Conter a destruição passa por enfrentar um desafio de natureza simbólica e cultural: (re)conhecer a Amazônia e incorporá-la à nossa ideia de nação e brasilidade
Por Andrea Vialli
Um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, capaz de gerar prosperidade para seus mais de 24 milhões de habitantes mantendo a floresta em pé, passa, necessariamente, pela atualização de um novo imaginário sobre a região e seus povos. A tarefa não é simples: exige trazer à tona e retratar a invisibilidade de grande parte da população que compõe essa história e romper com a ideia, ainda muito presente, de que é preciso “desbravar” a região por meio da modificação radical de sua paisagem. As informações sobre o momento presente da Amazônia podem ser um ponto de partida para se criar uma nova visão de futuro, amparada pela ciência, a cultura, a arte, a política e o ativismo, mas sem se esquecer e até mesmo ousando reescrever o passado.
“A Amazônia ainda é um imenso arrabalde e a tarefa do Brasil é transformá-la em casa, em lar”, sintetiza o documentarista João Moreira Salles, um dos convidados na plenária da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, realizada virtualmente em 17 de maio. Salles é também fundador da revista Piauí, onde assina a série de reportagens Arrabalde, que narra histórias de como a maior floresta tropical do mundo vem sendo percebida pelas pessoas que se relacionam com ela, desde o século XVI.
O título da série veio durante os seis meses que Salles passou no Pará e resume parte das contradições amazônicas: no dicionário, arrabalde é “parte de uma cidade ou povoação que fica fora ou nas adjacências de seus limites; subúrbio; lugar muito afastado do centro; arredor, cercania”.
Como grande parte dos brasileiros, Salles reconhece que levou mais de 50 anos para pisar na Amazônia e encarar seus contrastes – as grandes áreas de floresta preservada e também a enorme porção devastada, a agropecuária moderna e a obsoleta, o garimpo, a mineração, os fazendeiros que repetem variações da expressão “quando cheguei aqui, não tinha nada”, que sintetiza o quanto a floresta ainda é vista como “um nada” também por seus moradores. “Para grande parte dos brasileiros, a Amazônia é longe, é o arrabalde.
Mas é arrabalde também para pessoas que vivem lá, especialmente nas áreas urbanas, onde a conexão com a floresta é quase inexistente”, diz o documentarista. A exceção são as pessoas que vivem em comunhão com ela, como populações indígenas, ribeirinhos, quilombolas, ambientalistas e quem busca pensar a floresta. “Não se soube incorporar a floresta à vida de quem está lá, nem à nossa imaginação de brasileiros”, completa.
Isso é agravado pelo fato de todo o projeto de Estado brasileiro para a Amazônia ter sido calcado na substituição da floresta por qualquer coisa que não seja a floresta – soja, gado, estrada, hidrelétrica, mineração, com uma fronteira sempre aberta e a anuência do governo de Jair Bolsonaro, que compactua com essa visão.
Para o documentarista, a ocupação tão descuidada da Amazônia se ampara em uma ignorância quase funcional sobre as possibilidades e oportunidades da floresta, que facilita a sua destruição. Conter a destruição passa por enfrentar também esse desafio de natureza simbólica e cultural: incorporar a Amazônia à nossa ideia de nação, de brasilidade – mas na ação, não apenas no discurso para estrangeiro ver.
O resgate da memória de todos os povos que habitam a Amazônia faz parte da (re)construção desse novo imaginário para a região. Além das populações indígenas e ribeirinhas, é fundamental devolver o protagonismo do povo negro que habita a Amazônia desde o século XVI e padece de grande invisibilidade.
Uma das peculiaridades da escravidão no Brasil foi a sua disseminação por todo o território nacional, não apenas nas áreas produtoras de bens destinados à exportação, como o ouro nas Minas Gerais, o café em toda a região Sudeste e a cana-de-açúcar no Nordeste. Documentos comprovam a atuação de negros escravizados na região do Grão-Pará (que, em sua maior extensão, compreendia os atuais estados do Amazonas, Roraima, Pará, Amapá e Piauí) e do Maranhão, com o estabelecimento de experiências de cultivo de algodão, cana-de-açúcar e arroz, e posteriormente também tabaco e cacau.
