Ao mesmo tempo em que se desenvolvem embalagens mais leves, que garantem maior conservação do alimento, menores perdas e expressivos ganhos na logística, as inovações tornam praticamente impossível a reintegração da embalagem pós-consumo na cadeia de reciclagem
Ao fim de 2020, enquanto diversos setores produtivos patinavam ou enfrentavam grandes perdas financeiras, o setor de embalagens mostrava números surpreendentes para um ano marcado pelos impactos econômicos e sociais da pandemia. Dados da Associação Brasileira de Embalagens de Papel mostravam um expressivo aumento de 5,5% da venda de embalagens, impulsionado pelo grande crescimento da demanda a partir de julho de 2020. O consumo de 3,8 milhões de toneladas de caixas e papel ondulado foi o maior registrado desde o início da série em 2005. Também o setor de embalagens plásticas flexíveis superou de longe o desempenho da indústria como um todo. No terceiro trimestre de 2020, a produção de 562 mil toneladas representou uma alta de 8,8% quando comparado com o trimestre anterior.
Grande parte desse boom de embalagens, em plena crise econômica, é explicado pelo novo padrão de consumo que turbinou as atividades de delivery. Também o auxílio emergencial contribuiu para o bom desempenho do setor de alimentos, higiene e bebidas impactando positivamente o setor de embalagens como um todo.
As entidades representativas do setor celebram esses números indicando que a sociedade brasileira aprendeu a importância vital de embalagens na economia moderna e pandêmica. Em texto postado pela Associação Brasileira de Embalagens (Abre), o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Embalagens Flexíveis (Abief), Rogério Mani, comenta que o “plástico deixou de ser o vilão e voltou a ser reconhecido como um material nobre e de valor imensurável no cotidiano das pessoas, com ênfase à proteção dos alimentos e garantia de acesso a medicamentos”.
O empresário, no entanto, reconhece que há muitos desafios a serem vencidos, entre eles como garantir a maior circularidade destas embalagens. Projeta que o desenvolvimento de embalagens caminhará nessa direção, ao ampliar o uso de conteúdo reciclado e privilegiar o emprego de embalagens monocamadas, facilitando o processo de reciclagem desse material e, ao mesmo tempo, “garantindo segurança alimentar, proteção dos produtos, otimização logística e comunicação adequada com os consumidores” (mais aqui).
O tom otimista dos representantes do setor, no entanto, parece encontrar pouco respaldo na realidade do padrão de desenvolvimento de embalagens no Brasil e no mundo. Este padrão é marcado pelo o que pode ser denominado um paradoxo das embalagens.
De um lado, as atividades de pesquisa e desenvolvimento no setor tem possibilitado o desenvolvimento de embalagens mais leves, com melhores propriedades físico-químicas, que garantem maior conservação do alimento, menores perdas e gerando expressivos ganhos nas atividades logística. Isso pode ser observado no exemplo da evolução das embalagens PET e a redução significativa do seu peso desde seu lançamento no mercado desde que chegou ao Brasil na década de 1980 (figura abaixo).
Verdade que, no caso da PET, há uma situação que pode ser considerada como uma win win strategie. Além dos expressivos ganhos econômicos alcançados com a redução de peso e insumos na sua fabricação, os avanços tecnológicos favorecendo a reciclagem desse material permitiram um crescimento significativo da coleta e reaproveitamento desta matéria-prima para diferentes finalidades, como fibra têxtil, fabricação de tintas e tubulação de esgotamento sanitários (gráfico abaixo).
Do outro lado, a integração de objetivos econômicos, ambientais e sociais mostra-se uma realidade distante para uma grande parcela de embalagens disponibilizadas no mercado. Cada vez mais, o padrão de desenvolvimento de embalagens favorece o uso de estruturas complexas e multicamadas. Embalagens comercializadas que tem em sua composição alumínio, papel/cartão, tintas, vernizes, entre outros produtos em sua composição. Muitas vezes estas estruturas multicamadas logram melhorar seu desempenho na atividade de transporte e no processo de conservação, ao mesmo tempo que tornam praticamente impossível a reintegração da embalagem pós-consumo na cadeia de reciclagem.
Em 2018, a Associação de Reciclagem do Reino Unido passou a criticar duramente a embalagem Pringles da Kellogg’s e sua falsa propaganda de reciclagem. Para os representantes da associação inglesa, a embalagem em formato de tubo é feita com uma base de metal, uma tampa plástica e tem a parte do corpo externo coberta de papelão e a interna com papel laminado, praticamente inviabilizando a reciclagem e contrariado os princípios da economia circular.
Críticas ácidas também foram feitas a pretensa inciativa da Kellogg’s de coleta e reciclagem dos tubos Pringles em parceria com a Terracycle, famosa empresa internacional que promove reciclagem de diversos produtos. Para a Associação de Reciclagem, o incentivo aos consumidores para remeter gratuitamente embalagens Pringles pelo correio para serem transformadas em novos produtos, como bancos ou postes, era apenas um desserviço da empresa para encobrir sua falta de compromisso com um processo efetivo de economia circular.
