Para superar o desmatamento, as queimadas e a violência, é preciso perguntar: precisamos da pecuária bovina extensiva na Amazônia? Esta pergunta tem que envolver o consumidor brasileiro, pois a maior parte da carne produzida na Amazônia é para consumo interno
A bioeconomia é um conceito gelatinoso, pegajoso, todo mundo sai melado quando fala essa palavra mágica – uma armadilha! Quem mesmo sabe o que ela representa? Ou, o que se quer da bioeconomia? Sabe-se o que ela não é, o que não se quer que ela perpetue – a destruição sistemática dos meios naturais, dos serviços ambientais e da violação dos direitos humanos e os modos tradicionais de vida. A boieconomia (boi mesmo!) não é bioeconomia, não dá pintar de verde os pobres boizinhos que pascentam e destroem a Amazônia (e de roldão, o nosso planetinha). Povoar metade das terras aráveis do planeta com a pecuária extensiva (de diversos animais, especialmente a bovino-figura) constitui uma das decisões de mais graves consequências da humanidade.
Quando a boieconomia (e seus condutores, os boiadeiros) penetra as terras firmes da Amazônia a valer, a partir da década de 1960 com a ditadura militar e os seus generosos subsídios e facilidades (que se perpetuam), e a violação dos direitos de povos e comunidades tradicionais, a história da Amazônia passa a pegar fogo.
Desde a invasão europeia, a vida dos amazônidas foi difícil, enfrentando a violência, a escravidão e o espírito genocida e garimpeiro do colonizador, roubando-lhes tudo o que poderia se converter em dinheirinho. A boieconomia não veio sozinha, o pacote demoníaco inclui a retirada ilegal de madeira, o garimpo (todo garimpo é ilegal), a sobrepesca, o tráfico de animais e daí por diante.
Porém, nada se compara ao impacto socioeconômico da pecuária bovina extensiva. O Brasil não aprendeu que a destruição dos outros biomas se deve, em sua maior parte, aos descalabros da pecuária desleixada e irresponsável. Na Amazônia, a boieconomia é rápida, cruel e demolidora. Ela se viabiliza de diferentes formas: invadindo terras públicas (grilagem), inviabilizando assentamentos que deveriam ser para a agricultura familiar em sistemas agroflorestais, ela “compra” áreas de governos estaduais e federais para destruí-las e se tornarem pasto, “esquenta” títulos em cartório etc.
Todos os estudos apontam para a pecuária bovina extensiva como a responsável por mais de 4/5 do desmatamento da Amazônia. Os deixa-disso dirão que é um percentual pequeno da Amazônia que se desmatou (falarão em menos de 20%), mas os 80 a 90 milhões de boizinhos que pastam hoje a Amazônia (literalmente) apropriaram-se de uma superfície maior que os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos.
Em 50 anos, entregamos de bandeja para um punhado de pecuaristas a maior riqueza do Brasil. Pior, a tal da boieconomia gera pouca renda, a renda é altamente concentrada e pouco fica na região; pífios são os empregos, e em sua maioria informais. Trabalho análogo à escravidão é com a pecuária bovina da Amazônia. Ademais, paga-se poucos impostos; e, onde há boi, grassa a violência: as cidades mais violentas, líderes do feminicídio e de assassinato de lideranças comunitárias e ambientalistas são os municípios-pecuaristas. O Arco do Desmatamento, o arco do fogo, é o arco-da-pecuária!
Se a renda da Amazônia vem do petróleo, mineração, energia, serviços e comércios, da Zona Franca e de outras iniciativas como a palma e o papel e a celulose; por que insistir na boieconomia? A boieconomia da Amazônia produz, em média, 85 kg de proteína animal/hectare. Até a caça manejada é mais eficiente. Não se consideram as externalidades, as perdas enormes que vão para o ralo, as emissões de carbono, metano, a perda em água.
O ciclo da pecuária é perverso. Depois de um desmate traumático e imensas queimadas, a pastagem, que já nasce degradada, é queimada todos os anos para eliminar os tocos, as galhadas; e isso porque é mais barato manter o pasto “limpo” com um palito de fósforo que adotar formas de manejo mais sustentáveis. Vinte anos de pisoteio, queimadas e desmatamento e, pronto, a terra está apta para atividades agroflorestais mecanizadas, o que pode levar à eliminação de ambientes naturais, a sua biodiversidade e serviços ambientais.
Todos os biomas terrestres do País foram pisoteados e destruídos pela pecuária bovina extensiva, uma atividade que os brasileiros se recusam a discutir na profundidade que o tema merece. O boi é um trator de destruição permanente, destrói o solo, os cursos d’água, a fauna, a flora, aquece a terra, espanta as chuvas… Até há algumas tímidas iniciativas bem-intencionadas para uma pecuária de menor impacto, mas diante da dimensão do problema e da escalada da destruição não há como tratá-las com um caminho possível.
Para que servem índices de desmatamento?