A mão de obra dos negros escravizados também foi muito utilizada para a construção de fortes e fortalezas, sobretudo para barrar as invasões francesas. “A escravidão africana torna-se mais evidente no século XVIII na região amazônica. Quem visitar as docas do mercado Ver-O-Peso, em Belém, não imagina que lá se instalou um grande entreposto negreiro ainda na época colonial”, afirma a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
Eles vinham da Costa da Mina (litoral da África ocidental) Alta Guiné, Senegal, Gâmbia, e África Central (Angola, Congo). Um documento datado provavelmente de 1662 afirmava que os negros da costa da Guiné deveriam ser encaminhados para o Maranhão por serem bons trabalhadores; outro documento, de 1682, aborda a escravidão em Belém e São Luís; em 1670, mais uma fonte aponta que os primeiros africanos teriam se dirigido para municípios no Maranhão.
Personagens trazidos à luz
Recém-lançada, a obra Enciclopédia Negra: Biografias afro-brasileiras (Companhia das Letras, 2021), da qual Schwarcz é coautora, busca promover o reencontro do Brasil com a memória de mais de 500 pessoas negras silenciadas, muitas delas na Amazônia. Além da historiadora e antropóloga, o projeto tem autoria de Flávio dos Santos Gomes, historiador especialista em quilombos, e Jaime Lauriano, intelectual e artista.
Durante sete anos, os autores se debruçaram sobre a história de 550 personagens apagados pela versão oficial. São ativistas, revolucionários, lideranças religiosas, curandeiras, comerciantes e mães que lutaram pela alforria de suas famílias.
O projeto convidou 36 artistas negras e negros para dar rosto a esses novos heróis, que culminou com a doação de 103 telas para a Pinacoteca de São Paulo, que abriga a exposição de mesmo nome, em cartaz até novembro de 2021. As telas comporão o acervo de retratos e possibilitaram triplicar o número de obras de artistas negros no museu, que passaram de 26 para 129 obras.
Entre os personagens históricos retratados na Enciclopédia Negra estão o Trajano, líder da República do Cunani, que reuniu mais de 300 pessoas, a maioria escravizados fugitivos, entre o Amapá e a Guiana Francesa. Trajano era adepto das ideias das revoluções Francesa e do Caribe e foi morto em 1845, reprimido pelas forças coloniais. Na pintura que o retrata, a artista Kika Carvalho imagina um Trajano de pele bem escura e bem-vestido, com um olhar que transmite força e propriedade.
O Preto Felix, retratado em tela criada por Jaime Lauriano, foi líder da Revolta da Cabanagem, um dos levantes mais violentos da época das Regências; a obra também traz a história de Felix José Rodrigues, quilombola arregimentado para combater na Guerra do Paraguai, onde ganhou renome. Ao regressar, foi recebido por D. Pedro II, que perguntou se ele queria uma medalha – ao que ele respondeu preferir um pedaço de terra. Foi o início da terra quilombola Barra da Aroeira, no Tocantins, reconhecida em 2006. Na exposição, é retratado em tela de Hariel Revignet.
Muitas lideranças femininas se destacam na obra. Uma delas é Felipa Maria Aranha, que organizou o grande Quilombo do Mola, com mais de 350 escravizados, que se autossustentavam nas cabeceiras de um braço do Rio Tocantins, onde hoje está localizado o município de Cametá, no Pará. Felipa vinha da Costa da Mina, no norte do continente africano e provavelmente nasceu entre 1720 e 1730; vendida em Belém, foi trabalhar com a cana-de-açúcar até se tornar fugitiva e liderar o quilombo. Na exposição e no livro, foi retratada pela artista Panmela Castro.
Outra figura proeminente é Hilaria Madalena, uma das líderes do Mucambo do Mocajuba, assentamento no Grão-Pará banhado pelo Rio Tocantins. Madalena criou redes comerciais e de solidariedade com indígenas e a população branca, que comercializavam o arroz e outros produtos cultivados no local. No campo das artes, chama a atenção a história da cantora Jandira Aymoré, que nasceu no Pará em 1899 e fez parte da Companhia Negra de Revistas, grupo artístico que fez grande sucesso na Europa e onde conheceu o maestro e compositor Pixinguinha, com quem se casou. Sua representação é uma impressão do artista Ogá Mendonça, que fez a capa da Enciclopédia Negra e tem quatro obras na Pinacoteca de São Paulo.
