Em um ambiente tão incerto e volátil, o conceito das capacidades dinâmicas é crescentemente lembrado. Aborda a capacidade de rápido remodelamento, o desapego a modelos de sucesso passados, a aceitação de erros, a escuta atenta e permanente aos stakeholders, o mergulho no valor que a diversidade pode aportar para as organizações. O “novo normal” é apenas a percepção de que é relevante aquilo que já se falava há décadas
O tal novo normal tem pouco de novo. Talvez o novo seja apenas a constatação do que é evidente, necessário e inevitável. Ou seja, o que muda é a percepção de que aquilo que se diz há algumas décadas é relevante: ESG (questões ambientais, sociais e de governança), complexidade, velocidade das mudanças, externalidades, a desgastada sustentabilidade, incertezas, desigualdades, mudança climática.
Incerteza radical, cisnes negros e verdes, problemas perversos, VUCA (acrônimo de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade), economia comportamental, racionalidade limitada, incompletudes contratuais, capitalismo consciente, valores compartilhados…
No mundo da gestão, de um lado, William Edwards Deming [1]:
“Não se gerencia o que não se mede,
não se mede o que não se define,
não se define o que não se entende,
e não há sucesso no que não se gerencia.”
De outro, Horst Rittel e Melvin Webber [2] com a formulação dos wicked problems (livremente traduzido como problemas incompletos ou, mais literalmente, perversos) voltam à tona com força:
– Não há uma formulação definitiva para os problemas. Não há informação suficiente e nem racionalidade completa. Os limites são imprecisos, incertos, voláteis;
– Não há soluções definitivas para os problemas, como nas equações matemáticas;
– Não há um julgamento final sobre as soluções apontadas, como sendo corretas ou incorretas. São passíveis de interpretações de acordo com diferentes grupos afetados. A temporalidade das consequências varia muito e estas são frequentemente ambíguas, contraditórias. O que pode ser ruim num momento pode vir a ser muito bom em outro. O curto prazo enfrenta como nunca as consequências no longo prazo;
– Não há como medir, de forma definitiva, os resultados das soluções encontradas. Com frequência, uma solução gera consequências que se desdobram e são difíceis de serem avaliadas;
– Não há como mapear todas as possíveis alternativas de soluções;
– Cada problema tem características únicas. Não há referenciais completos para as soluções;
– É muito difícil testar soluções antes de que sejam amplamente praticadas. Há uma sequência de aprendizados que ocorre como resultante das soluções postas em prática;
– Cada problema pode ser considerado como um sintoma de um outro problema. No mínimo, está sempre conectado a outro problema, portanto as situações são multicausais e interconectadas;
– Há sempre várias explicações para o problema, muitas delas discrepantes (ambíguas). A escolha da explicação é arbitrária;
– São situações que afetam múltiplos stakeholders, com agendas distintas e comumente conflitantes. Não há tolerância e nem imunidade para as consequências das soluções implementadas. Sempre haverá pluralismo de visões e dilemas sobre o problema e, portanto, sempre haverá críticas.
Nicholas Taleb [3] aborda os cisnes negros e os problemas que levam exponencialmente a rupturas. John Elkington [4], relativiza os 3 Ps (people, profit, planet) e propõe os cisnes verdes, ou soluções que nos levam exponencialmente a rupturas. A “exponencialidade” parece ser evidente. Mervin King e John Kay [5] tratam das incertezas radicais, diferentes das incertezas normais com que as seguradoras trabalham, equacionáveis com abordagens probabilísticas. Nas incertezas radicais, dados históricos não existem ou não servem, não há conhecimento prévio disponível.
Nesse contexto, como definir as premissas estratégicas e o planejamento corporativo? Como considerar, ao mesmo tempo, a evolução da pandemia, o dimensionamento dos impactos e alternativas para encaminhamentos econômicos, a relação com a mudança climática, com o desmatamento, com os destinos e desatinos ideológicos, com os movimentos do populismo, do protecionismo, com a geopolítica, com o enfrentamento das desigualdades, com as mudanças nos padrões de consumo, nas práticas profissionais, nos modos de vida?
As incertezas conjunturais, representadas por volatilidades dentro de um padrão – por exemplo, as crises do transporte aéreo decorrentes de variações econômicas – são substituídas por incertezas estruturais, com rupturas de padrões – redução estrutural de viagens com aumento vertiginoso das vídeo conferências.
Em um ambiente tão incerto e volátil, o conceito das competências dinâmicas do David Teece [6], é crescentemente lembrado. Aborda a capacidade de rápido remodelamento, de leitura das circunstâncias, do desapego a modelos de sucesso passados, a aceitação de erros, a escuta atenta e permanente aos stakeholders, o mergulho no valor que a diversidade pode aportar para as organizações.
Além dos desafios de planejamento, a crescente atenção de investidores ao ESG parece ter tomado dimensão inédita. Há décadas, empresas gradativamente incorporam rotinas associadas aos 3Ps do John Elkington. No entanto, a atenção da sociedade para as externalidades – impactos que vão além da produção dos bens e serviços – cresce com os meios tecnológicos disponíveis para rastreabilidade.