Perdemos tempo em discutir índices de desmatamento (e agora de queimadas). Mas, discuti-los é como olhar o termômetro na frente de um doente e constatar o óbvio: – sim, está com febre! Vejam, o desmatamento aumentou!
Recusamo-nos a enfrentar a principal causa da destruição da Amazônia, que é uma mera sequência da ocupação do Brasil Central e da Caatinga: a cadeia de desvalor da boieconomia. Para piorar, o pecuarista segue como o símbolo de sucesso, angariando status na sociedade.
Se a proposta é mesmo compreender a Amazônia a partir da bioeconomia, há que se substituir a boieconomia, inviabilizar a lógica do que vale é floresta destruída, bois no pasto, matadouros e, pior, tudo isso subsidiado com o nosso dinheiro, do cidadão brasileiro, dinheiro público!
A bioeconomia da agrofloresta
Uma parte da tal bioeconomia é enraizada no conceito de agrofloresta, algo praticado há milênios pelos povos originários e que avançou muito ao se aliar à ciência. Mas a agrofloresta não recebe o apoio que merece e seguimos pensando em monoculturas. Mesmo as duas plantas amazônicas de maior sucesso econômico – o açaí e o cacau –, estão muito longe de serem consideradas sustentáveis. No caso do açaí, por exemplo, em duas décadas ele já envolve mais de 200 mil famílias na base de sua cadeia de valor no Pará, Amazonas, Amapá e daí por diante. Em diversos elos dessa cadeia há gente faturando alto com a super fruta.
Mas, atenção. O consumidor ignora que se trata de atividade altamente informal, que é um dos trabalhos mais perigosos do Brasil, que há dezenas de milhares de crianças trabalhando e fora da escola, e que os benefícios sociais que o setor público deveria prover em troca, não chegam para as comunidades extrativistas. Além disso, a transformação de florestas com açaizeiros em verdadeiras monoculturas do açaí vem causando forte desequilíbrio ambiental, inclusive diminuindo a produtividade dos açaizeiros por dificultarem a polinização.
Os órgãos públicos de registro da produção e regulatórios não despertaram para esse desafio e pouco se esforçam em reconhecer as características dos municípios produtores de açaí. A contabilidade oficial começa a contar a produção na porta da unidade beneficiadora, bem distante dos produtores, ignorando o que se gera de valor no campo e na logística. Essa informalidade e invisibilidade interessa aos elos superiores da cadeia de valor, para controlar o mercado e não remunerar corretamente os extrativistas e os serviços ambientais. Aparentemente, o extrativista estaria ganhando dinheiro, mas ele fica com menos de 10% da renda e com todo o risco (inclusive de o fruto estragar). Portanto, para ser parte da tal bioeconomia, não dá para tapar o sol com o peneira e dizer que o açaí é sustentável.
Sem polinizadores, não há bioeconomia
Também não podemos falar de boca cheia “bioeconomia” se não forem considerados os serviços ambientais e, particularmente a polinização. Em 2020, pesquisadores demonstraram que das 36 principais culturas agrícolas do Pará, 55% dependiam da polinização animal (abelhas, besouros e outros insetos, aves, morcegos etc.). O açaí e o cacau apresentam alta dependência da polinização. Sem a polinização animal, o valor de sua produção seria irrisório: 65% do valor do açaí refere-se à polinização (US$ 635 milhões, para um total de US$ 977 milhões); e, para o cacau, 95% do valor dessa commodity depende da polinização, US$ 187 milhões, de um total de US$ 197 milhões (Borges, R. C., 2020).
Que produtor (ou outro elo da cadeia) reconheceu ou já pagou pelo serviço de polinização? Como as empresas, o poder público e as diversas organizações podem falar de bioeconomia sem considerar a polinização e os demais serviços ambientais?
Boieconomia, desmatamento e bioeconomia
Está na hora de o Brasil amadurecer e concluir a desastrosa saga da boieconomia. Para superar o desmatamento, a queimada e o processo violento, é preciso perguntar: precisamos da pecuária bovina extensiva na Amazônia? Essa pergunta tem que envolver o consumidor, afinal, a maior parte da carne produzida na Amazônia é para consumo interno.
A boieconomia só dará lugar à bioeconomia se for uma decisão da sociedade. Caso contrário, não haverá Amazônia para a próxima geração, apenas pastos, queimadas anuais, violência e pobreza. A bioeconomia está aí, com as suas múltiplas e maravilhosas oportunidades sociais e econômicas sustentáveis e mais justas, baseadas na ciência, inclusive pronta para restaurar o estrago feito nas últimas décadas. Teremos coragem de parar de brincar de boiadeiros e vilões do planeta e assumir uma nova narrativa que não seja a ficção da conversa-pra-boi-dormir?
*João Meirelles Filho é ativista socioambiental há mais de três décadas, autor de obras de ensaio e ficção sobre a Amazônia, e dirige o Instituto Peabiru.
[Foto: A C Moraes/ Flickr]