Entraves burocráticos com a meliponicultura exemplificam gargalos e a dificuldade de se avançar com a bioeconomia na Amazônia
Por mais que as grandes regulações sobre os territórios e sobre os processos de acesso à biodiversidade sejam vitais para a bioeconomia, um exemplo pitoresco mostra bem os obstáculos burocráticos que muitas vezes surgem no Brasil. O imbroglio burocrático referente às abelhas sem ferrão, segundo Gislene Zilse, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), é emblemático. “Trata-se de uma questão até certo ponto simples, mas que atrapalha a vida dos criadores”, afirma a cientista durante o painel Marcos Regulatórios para inovação em investimentos em Bioeconomia: oportunidades e desafios, realizado durante o Fórum de Inovação em Investimentos na Bioeconomia Amazônica (F2iBAM).
Ela explica. Desde 2020, uma nova resolução voltada para a área de meliponicultura obriga os criadores de abelhas sem ferrão – fundamentais na polinização tanto na floresta quanto na lavoura –, a informar onde eles obtiveram suas colônias matrizes. “Mas essa resolução é recente, existem muitos trabalhadores no negócio que não têm como cumpri-las”, afirma Zilse. Isso porque, na maioria dos estados, o documento exigido é a nota fiscal de criadouros já registrados. “Mas, veja, os criadouros de abelhas começaram a ser registrados de 2018 para cá no sistema nacional. É uma incongruência. Você pede um documento que o próprio criador não pode obter”, afirma Zilse.
A solução, diz a especialista, seria aceitar uma espécie de autodeclaração de quem começou a trabalhar com as abelhas antes. “O tempo pregresso tem de ser anistiado. Reconhecer quem está na ponta, realmente trabalhando lá no campo e partir disso ordenar a atividade para controlar os próximos acessos à natureza é o mais importante”, diz Zilse.
Ordenação também é a palavra-chave quando se olha de forma ampla para as comunidades tradicionais, afirma o advogado Guilherme Eidt, que acaba de fazer um estudo, ainda não publicado, sobre os gargalos regulatórios da produção agroextrativista. “Identificamos vários entraves e deficiências, como problemas na gestão das políticas públicas em áreas de Unidades de Conservação, gestão do acesso ao patrimônio genético e repartição de benefícios, entre outros”, diz Eidt.
De acordo com o advogado, os marcos regulatórios precisam se voltar para “reforçar as demandas históricas dos povos e comunidades favorecendo o uso sustentável da biodiversidade e a valoração dos serviços ecossistêmicos ligados à manutenção da floresta em pé”.
Para Tatiana Botelho, representante da Climate and Land Use Alliance (CLUA), é preciso, antes de se discutir marcos regulatórios sobre a bioeconomia brasileira, dar um passo para trás. “Não temos uma política nacional sobre bioeconomia. Existe uma ausência geral do governo nas áreas de floresta”, diz. Ela lembra que, com políticas públicas muito fortes, o Brasil virou, por exemplo, um grande produtor de café no passado. “Mas sobre a bioeconomia não temos informação suficiente. Não sabemos o volume e nem há fundos para alavancar uma economia baseada na biodiversidade”, afirma.
A discussão de uma política pública eficiente para a Amazônia também é a preocupação central de Daniel Viegas, procurador do Estado do Amazonas. “Este ano, provavelmente, vamos bater o recorde de desmatamento. Índices indicam um desastre ambiental maior do que o do ano passado e isso tem a ver diretamente com a viabilidade da bioeconomia”, afirma o procurador. Para Viegas, não há dúvida de que, antes de se debater marcos legais, é preciso discutir qual a política de Estado que se quer seguir.
“A bioeconomia é muito ampla, vai do etanol às comunidades tradicionais. Qual a salvaguarda que ela vai trazer para as comunidades? Para a base das cadeias produtivas?”, indaga. De acordo com Viegas, é preciso que sejam garantidos o protagonismo das associações de base, bem como o direito e o acesso aos territórios que elas ocupam. No Sul do Estado do Amazonas, onde segundo ele a regularização fundiária em áreas públicas é um processo em andamento, é preciso tomar cuidado para o pequeno agricultor não ficar de fora das políticas de bioeconomia. “Estamos privatizando as terras públicas. É um processo histórico muito visível”, afirma.
Representando o governo federal, Bruno Reis, tecnologista do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), diz que a bioeconomia é uma das prioridades do governo. Segundo ele, existem programas em andamento, com recursos já garantidos. “Temos várias ações visando a criação de sistemas integrados e produtivos”, diz o coordenador geral de bioeconomia do ministério.
Um dos programas citados por Reis durante o F2iBAM é o Cadeias Produtivas da Bioeconomia, que investirá R$ 5,6 milhões em projetos-piloto. São ações que envolvem o açaí, o cupuaçu, o pirarucu e o licuri. “Existe toda uma estratégia para a bioeconomia no ministério. Um novo campo conceitual”, diz Reis, que também apresenta as diretrizes do Projeto Oportunidades e Desafios da Bioeconomia no evento.
A seguir, as sistematizações gráficas do painel:
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