárbara e ímpia.
A legislação está aí, os estudos científicos – há tantos! –, os fatos, as imagens de satélite, os vídeos… E a nossa sociedade simplesmente os ignora, trata tudo como um deslize menor, sem importância. Alguns até se defendem, até dizem que agora a Amazônia é prioridade. Mas, como acreditar? Os modelos de sucesso continuam a ser aqueles que enriqueceram desalojando índios, quilombolas e comunidades tradicionais, os que engordam bois no pasto em terras públicas (de todos os brasileiros). Os bancos não os questionam, não querem saber a origem de seu dinheiro. A sociedade não os questiona.
Almir, ensina-nos como valorizar o que realmente importa, o que permanece por 50 anos, muitas gerações… Mesmo diante desta pandemia, peço-te que insistas na Universidade Paiter a Soeitxawe, e que estimules cada povo indígena a criar a sua universidade. Que privilégio o nosso, dos brasileiros, em termos tantos povos originários no Brasil, para que nos ensinem como proceder para uma Amazônia respeitada!
Quero tanto ver estampado em todas as mídias sociais e imprensa os avanços “do modo Paiter Suruí de compreender a reflexão humana para o bem viver” proposto pela Universidade Paiter a Soietxawe. Quando seremos todos teus alunos? Os povos indígenas têm muito a nos ensinar, afinal, sobreviveram às centenas de surtos de varíola, gripe, febre amarela e tantas doenças provocadas pela tal civilização, a escravização, os trabalhos forçados… e estão aí, propondo uma universidade, com planos de 50 anos! Certamente, se nos dermos o direito de ouvir os povos indígenas e suas universidades, sairemos todos, juntos, mais preparados para estabelecer um novo pacto pela Amazônia, baseado em educação e respeito.
Assinado, João Meirelles Filho
O chefe Almir Suruí participa da Associação Metareilá do Povo Indígena Suruí http://www.paiter.org
João Meirelles Filho é escritor e diretor-geral do Instituto Peabiru