Imagens de satélite, com alta definição e gratuitas, permitem o monitoramento do uso do solo em tempo real. O geomonitoramento é fortalecido por iniciativas de blockchain, data mining e algoritmos. A responsabilidade por efeitos negativos ao meio ambiente ou práticas socialmente inaceitáveis é compartilhada por todos os elos de cadeias produtivas ou, muitas vezes, por setores industriais inteiros. A ampla discussão sobre o papel do agronegócio no desmatamento da Amazônia, com respingos reputacionais e comerciais em todos os envolvidos, é um exemplo.
Indústrias e empresas, queiram ou não, são avaliadas pela quantidade de emissões de gases de efeito estufa, pelo consumo de recursos naturais (água, por exemplo), pelo volume de resíduos que geram, pela capacidade de reincorporação desses resíduos em economias circulares, pelos impactos sociais, pelo bem estar animal, pela forma como se comunicam e praticam o marketing de seus produtos. A chamada licença social para operar se consolida e, mais uma vez, a complexa, ambígua e frequentemente conflituosa relação com stakeholders se impõe.
No acrônimo ESG, o “G” de governança faz imensa diferença. Conselhos precisam conhecer as externalidades geradas pelas empresas que administram. A complexidade é maior que os tradicionais mapas de riscos. Indicadores, métricas, metas, sistemáticas de avaliação de impacto e, principalmente, valoração desses impactos são necessários. O campo das externalidades gera desafios tradicionalmente não incorporados aos repertórios dos órgãos de governança. No entanto, a boa notícia é que não se restringem a efeitos negativos. Crescem oportunidades associadas ao New Green Deal, às Soluções baseadas na Natureza, à economia da restauração associada a descarbonização de setores industriais como a siderurgia, por exemplo.
Mídias tradicionais, como The Economist, tratam rotineiramente a associação da Covid-19 com a crise climática: “acompanhar a crise da Covid-19 é como apertar o botão do fast forward para ver a crise climática”. Modelos de estímulos fiscais se apresentam dentro do conceito de building back better and greener (reconstruir a economia de uma maneira melhor, mais sustentável, inclusiva e orientada para o meio ambiente). Investidores observam de perto a resiliência de organizações sob a perspectiva das externalidades, a eliminação, redução, mitigação das negativas e a incorporação das positivas em modelos de negócios e estratégias.
É no campo da governança que se debatem conceitos como capitalismo de shareholder – maximização de valor para acionistas – e capitalismo de stakeholder – maximização de valor para a sociedade. Considerando as crescentes relações entre reputação, confiança de consumidores, licença social, riscos de externalidades negativas e impactos em valor, os dois conceitos se aproximam: acionistas ganham mais se as corporações estiverem mais próximas da construção e do compartilhamento de valor para todos.
Tudo é mais global do que nunca. As fronteiras entre classes, regiões, culturas se esfarelam rapidamente. A interdependência se mostra inexorável. Os papéis de governos, inclusive dos mecanismos multilaterais crescem, com impacto nos desenhos de programas econômicos, nas questões sanitárias, na redução da desigualdade, na política climática. As conexões das ações humanas com o meio ambiente se mostram evidentes no campo sanitário, das emissões antrópicas de carbono, nos regimes de chuvas. A fragilidade humana é visivelmente explicitada por um delicado equilíbrio.
Com isso, as decisões corporativas devem contemplar não só o envolvimento de stakeholders mas também a capacidade de influenciar ambientes políticos locais, nacionais e, muitas vezes, internacionais. Neste ambiente confuso, dois campos se fortalecem: a ciência e o componente emocional nas interpretações e decisões dos diversos segmentos da sociedade. Mais uma entre tantas ambiguidades, neste caso envolvendo a racionalidade (limitada) e a sensibilidade (plena). E, sim, os negacionistas serão salvos pela ciência!
A relação com a sociedade requer como princípio básico a convivência com diferenças de posições e a aceitação de que conflitos podem ser construtivos. Esta postura é bastante contraintuitiva para as tradicionais relações de poder e controle do mundo corporativo. O conflito, se considerado como uma forma natural de ambiguidade, de diversidade nas formas de ver o mundo, pode atenuar o confronto. Para tanto, deve se fugir da busca pelo consenso, substituindo-o pelo consentimento. Será preciso conceder mais e alargar espectros de possibilidades para o estabelecimento de novas relações de confiança.
Neste alargamento de possibilidades estratégicas e de relacionamentos está a inclusão de parte relevante da sociedade não tradicionalmente identificada como fornecedor ou cliente. São os informais, os mais vulneráveis, os invisíveis, com imenso grau de interdependência com as atividades empresariais. Não se trata de filantropia. Essas pessoas fazem parte das cadeias de negócios de quase todos os segmentos. Não só por serem consumidores, mas por sustentarem boa parte das atividades empresariais, ainda que indiretamente. Parte significativa da vida das empresas, prestadores de serviço e assalariados depende, no dia a dia, de relações com trabalhadores informais.
