Disputas geopolíticas, desconfianças entre países ricos e pobres, frustração da sociedade civil, pandemia. Os ingredientes no caldeirão explosivo para a Conferência do Clima em Glasgow
A Conferência do Clima mais importante desde 2015 poderá ser também a mais esvaziada em termos de participação e uma das mais contenciosas, com disputas geopolíticas e desconfianças internacionais contaminando a agenda de negociação climática. Esse é o ambiente que antecede a COP 26, programada para começar no dia 31 de outubro em Glasgow, na Escócia – após um hiato involuntário de dois anos no processo multilateral de discussões da Organização das Nações Unidas, causado pela pandemia.
Por ora, ao menos, a expectativa do governo do Reino Unido, anfitrião da COP, e do secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) é de que o encontro de Glasgow seja presencial, com a participação de pelo menos 15 mil pessoas, entre negociadores governamentais, observadores da sociedade civil e da iniciativa privada, cientistas e profissionais de imprensa. No entanto, a insistência dos organizadores em realizar uma COP presencial, a despeito da situação ainda delicada da pandemia em muitos países pobres, está causando desconforto entre ativistas e representantes dessas nações, preocupados com a possibilidade de que eventuais restrições sanitárias possam prejudicar sua participação nas conversas.
A incerteza sobre a participação é apenas um ingrediente no caldeirão político de Glasgow. Acumulam-se focos potenciais de tensão dentro da agenda de negociação, como a regulamentação de um sistema internacional de comércio de créditos de carbono e o cumprimento da promessa de US$ 100 bilhões anuais para financiamento climático nos países pobres, e fora dela, como a disputa geopolítica entre Estados Unidos e China e a frustração das nações em desenvolvimento com a distribuição desigual das vacinas contra a Covid. Como Andrew Freeman observou no Axios, “é hora de os defensores do clima e os líderes mundiais se prepararem para um período turbulento de diplomacia climática”.
Desafios da agenda climática
Mesmo em um mundo hipotético no qual as negociações da COP 26 acontecessem descoladas de outros problemas globais, a agenda de discussão em Glasgow já seria desafiadora. Com a vigência plena do Acordo de Paris, desde o começo do ano passado, os negociadores terão como principal tarefa concluir o processo de implementação do novo regime climático – em particular, a regulamentação do Artigo 6 do documento, que estabelece mecanismos de mercado para facilitar o cumprimento dos objetivos nacionais de redução de emissões.
Esse ponto se arrasta desde 2018, quando os países fecharam o chamado “livro de regras” do Acordo de Paris sem definir exatamente como esses mecanismos funcionarão. No ano seguinte, na Conferência de Madri (COP 25), a situação não mudou: mesmo com o recorde histórico de duração para uma COP, que estendeu por quase dois dias além da data final, os negociadores fracassaram em chegar a um denominador comum.
Duas questões emergem na discussão sobre o Artigo 6. Primeiro, se e como o sistema de comércio de emissões de Paris aproveitará os créditos de carbono obtidos sob os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto até 2020. Os defensores da proposta argumentam que os créditos pré-2020 não podem ser simplesmente ignorados no novo sistema. Por outro lado, críticos respondem que uma parte substancial dos créditos acumulados sob MDL não corresponde a reduções ou remoções efetivamente realizadas. A inclusão desses créditos “fajutos”, chamados de hot air, no sistema de Paris abriria espaço para distorções em termos de compensação de emissões via crédito de carbono que podem comprometer todo o sistema.
A segunda questão ainda sem resolução no Artigo 6 é como será feita a contabilização dos créditos de carbono nos balanços de emissões dos países. Em tese, a nação compradora de crédito incluiria a redução/remoção correspondente em seu balanço nacional; já a nação vendedora, onde a redução/remoção que deu origem ao crédito foi realizada, não poderia contabilizá-la em seu balanço, já que ela foi vendida. Esse ajuste correspondente evitaria assim a “dupla contagem” da redução/remoção de carbono, ou seja, a contagem simultânea do crédito no balanço do país vendedor e do país comprador.
O dilema aqui é parecido: países vendedores de crédito entendem que seria necessário um período de transição para que os ajustes correspondentes sejam aplicados no mercado internacional, já que as metas climáticas atuais dos países não preveem essa compensação. Nesse sentido, a ideia é de que esses ajustes sejam feitos a partir da próxima leva de compromissos nacionais, em 2025. O problema é que essa proposta permitiria a dupla contagem das reduções/remoções nos primeiros anos do Acordo de Paris, o que criaria distorções no sistema logo em seu nascedouro, comprometendo sua integridade ambiental.
Falando em divergências contábeis, outro problema que os negociadores de Glasgow terão que resolver é a eterna questão do financiamento da ação climática em países pobres. Em 2009, as nações desenvolvidas prometeram ampliar o volume de recursos disponíveis para financiamento climático ao longo da década seguinte, com o objetivo final de chegar a pelo menos US$ 100 bilhões anuais em 2020. O problema é que, passado esse prazo, o total de recursos mobilizados para financiar projetos de mitigação em países pobres e vulneráveis está aquém dessa promessa. Pior: os sinais recentes das principais economias do planeta, por meio do G7 e do G20, não indicam que haja disposição desses países em preencher essa lacuna no curto prazo.