Os problemas apontados no caso da Pringles estão longe de ser um caso isolado, quando se considera o que pesa mais na hora do setor privado adotar inovações em suas embalagens. Uma pesquisa feita na Holanda para identificar como a Lei de Responsabilidade Estendida do Produtor, que define que o produtor deve se responsabilizar pelo ciclo de visa do produto, incluindo coleta, reciclagem e disposição final, havia incentivado o processo de inovação de embalagens, favorecendo sua circularidade, identificou avanços menores do que o esperado.
Do total de 94 inovações identificadas em embalagens, 64% favoreciam a eficiência de material, destacando-se redução de peso e espessura com 34 iniciativas. Já inovações mais comprometidas com a circularidade representavam 36%, concentrando-se na integração de conteúdo reciclado com nove iniciativas, duas iniciativas para reuso, uma iniciativa para favorecer o uso materiais únicos nas embalagens e mais uma para reuso (1). Frente ao cenário mundial de desenvolvimento de embalagens, é importante entender como essa tendência afeta a cadeia de reciclagem brasileira com suas especificidades (2).
Em primeiro lugar, seguindo este padrão mundial, as embalagens multicamadas são as mais presentes no conjunto de embalagens plásticas flexíveis no mercado brasileiro, representando 33% do total. Em segundo lugar, a principal iniciativa para ampliar a coleta seletiva e reciclagem é o Acordo Setorial de Embalagens, lançado em 2015 por 20 associações empresariais, conforme previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Apesar de celebrado pelos seus integrantes como um grande compromisso empresarial em prol da sustentabilidade na cadeia de reciclagem de embalagens, pouco contribuirá para o desenvolvimento de materiais comprometidos com os objetivos da economia circular. O acordo que prevê a ampliação da coleta de embalagens presentes nos resíduos domiciliares de 22%, em 2015, para 45%, em 2031, por meio de investimentos em ampliação de Pontos de Entrega Voluntária e investimentos em novos equipamentos em cooperativas para favorecer o aumento do material triado nas cooperativas.
Embora seja positivo no sentido de ampliar a renda nas cooperativas pela chegada de maior volume de resíduos, a solução compartilhada encontrada pela indústria não impacta os custos das empresas de forma significativa a ponto de influenciar inovações na composição e design das embalagens que facilitem o processo de reciclagem.
De fato, o Acordo Setorial privilegiou os aspectos econômicos relacionados à divisão dos custos entre as empresas para cumprir a legislação e focou na coleta e não efetivamente na reciclagem. Tende a beneficiar somente as embalagens já com cadeias mais estruturadas como alumínio, PET e papelão e, dessa forma, beneficiar também as cooperativas de catadores. Porém, com esse material chegara também às cooperativas um volume crescente de embalagens complexas que não apresentam viabilidade para seu reaproveitamento para cadeia de reciclagem. Este processo em curso, bem antes da Covid-19 chegar ao Brasil, se acentuou com a pandemia.
Poucos profissionais da cadeia de reciclagem entendem tão bem esta realidade como os próprios catadores. Em entrevista para a National Geography em 2020, uma catadora resumiu de forma simples o cenário: “tenho visto, no dia a dia, o aumento de plásticos, mas de descartáveis. Por causa do novo hábito das pessoas de pedir delivery, de se alimentar em casa. Mas, para nós, catadores, é considerado lixo porque não tem reciclagem”.
Nesse quadro, é preciso aprimorar a PNRS e o acordo setorial proposto. Da forma como está, parcelas crescentes de embalagens, vendidas ao consumidor como material reciclável, se transforam nas cooperativas de reciclagem em insumos não comercializáveis e, por isso, na realidade tecnológica do mercado de reciclagem se tornam apenas rejeitos ao final do processo de separação. Este processo, que não encontra eco nos debates da gestão pública e privada, impacta negativamente os custos da coleta seletiva e sua efetividade.
Retira-se resíduos recicláveis e não comercializáveis dos domicílios, transporta-se para cooperativas e, finalmente, quando se tornam efetivamente rejeitos, pela impossibilidade de comercialização, são levados para o aterro sanitário. Nesse cenário, há uma irracionalidade da gestão de parcela dos materiais coletados e gerenciados nos processos de coleta seletiva que em nada dialogam com os objetivos da economia circular.
Reverter este quadro demanda responsabilizar efetivamente quem produz e utiliza embalagens complexas na comercialização de produtos. O ecodesign e a priorização do reaproveitamento de embalagens pós-consumo precisam ser tão importantes como as melhorias de peso, espessura e conservação, tornando o processo de coleta seletiva e reciclagem comprometidos com a circularidade, favorecendo a eficiência do processo e a ampliação de renda para os catadores.
*Jacques Demajorovic é professor do Programa de Pós-graduação em Administração/Centro Universitário FEI
[Foto: Unsplash]
(1) Demajorovic, J.; Massote, B. Acordo setorial de embalagens: avaliação a luz da responsabilidade estendida do produtor. Revista de Administração de Empresas, v. 57, n. 5, 470 a 482, 2017.
(2) Sluisveld, M., & Worrell, E. (2013). The paradox of packaging optimization: A characterization of packaging source reduction in the Netherlands. Resources, Conservation and Recycling, 73, 133-142. doi:10.1016/j.resconrec.2013.01.016