Sem acesso à educação pelas mãos do Estado e, consequentemente, sem chances de obter renda e vida digna, ex-detentas continuam padecendo, uma vez que a sociedade não tem criado condições para a ressocialização. Mas como ressocializar quem nunca foi socializado? Uma saída está no empreendedorismo por meio de cooperativas
Angústia. Foi este o sentimento da produtora Luíza Damião ao entrar na penitenciária pela primeira vez. A palavra é forte, mas precisa, e reflete o sentimento que muitos de nós, isolados em nossas bolhas socioeconômicas, sentimos ao nos depararmos com tamanho choque de realidade. Eu não fui exceção – e esse estado se repetiu quando estive em cada uma das prisões onde desenvolvemos o projeto “Empreendedorismo Atrás e Além das Grades”.
Luíza esteve na unidade em questão exatamente para contar a história dessa iniciativa. Ela foi uma peça-chave na construção do documentário Tecendo a Liberdade, que narra a trajetória das Cooperativas Sociais aceleradas pelo Instituto Humanitas360 em duas unidades prisionais, localizadas em São Paulo e no Maranhão.
Se entrar no cárcere como fizemos durante a produção – a trabalho e por um tempo limitado – já é uma experiência capaz de mexer com sentimentos profundos, imagine ser parte integral dele, como as mais de 42 mil mulheres privadas de liberdade no Brasil, segundo dados de 2018 da Ifopen, plataforma de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro.
Segundo a instituição, essas mulheres para quem o céu é um quadrado azul são, em sua maioria, jovens e negras: 25,22% possuem entre 18 e 24 anos; 22,11% estão na faixa de 25 a 29 anos; e 63,55% se declaram pretas ou pardas. Os principais delitos cometidos por elas são o tráfico (64%) e roubo ou furto (15%) – crimes frequentemente motivados pela necessidade de alimentar suas famílias ou por influência de parceiros também envolvidos na criminalidade.
Ao mesmo tempo em que perdem a liberdade, recebem a tarja de criminosas, um rótulo que a sociedade insiste em não retirar jamais. Um dia, as portas da prisão se abrem, mas a do emprego e da ressocialização seguem fechadas, criando a fórmula perfeita para a reincidência.
Esse triste cenário impacta a vida de muitas pessoas porque o Estado se furtou, antes, de dar a essas mulheres oportunidades de educação e, consequentemente, chances de obter renda e a possibilidade de uma vida digna. No segundo momento, o ciclo perverso se completa, pois a sociedade como um todo não tem sido capaz de criar condições para a ressocialização. Não é exagero, de forma alguma, dizer que o erro está no princípio. Afinal, como ressocializar quem nunca foi socializado?
Atrás das grades estão mulheres que não estudaram: 62,4% não completaram o Ensino Médio, sendo que 44% não chegou sequer a completar o Ensino Fundamental (dados de junho de 2017, segundo o Infopen de 2019. São mães-solo, que não contam com apoio de companheiros ou família, e das 74% possuem filhos e 62% são solteiras (Infopen Mulheres 2018, com dados de 2016).
No momento em que se tornam um número no sistema prisional, elas deixam, inclusive, de receber visitas. Nas portas das penitenciárias femininas não há longas filas de barracas aos fins de semana e, quando vai alguém, são mães, tias, irmãs. Muito raramente se veem figuras masculinas.
O cárcere é um ambiente de solidão e desconfiança. Para iniciar os projetos de cooperativas sociais ou começar as gravações do Tecendo a Liberdade foram necessárias, antes, etapas de aproximação, conversas e criação de elos. Essas mulheres estão acostumadas a serem abandonadas e isso as torna arredias, com certa razão. Mas, uma vez que elas entendem o projeto e passam a acreditar no caminho que a escolha pela Cooperativa pode representar, sentindo-se acolhidas pelo suporte na readaptação à liberdade e a abertura de novas perspectivas, a postura muda.
Nas Cooperativas, elas tecem bolsas, tapetes, almofadas e também seus destinos. São empreendedoras e aprendem a dividir e colaborar – outra lição que, para muitas, nunca foi ensinada. São nascidas e moldadas em mundos difíceis e violentos, mas a mudança é possível quando existe a oportunidade.
No Tecendo a Liberdade – que, de antemão, convido todos a assistir – as falas transmitem esperança e os sorrisos mostram a importância em saber de onde sairá o seu sustento e de seus filhos na hora da soltura. Revelam a confiança e segurança pela consciência de que, mesmo se todas as outras portas estiverem fechadas, uma já está aberta, e são elas mesmas as donas da chave.
Falar de mulheres encarceradas significa trazer à tona os contrastes de um sistema social pautado em desigualdades raciais e de gênero. Um sistema infrutífero, perpetuador da violência e validador do crime, que não trabalha a mudança de comportamento por incentivos positivos, mas sim incluindo os indivíduos em situações de ameaça e castigo. Um sistema do qual elas são, ao mesmo tempo, a base e a consequência mais cruel.
Falar de cooperação em um espaço como esse é subverter, unir umas às outras como uma trama de tecido, formando vínculos e tirando-as do lugar de isolamento e submissão. Estamos socializando pessoas para que teçam, cada uma a seu modo, suas liberdades e seus futuros.
*Patrícia Villela Marino é co-fundadora e presidente do Instituto Humanitas360, reconhecida com o Prêmio Humanitário 2020, concedido pelo The Trust for the Americas, afiliada da Organização dos Estados Americanos (OEA).