Como já abordamos aqui, um eventual fracasso da meta de US$ 100 bilhões anuais para financiamento climático causará consternação entre os países pobres, que dependem desses recursos não apenas para viabilizar seus compromissos de mitigação, mas também para implementar projetos de adaptação para diminuir sua vulnerabilidade a eventos climáticos extremos. O preço desse fracasso pode ser caro para as negociações multilaterais, com os países pobres mais reticentes e desconfiados da disposição e da vontade de seus contrapartes ricos.
A frustração, no entanto, não se resume apenas à falta de dinheiro. As contribuições nacionalmente determinadas (NDCs) atualizadas pelos países nos últimos meses mostram que ainda estamos muito distantes da meta de Paris. Como a própria UNFCCC confirmou na semana passada, a implementação plena das NDCs apresentadas até agora garantiria uma redução de apenas 12% das emissões globais de GEE em 2030 em comparação com 2010. De acordo com o relatório recente do IPCC, as emissões precisam cair pelo menos 45% nesse mesmo período para viabilizar o limite de 1,5 grau para o aquecimento do planeta neste século (ou 25% para limitar esse aumento de temperatura em 2 graus).
Ou seja, a ambição dos países (especialmente aqueles que lideram o ranking de maiores emissores de GEE do planeta) no enfrentamento à crise climática nesta década precisa ao menos dobrar para tornar possível os limites propostos pelo Acordo de Paris para restringir o aquecimento global. Se isso não acontecer desde agora, a mudança do clima poderá ser ainda mais forte e imprevisível, com impactos dramáticos para as comunidades e os países mais pobres e vulneráveis em todo o mundo.
Geopolítica e pandemia
Fora todas as questões assinaladas anteriormente, a COP 26 terá que encarar um cenário geopolítico internacional bastante desafiador. Um dos obstáculos mais notáveis no caminho para Glasgow é o relacionamento tumultuado entre Estados Unidos e China, os dois maiores emissores de GEE do planeta. A chegada de Joe Biden à Casa Branca não conseguiu atenuar as tensões bilaterais que emergiram sob o governo do antecessor Donald Trump.
A situação ganhou contornos mais delicados na semana passada, depois de o governo americano e do Reino Unido anunciarem um acordo militar com a Austrália, país que vem protagonizando uma crise diplomática e comercial com a China desde o ano passado. Pelo acordo, Washington e Londres ajudarão os australianos a construir submarinos nucleares, com o objetivo de implementar uma estratégia conjunta de defesa entre os três países. O governo chinês criticou o anúncio e acusou os signatários de seguirem uma “mentalidade de Guerra Fria” contra Pequim.
O timing do anúncio desagradou tremendamente ativistas climáticos, que já estavam preocupados com o risco de um colapso nas negociações em Glasgow. No Guardian, Fiona Harvey destacou dois argumentos centrais dessas críticas: primeiro, a presença do Reino Unido, anfitrião da COP, como um dos signatários do acordo militar entre EUA e Austrália prejudica a capacidade do governo de Boris Johnson de costurar um entendimento diplomático na Conferência; e, segundo, o acordo com a Austrália vai contra os objetivos climáticos de americanos e britânicos, já que o governo australiano é comandado por notórios negacionistas da mudança do clima.
Falando no Reino Unido, outra frustração crescente fora da agenda de negociação está exatamente na organização da Conferência pelo governo britânico. No começo do mês, milhares de organizações da sociedade civil pediram à UNFCCC o adiamento da COP 26 em razão do avanço lento da vacinação nos países pobres e dos custos altos para quarentena e hospedagem na Escócia antes e durante a Conferência.
O governo de Boris Johnson rejeitou o pedido e assumiu a responsabilidade de financiar eventuais quarentenas aplicadas a representantes de países pobres. Por outro lado, a promessa de vacinar essas pessoas antes da Conferência, feita ainda no primeiro semestre, não parece estar sendo cumprida na velocidade necessária, com muitas pessoas ainda sem qualquer informação sobre como e quando receberão as primeiras doses.
Para a sociedade civil do Sul Global, o risco é de que as restrições sanitárias aplicadas pelo Reino Unido, associadas com as dificuldades financeiras e de vacinação nos países pobres, acabem dificultando a participação de seus representantes na COP. O risco desse apartheid foi apontado em reportagem no Valor, abordando também as dificuldades tecnológicas que atrapalham qualquer tipo de interação virtual por parte de negociadores e observadores de países em desenvolvimento.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, sumarizou com propriedade o cenário pré-COP que se desenha a menos de dois meses da abertura dos trabalhos em Glasgow. “Acredito que corremos o risco de a COP 26 não ter sucesso. Ainda existe um nível de desconfiança entre Norte e Sul, desenvolvidos e em desenvolvimento, que precisa ser superado”, disse à Reuters. “Estamos à beira do abismo, e isso exige que tenhamos bastante cuidado com o próximo passo. Esse próximo passo será dado na COP 26, em Glasgow”.