Lançado em fevereiro, o Relatório Dasgupta postula que a ciência econômica deve começar a mensurar a conservação da biodiversidade – e a Amazônia tem muito a ganhar
Por Andrea Vialli
A humanidade depende diretamente da natureza para funções tão essenciais quanto respirar e se alimentar, mas a ciência econômica contemporânea falha em incorporar o meio ambiente aos seus modelos macroeconômicos e financeiros. A destruição da natureza aumenta o Produto Interno Bruto (PIB) dos países, mas sua conservação ainda não é satisfatoriamente monetizada. Esse paradigma precisa mudar, de forma que os países incluam a natureza como um ativo econômico em suas projeções.
Essa é uma das principais mensagens do Relatório Dasgupta, uma revisão acadêmica de mais de 600 páginas coordenada pelo economista Sir Partha Dasgupta, professor emérito de economia na Universidade de Cambridge. Encomendado pelo Tesouro Britânico e lançado no início de fevereiro, o relatório tem sido considerado um marco ao estabelecer relações entre a economia e a biodiversidade, tal como o Relatório Stern o fez com a mudança climática, em 2006.
O Relatório Dasgupta enquadra a natureza como um bem, mas sublinha que ela tem um valor intrínseco que extrapola o valor de uso. “A floresta amazônica convertida em plantios ou criação de gado reflete o que chamamos de valor de uso. Mas muitas coisas na natureza têm valor de não uso e estão sendo extintas, de forma que há uma perda maior do que se consegue estudar” explica Dasgupta, convidado da terceira plenária de 2021 da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, realizada de forma virtual em 19 de abril.
Outro exemplo de valor que vai além do seu uso é o Rio Ganges, na Índia. “A sociedade elege alguns ecossistemas como sagrados: o Ganges é provavelmente o rio mais poluído do mundo e, no entanto, ele tem um valor intrínseco, que é maior do que o rio efetivamente provê aos moradores de suas margens ou produtores rurais”, diz.
A natureza, segundo Dasgupta, tem processos invisíveis e silenciosos, o que dificulta a precificação e o controle dos direitos de propriedade. Os oceanos e a atmosfera são bens públicos globais, assim como as florestas tropicais, mas os dois primeiros são de acesso público, enquanto as florestas estão sujeitas a determinadas jurisdições. Os países clamam a propriedade sobre elas – basta ver o debate sobre a soberania brasileira no enfrentamento às questões da Amazônia.
A solução para isso seria a criação de um movimento ou uma instituição transnacional, que faria o papel de remunerar jurisdições nacionais pela conservação desses bens globais, em um modelo de pagamento por serviços ecossistêmicos em nível global. Esse arranjo proveria benefícios tanto para frear a perda da biodiversidade quanto para o combate às mudanças climáticas e precisa entrar nas discussões das duas COPs (Conferência das Partes das Nações Unidas), sobre diversidade biológica e mudança climática, que serão realizadas ao longo deste ano.
O relatório aponta que, entre os anos de 1992 e 2014, os processos de produção e consumo no mundo todo foram responsáveis pela perda de 40% dos estoques de capital natural per capita, e propõe que os governos criem um novo modelo de contabilidade nacional para o PIB que inclua o esgotamento dos recursos naturais na equação. Dasgupta ressalta também o papel das democracias sólidas e do engajamento dos cidadãos para a conservação da natureza, dando voz especialmente aos que vivem em seu seio, como os produtores rurais e as populações ribeirinhas e indígenas. “Qualquer uso racional da natureza requer uma permissão local”, afirma o autor.
As ideias de Dasgupta encontram ressonância no clamor dos povos originários para que façam parte da tomada de decisão sobre seus territórios. Na Amazônia brasileira, os indígenas e seus descendentes lutam para ser ouvidos e têm descoberto que um dos meios para isso são as manifestações artísticas. “Quem vive na Amazônia percebe que existe urgência em falar sobre ancestralidade, cultura e arte. São caminhos para levar mensagens e criar diálogos sobre nossa realidade”, diz a artista plástica manauara Rakel Caminha.
As criações da artista falam sobre questões sociais, ecológicas e pertinentes ao universo feminino e é dela a arte da capa do single Hutukara, da banda amazonense Marambaya, que abriu a plenária. Hutukara significa “a parte do céu da qual nasceu a terra” e exprime uma parte da cosmovisão dos povos da floresta. “Hutukara é como se fosse um corpo onde todo mundo vive, não existe o ‘fora’ – tudo é troca, e precisamos trocar com a natureza. Da mesma forma, a Amazônia é reflexo do que são as pessoas que vivem nela, as várias culturas interligadas, ao mesmo tempo que ela é global”, explica Caminha.