Resgate pessoal
Na contemporaneidade, o mergulho na Amazônia pode significar o resgate também de uma identidade pessoal. A fotógrafa Marcela Bonfim, autora do projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra – Povos, costumes e influências negras na floresta, propõe um novo olhar sobre a negritude na Amazônia a partir de sua experiência como mulher negra que se reconheceu como tal justamente ao pisar em Porto Velho, Rondônia. Bomfin, em certo modo, continua o trabalho da Enciclopédia Negra, fazendo emergir novos rostos e novas histórias – desta vez ainda vivos.
Natural de Jaú, no interior de São Paulo, ela se formou em economia pela PUC-SP em 2008, mas durante um ano procurou emprego em sua área na capital paulista, sem sucesso – conseguia avançar nas etapas dos processos seletivos, mas perdia a oportunidade sempre na reta final, o que a fez desconfiar da meritocracia. Sempre que se apresentava, ouvia: “Oh, você é negra!”, como se não pudesse pertencer àquele universo. “Aquilo me destruía, a forma que sempre buscavam colocar o corpo negro em um lugar em que eu não entendia”, relata Bonfim.
Uma oportunidade para atuar em sua área a levou para Porto Velho, onde começou a andar pela cidade e ser questionada pelos locais se era barbadiana, ou seja, com ascendência na Ilha de Barbados, no Caribe. Sem entender os motivos da pergunta, começou a reparar, de fato, na postura dos barbadianos e seus descendentes na cidade – eles chegaram em Rondônia no início do século XX para trabalhar na ferrovia Madeira-Mamoré, um símbolo do poder na época.
Os fluxos migratórios de Barbados para Rondônia contribuíram para a criação um imaginário local muito peculiar sobre as pessoas negras, logo percebido por Bonfim. Era uma outra imagem do negro: muito mais autônoma, com hábitos herdados da colonização inglesa e grande habilidade musical, o que trouxe para a cidade uma atmosfera de empoderamento. “Eles não deixam de sofrer o racismo, mas são corpos dentro de um entendimento de poder: tocavam instrumentos, trouxeram o soul e o jazz, construíram uma rede de educação, de forma que modificaram o espaço”.
A identificação com o povo de Barbados acabou a levando para a fotografia, onde pode refinar seu olhar sobre a negritude e, finalmente, a se reconectar com seus antepassados – a avó bugre, o pai descendente de negros escravizados, origem de seu sobrenome – “Bonfim veio da fazenda”, havia lhe dito seu pai. Com uma câmera na mão, passou a reconhecer seus semelhantes em locais tão distintos como terreiros de candomblé e presídios, mas também no fluir das ruas.
“A fotografia me mostrou a importância de dignificar todos os corpos que aqui estão. A Amazônia é indígena, claro, mas a arte é instrumento de educação e ferramenta para redescobrir a cara e a história dessas pessoas”. Sua mostra circulou por 13 estados brasileiros desde 2016 e pode ser vista no site https://www.amazonianegra.com.br/.
A economista paulista virou fotógrafa, mas poderia, por sua formação e conhecimento da região, ter feito parte do projeto Amazônia 2030 que apresenta a perspectiva de se reconhecer e se reconectar com a Amazônia a partir de seu potencial. O projeto tem como objetivo gerar dados e conhecimento para embasar um plano de ações para a Amazônia brasileira para que a região tenha condições de alcançar outro patamar de desenvolvimento econômico e humano e de uso sustentável dos recursos até o fim da década.
Trata-se de uma iniciativa conjunta de pesquisadores brasileiros e organizações como o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, ambos com sede em Belém, com a Climate Policy Initiative (CPI) e o Departamento de Economia da PUC-Rio. O projeto prevê três anos de pesquisa (2020 a 2022) e a publicação de dez trabalhos, que ao final do processo vão compor um diagnóstico e plano de ação que serão apresentados aos tomadores de decisão.
Os três primeiros trabalhos concluídos mostram que a região, em grande medida, sofre um modelo de ocupação artificial, longe das vantagens comparativas naturais associadas à floresta e longe de prover oportunidades de emprego e renda para as populações locais. Isso fica evidente no estudo Mercado de trabalho na Amazônia legal – Uma análise comparativa com o restante do Brasil, realizado pelos pesquisadores da PUC-Rio Flávia Alfenas, Francisco Cavalcanti e Gustavo Gonzaga. A partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do IBGE, que visita 36 mil domicílios na Amazônia Legal a cada trimestre, os pesquisadores analisaram o mercado de trabalho entre 2012 e 2020 e constataram uma realidade pouco dinâmica, com baixo desempenho, alta informalidade e grande dependência estatal.