Neste campo, há grande confusão entre ilegalidade, irregularidade e informalidade. Relacionamentos, ainda que indiretos, a ignorância estratégica das suas existências ou mesmo mecanismos de exclusão, geram efeitos relevantes nos negócios. O caso dos fornecedores indiretos de bois, alguns ligados ao desmatamento, é emblemático. Os danos reputacionais à indústria da proteína animal e ao agronegócio como um todo tem sido avassalador. Não podem ser ignorados.
Não se trata de escolher uma linha conceitual (Deming versus Rittle&Weber), de questionar a necessidade de se planejar, avaliar, medir, gerenciar, mas sim de abraçar a incerteza, valorizar a diversidade, o amplo relacionamento com a sociedade, explorar ao máximo a criatividade, a capacidade empreendedora, o erro. Trata-se de prestar atenção gerencial nas externalidades. Exige mais humildade perante planejamentos mágicos, cada vez mais sujeitos a revisões, em uma dança permanente com o imponderável.
Alguns elementos da gestão podem incluir: a) imersão profunda no longo prazo, num norte e seus impactos, alinhados com princípios e visão de mundo, do papel da organização na sociedade, b) uma boa leitura de contexto, da forma mais ampla possível, ouvindo stakeholders, valorizando a diversidade de opiniões, c) a formulação de hipóteses estratégicas, com definição de premissas claras, objetivas, d) a escolha de um caminho estratégico, fundamentado em algumas hipóteses e premissas selecionadas, e) a elaboração de um plano com a indicação de atividades, metas, prazos e indicadores de resultado, com apontamento claro dos pontos mais críticos e sensíveis. As metas devem ser mais aderentes aos distintos tempos de maturação das atividades, f) monitoramento permanente do contexto e atenção em como as mudanças do ambiente externo podem afetar o plano de trabalho, g) a disposição de alterar o mais rapidamente possível o plano original, vencendo as tradicionais resistências fundamentadas na ilusão de que planos devem ser rígidos, sólidos, modificáveis apenas em último caso. Revisitar frequentemente o conjunto de hipóteses formuladas e respectivas premissas pode ser útil.
É evidente que esta abordagem mais flexível precisa ser acolhida pelos órgãos máximos de governança, frequentemente emissores de sinais trocados, mais voltados para o binômio Orçado x Realizado (OxR) do que para a discussão permanente do contexto em que a organização está. Sistemas de incentivos precisam ser coerentes com esta dinâmica.
Uma boa antecipação da necessidade de mudanças de rumo vale mais que uma pontuação precisa no OxR. Problemas indomáveis gerarão naturalmente a sensação de erro, de incapacidade de planejar. Desvios de rota e erros bem discutidos, resultando em aprendizados relevantes, valem mais que erros escondidos num buraco onde várias cabeças de avestruz se encontram para infrutíferos debates sobre culpas e desculpas.
E, sim, pode ser bem divertido!
Notas:
[1] William Edwards Deming estatístico, professor das universidades do Colorado e Yale, musico, reconhecido pela melhoria dos processos produtivos nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e pelo seu trabalho no Japão no campo da gestão de projetos, qualidade e vendas, através de métodos estatísticos. É considerado o estrangeiro que gerou o maior impacto sobre a indústria e a economia japonesa no século XX.
[2] Wicked problems foram conceitualmente sugeridos por Horst Rittel e Melvin Webber professores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1973. Atuavam na área de políticas sociais em sociedades plurais, concluindo que não havia sentido na busca de soluções inquestionáveis para situações que envolviam bens públicos. No lugar da busca por soluções definitivas uma abordagem que aceite, em tempo real, as limitações da racionalidade.
[3] Nassim Taleb atua no mercado financeiro, é ensaísta, matemático e professor da New York University. Seus livros tratam das incertezas e grandes eventos imprevisíveis, os “cisnes negros”, com consequências transformadoras.
[4] John Elkington é autor de mais de 20 livros sobre sustentabilidade, criador do termo Triple bottom line ou “tripé da sustentabilidade”. É um dos precursores dos debates e conceitos de responsabilidade socioambiental corporativa.
[5] Mervyn King foi um dos criadores da GRI – Global Reporting Initiative e do IIRC – International Integrated Reporting Council. Sul-africano, foi juiz da corte suprema daquele país. É autor do King Report, uma referência mundial em governança corporativa. John Key é um dos principais economistas britânicos, professor da University of Oxford e London School of Economics, com contribuições importantes para as relações entre economia, finanças, negócios e gestão pública.
[6] David Teece é professor de Berkeley, Califórnia, com centenas de artigos nas áreas de estratégia, competição e inovação. Por mais de 10 anos, na virada do século, seu texto sobre capacidades dinâmicas foi globalmente o mais citado nas áreas de economia e administração de empresas. O foco principal trata da necessidade das empresas em serem ágeis em incorporar mudanças em ativos tangíveis e intangíveis, para se manterem competitivas.
*Roberto S. Waack é empresário e conselheiro de organizações
[Foto: Fallon Michael/ Unsplash]