A responsabilidade do setor financeiro
Conectar a frieza e o pragmatismo do sistema econômico com os saberes dos povos da floresta soa como um desafio intransponível, mas pode ser uma solução para os dilemas da Amazônia. Enquanto o Relatório Dasgupta levanta a lebre de que os modelos econômicos estão falhando ao não considerar a natureza um grande ativo, o próprio setor financeiro está descobrindo que, para colaborar com o desenvolvimento sustentável da Amazônia, será preciso modificar a forma de fazer negócios.
“É um desafio moral para os bancos”, resume Sérgio Rial, CEO do Santander Brasil desde 2016 e diretor do Santander Internacional desde 2018. Entre as tarefas que as instituições financeiras têm à sua frente, estão criar uma rede de atendimento com capilaridade na Amazônia que torne possível o entendimento das peculiaridades das cadeias produtivas da floresta e possa direcionar crédito para esses empreendimentos; o apoio à regularização fundiária, crucial para a expansão dos financiamentos, e o combate ao desmatamento ilegal em cadeias produtivas estruturadas, como a da carne bovina.
Todas elas fazem parte do plano integrado entre os três maiores bancos privados do País – Santander, Bradesco e Itaú Unibanco – que se uniram no ano passado para fazer frente aos desafios de conservação do bioma amazônico. O Plano Amazônia, como foi batizada a iniciativa, prevê dez medidas a serem tomadas pelos bancos: indústria frigorífica e desmatamento; apoio financeiro e não financeiro às culturas sustentáveis; infraestrutura de transporte; infraestrutura social; mercado de ativos ambientais; mudanças climáticas; inclusão e orientação financeira; regularização fundiária; incentivo a projetos de desenvolvimento local e bioeconomia.
Outra novidade foi a criação de um conselho consultivo independente para orientar as ações, que reúne membros de organizações que atuam na Amazônia, academia, empresários e produtores rurais da região e intelectuais.
Das dez medidas do Plano Amazônia, quatro foram eleitas prioridade pelas instituições financeiras: indústria frigorífica e desmatamento, apoio financeiro e não financeiro às culturas sustentáveis, regularização fundiária e bioeconomia. O combate ao desmatamento ilegal na cadeia da carne bovina levou os três bancos privados a realizar reuniões com as três principais empresas de proteína animal que compram gado no bioma amazônico – JBS, Minerva e Marfrig, que juntas, respondem por 35% da produção de carne do País – para busca de soluções conjuntas.
Embora essas companhias tenham avançado na rastreabilidade da cadeia produtiva, ela continua sendo a principal dificuldade na busca pela conformidade. Ainda há lacunas na rastreabilidade dos fornecedores indiretos, especialmente nas fazendas de cria, que produzem os bezerros, que são o primeiro elo da cadeia. Depois esse gado será vendido para as fazendas que fazem a recria e engorda e fornecem diretamente para os frigoríficos. Esse modelo cria margem para a prática de “esquentar o gado” – ao repassar os bezerros aos produtores regularizados, os pecuaristas que estão envolvidos em infrações saem do radar dos grandes frigoríficos.
De acordo com Rial, na conversa entre os seis CEOs (dos bancos e dos frigoríficos), as empresas de carne reconheceram seu papel de liderança no fomento à rastreabilidade na cadeia, e uma das ações concretas será a implementação de escritórios técnicos na Amazônia Legal, com o objetivo de ajudar os pecuaristas a entender a importância de buscar a sua conformidade e dar meios para que isso ocorra. Da parte dos bancos privados, além do Banco da Amazônia, o papel será de apoiar financeiramente os produtores para sua regularização, além da articulação entre empresas e associados para um compromisso setorial.
“Não podemos financiar algo ilegal, mas podemos, junto às autoridades públicas, ser parte da solução com financiamento diferenciado para situações onde, comprovadamente, há a busca de ‘concertação’ com os devidos acordos”, afirma Rial.
Outra contribuição do grupo dos bancos será a conclusão de um estudo sobre regularização fundiária que será entregue ao Senado, Câmara dos Deputados, Presidência da República e governadores dos estados da Amazônia Legal com o arcabouço legal e recomendações para regularização fundiária e territorial na Amazônia. O estudo foi um trabalho pro bono realizado por três grandes escritórios de advocacia de São Paulo e ficará à disposição das autoridades.
No campo do fomento à bioeconomia e às cadeias produtivas da região, os bancos pretendem estruturar linhas de crédito independentes para cooperativas e agroindústrias que trabalham com produtos amazônicos com práticas sustentáveis; no caso do Santander, está sendo criada a Rede Norte Amazônica, que expandirá o atendimento do banco espanhol na região com ênfase na força de trabalho local.
Isso vai representar uma quebra de paradigma da estrutura de capital humano dos bancos, cuja mão de obra, historicamente, é formada por pessoas transferidas de outras partes do País e dissociadas da realidade local. Rial prevê que sejam necessárias pelo menos 1 mil pessoas trabalhando nas capitais e no interior da Amazônia para se começar a fomentar as culturas locais.