A informalidade na região é 20 pontos percentuais maior do que no restante do País, ou seja, há um contingente maior de trabalhadores na Amazônia Legal à margem da legislação trabalhista e sem contribuir para a Previdência Social. Mesmo o trabalhador com emprego formal na Amazônia Legal tem 13% de chances de vir a perder seu posto de trabalho no próximo trimestre, o dobro da média nacional.
“Todo o processo de desenvolvimento e ocupação da região não foi capaz de gerar um mercado de trabalho vibrante, que ofereça oportunidades de emprego de qualidade para a população”, diz Juliano Assunção, coordenador do projeto Amazônia 2030 e professor do departamento de Economia da PUC-Rio.
Outro dado que chama a atenção no estudo é o alto grau de desalento entre os jovens de 18 a 24 anos: a participação deles no mercado de trabalho é 13 pontos percentuais menor em comparação à participação dos jovens fora da Amazônia. Enquanto 58% dos jovens nessa faixa etária estão inseridos de alguma forma no mercado na Amazônia, esse percentual sobe para 71% no restante do País. O fato de a taxa de participação na Amazônia ser menor indica também que há menos jovens procurando trabalho, o que caracteriza o fenômeno do desalento face às escassas oportunidades oferecidas na região.
O estudo mostrou também grande dependência estatal: 10% dos domicílios da Amazônia Legal recebe recursos de algum programa de transferência de renda; sendo que os 20% mais pobres têm um terço de sua renda advinda de programas sociais, enquanto os 20% mais ricos têm pouco mais de um terço de sua renda advinda do funcionalismo público. “O pobre na Amazônia tem no Estado uma fonte de renda via programas de transferência; e os de renda mais alta têm no Estado sua melhor ocupação e a fonte mais promissora de rendimentos”, diz Assunção.
Os outros dois estudos concluídos pelo Amazônia 2030 apontam para caminhos de reconexão da economia local com as vantagens comparativas de uma região com alta biodiversidade. Em um deles, o pesquisador Salo Coslovsky identificou 64 produtos florestais não madeireiros exportados pela Amazônia entre 2010 e 2019, que geraram uma receita anual de quase US$ 300 milhões, o que mostra o potencial desses produtos em um mercado estimado em US$ 170 bilhões. Embora sejam atividades conectadas ao potencial econômico da floresta, elas precisam encontrar escala para dar mais dinamismo à região.
O outro estudo, coordenado pela pesquisadora Andréia Pinto e Paulo Amaral, mostrou as oportunidades ligadas ao segmento de restauro florestal. Os autores identificaram uma área superior a 7 milhões de hectares na Amazônia, sendo 42% deles no território do Pará, que está sendo recuperada de forma natural, com vegetação secundária acima de seis anos, o que indica um processo à margem de iniciativas de políticas públicas de restauração – provavelmente áreas que foram desmatadas, depois abandonadas e onde a floresta retomou. De acordo com Assunção, trata-se de uma área equivalente a 10% do total de áreas de lavoura de todo o País, e, dado o contexto internacional que está se reconfigurando com o Acordo de Paris, o restauro florestal pode ser outro caminho para ser explorado em consonância com as próprios compromissos assumidos pelo Brasil.
Entre as possibilidades de se construir um futuro conectado ao potencial da floresta e o resgate histórico dos povos que ocuparam e ocupam a Amazônia, está o desafio de transformar a região no presente, para que deixe de ser o arrabalde proclamado por João Moreira Salles. Para Guilherme Leal, conselheiro do Instituto Arapyaú, o momento é delicado e voltado para a “contenção de danos”, em razão das forças políticas que hoje operam e das ameaças sobre a floresta – que, se for ainda mais desmatada, ficará próxima do ponto de não retorno da savanização, como vem alertando o climatologista Carlos Nobre. “O momento é de destruição, mas a consciência está se formando para que a Amazônia seja vista como um lugar de felicidade, de encontro consigo mesmo, de dignificação”, diz Leal. Foi o que Marcela Bonfim encontrou na Amazônia – e quem sabe tantos outros brasileiros possam encontrar também.