Mas a aposta nas cadeias produtivas da Amazônia deve priorizar a agregação de valor dos produtos e tomar inspiração no modelo da Zona Franca de Manaus (ZFM), na visão da economista Rebecca Garcia, diretora de desenvolvimento de negócios do grupo GBR, que produz componentes eletroeletrônicos, modens e celulares no polo industrial de Manaus.
Criada em 1967, a ZFM foi estabelecida com o intuito de fomentar o desenvolvimento econômico da região Norte por meio de incentivos variados que atraíram grandes empresas de bens de consumo, contribuindo para fixar a população nessa parte do País com a oferta de empregos, além da proposta de substituição de importações. Hoje, com mais de 500 empresas instaladas, é um dos principais polos industriais da América Latina e responsável por mais de 90% do ICMS arrecadado no estado do Amazonas.
Romantização dos produtos da floresta
Para Garcia, a aposta na bioeconomia da Amazônia deve incorporar o know-how da ZFM para atração de grandes empresas. “O modelo ZFM já está instalado, desenvolveu e gera empregos na região e contribuiu para a preservação das florestas. Hoje não há um produto primário que possa substituir o que a indústria faz na região amazônica”, diz Garcia, que esteve à frente da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) entre 2015 e 2017.
Segunda ela, existe uma romantização em torno da narrativa de que, bem azeitadas, as cadeias produtivas de produtos amazônicos tais como o cacau, o açaí e a castanha, entre outras, possam se tornar um vetor definitivo para o desenvolvimento da região. Ela comparou a produção de televisores no polo industrial de Manaus, que gera um faturamento anual da ordem de R$ 13,2 bilhões/ano (com base na produção de 12 milhões de TV/ano), com o açaí, que é uma das cadeias mais bem estruturadas da região e rende R$ 131,5 milhões/ano, levando-se em conta o preço de R$ 250 para a saca de 80 kg do produto e a produção do Amazonas, estimada em 43,8 mil toneladas.
“O faturamento do açaí não representa 1% do que a produção de televisores representa para a região amazônica”, ressaltou. No médio e longo prazo, porém, essas cadeias podem ser viabilizadas, desde que sejam trabalhadas na lógica do modelo ZFM com a atração de grandes laboratórios e agregação de valor aos produtos.
Na prática, o caminho seria utilizar o açaí e outros produtos amazônicos como insumo para indústrias a partir de um projeto de P&D: transformar a produção de açaí em extrato e passar a vender a antocianina presente no fruto, viabilizando um projeto de bioeconomia, por exemplo. Segundo Garcia, as indústrias de fármacos e cosméticos poderiam ser vetores desse investimento, pois são setores já regulamentados pela ZFM.
As características que tornaram bem-sucedido o projeto do polo industrial de Manaus, em meados da década de 1960, foram a atração de indústrias capital intensivas (negócios que demandam grandes investimentos para sua operação), a oferta de benefícios, como a isenção de tributos, de modo a gerar excedente econômico na região.
Além da jabuticaba
Quais outras atividades podem ser desenvolvidas em escala na Amazônia, de forma competitiva, é a pergunta que precisa ser feita, de acordo com Joaquim Levy, diretor de estratégia econômica e relações com o mercado do Banco Safra. De acordo com o ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do BNDES, o modelo ZFM precisa ser atualizado e otimizado para permitir a atração de investimentos em atividades que permitam gerar riqueza com a floresta em pé. “No caso específico da Zona Franca de Manaus, temos que observar como a riqueza gerada e distribuída na região pode irrigar outras atividades que tragam inovação, como a própria bioeconomia”, afirma.
A criação de um mercado de carbono é uma possibilidade, mas tropeça na falta de um arcabouço institucional que permita criar mecanismos em que a preservação da floresta seja compensada. Hoje, existem alguns projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD, na sigla em inglês) ainda muito limitados, e outros de pagamento por serviços ambientais, mas dar escala a essas iniciativas passa pela criação de um mecanismo de mercado que funcione em nível global e traga um fluxo de recursos para a Amazônia – o primeiro passo seria a estruturação desses mecanismos no âmbito do Ministério da Economia.
“Temos que focar, e muito rapidamente, em mecanismos de mercado, mas não só mecanismos ‘jabuticaba’, que funcionem aqui dentro. Será preciso demonstrar que eles são um meio legítimo de remuneração de atividades sustentáveis”, defende Levy.
A retomada global dos mercados de carbono deverá ser um dos grandes temas da COP 26, sobre mudança climática, a ser realizada em novembro em Glasgow, Escócia. Até lá, o Brasil tem a chance de demonstrar ao mundo que a Amazônia age para a atenuação dos impactos climáticos e no provimento de serviços no ciclo do carbono e da água, e que é legítimo pleitear ser remunerada por isso. Sob as bençãos do Relatório Dasgupta, os incentivos econômicos devem trabalhar a favor, e não contra a biodiversidade e o clima.