Sob o crivo da mudança climática, os riscos da escassez de água para a geração de energia, abastecimento público e operação das indústrias mobilizam parcerias público-privadas na busca por soluções e políticas para melhor gestão do recurso natural. O tema movimentou o debate em live realizada pela Coca-Cola, com apoio da Página22.
A atual crise hídrica brasileira, com riscos à qualidade de vida, à economia e aos negócios, aumenta a urgência de parcerias entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil para investimentos em infraestrutura verde, priorizando Soluções baseadas na Natureza (SbN) contra os impactos da escassez, agravados pela falta de chuvas e pela má gestão da água para geração de energia, produção no campo e abastecimento das torneiras. A mudança climática já em curso no planeta torna a busca por novos modelos ainda mais desafiadora e eleva o tom das cobranças diante dos conflitos pelo uso dos mananciais em bacias hidrográficas críticas, como a do Rio das Velhas, maior afluente do São Francisco, em Minas Gerais – cenário que agora avança como referência no arranjo público-privado para unir forças e reduzir danos ambientais.
Ícone no ciclo do ouro entre os séculos XVII e XIX, a região apresenta hoje elevada degradação pelo desmate e lançamento de esgoto. “Acreditamos no diálogo como caminho para temas importantes ao planeta, ao Brasil e ao nosso negócio”, afirma Victor Bicca, diretor de políticas e relações governamentais da Coca-Cola Brasil. A empresa possui unidade industrial em Itabirito (MG), na bacia do Rio das Velhas e, em outubro, formalizou apoio ao Programa Águas Brasileiras, do governo federal, no sentido de investir R$ 1,2 milhão em ações regenerativas na região.
A iniciativa marcou o debate na live “Diálogos Coca-Cola para Sustentabilidade – O desafio das parcerias para a gestão da água”, o primeiro de uma série de quatro encontros temáticos que serão realizados com apoio da Página22. Como fabricante de bebidas, a companhia depende do recurso hídrico como principal matéria-prima:
“O desafio vai além das fábricas ou comunidades do entorno, e requer uma visão mais ampla de identificar oportunidades de políticas públicas para o uso sustentável”, aponta Bicca.
“O novo marco legal do saneamento traz segurança jurídica e a perspectiva de parcerias por meio de um sistema regulatório mais consolidado”, analisa Wilson Melo, diretor do departamento de recursos hídricos e revitalização de bacias hidrográficas do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). Segundo ele, as demandas abrangem padrões de quantidade e qualidade do recurso hídrico por meio do tratamento de esgoto, uso eficiente, práticas sustentáveis na agricultura e pecuária e ações de conservação nas bacias, como a recuperação de áreas degradadas.
“O cenário é de oportunidades para empresas ingressarem na pauta”, ressalta Melo, ao lembrar que, conforme mapa da Política Nacional de Segurança Hídrica, 37% da população brasileira estava em área de baixo grau de oferta hídrica, em 2019.
Nessas regiões mais vulneráveis, o setor produtivo é inevitavelmente impactado, diante do uso prioritário ao abastecimento público. Segundo o secretário, junto à insolação e solos favoráveis, os estoques hídricos são um trunfo do País como grande produtor de alimentos, permitindo em alguns casos até três safras ao ano, com forte presença no Produto Interno Bruto (PIB). Dessa forma, acrescenta Melo, “a água significa muito para o desenvolvimento nacional, o que reflete na interface do tema entre diferentes setores de governo, como a Secretaria Nacional de Segurança Hídrica, a Secretaria Nacional de Defesa Civil e a Secretaria Nacional de Saneamento”.
Na crise hídrica de 2021, uma das mais graves da história, os riscos à geração de energia com a replicabilidade dos impactos na inflação e no ritmo de recuperação econômica deram maior amplitude aos impactos – e ao debate para soluções. Há 91 anos não se viam níveis tão baixos de água nos reservatórios, com possível impacto à exportação de commodities. Caso se confirmem as previsões climáticas para o período de outubro a abril, o PIB nacional pode registrar perda de até dois pontos percentuais em 2022, estagnando-se – quadro que mais uma vez acende o sinal de alerta para o setor produtivo.
Hoje em 250 municípios, o Programa Águas Brasileiras reúne 26 projetos de recuperação ambiental selecionados para parceria com empresas, com investimento de R$ 70 milhões, na perspectiva de ampliação para todas as bacias hidrográficas do País, como a do Rio Doce, em Minas Gerais e Espírito Santo, e as dos mananciais da Região Metropolitana de São Paulo. Até o momento, 10 projetos têm indicativo de patrocínio integral ou parcial por empresas, com valores que alcançam R$ 19 milhões.
Entre as vantagens para a iniciativa privada, estão a agregação de valor às cadeias produtivas por meio de práticas sustentáveis e a adaptação dos modelos de negócio à economia de baixo carbono, de acordo com o MDR. “O papel do governo é coordenar esforços das empresas, muitas vezes já existentes, para que na soma das ações permita resultados mais efetivos”, explica Melo. Ele lembra que não basta ter a obra, mas gestão e operação viáveis, em conjunto com comunidades, de modo a uma maior valorização dos sistemas hídricos para além do aspecto assistencialista. “Conservar [as condições naturais nas bacias] é inegavelmente mais barato para garantia da oferta hídrica, mas o uso sustentável é igualmente necessário para reduzir impactos”, ressalta.
Na visão de Melo, a principal barreira para a recuperação dos rios brasileiros, atingidos por alto nível de erosão, é a financeira. Somente a bacia do Rio São Francisco necessitaria de cerca de R$ 40 bilhões para reverter a degradação. “Isso não é viável apenas com o esforço do poder público, até porque a maior parte das áreas está em propriedade privada, onde é preciso criar uma cultura de uso sustentável do solo e recursos naturais”, adverte Melo. Ele lembra que 40% da água utilizada na agricultura é desperdiçada nos sistemas de irrigação e poderia estar sendo utilizada para abastecimento das cidades rio abaixo nas bacias hidrográficas.
Rio das Velhas, bravo resistente
Com 806 Km de extensão, o Rio das Velhas banha a Região Metropolitana de Belo Horizonte e forma uma bacia hidrográfica 27,8 mil quilômetros quadrados – área cuja ocupação humana iniciou-se há cerca de 12 mil anos, quando os primeiros habitantes usavam as grutas como abrigo. O mais antigo fóssil humano já encontrado nas Américas foi desenterrado a poucos quilômetros das margens do Rio das Velhas: uma mulher de 1,50 metros de altura e cerca de 20 anos de idade, que ganhou dos arqueólogos o nome de Luzia. Sem moradia fixa, vivia do que a natureza oferecia e perambulava acompanhada de parentes a região hoje ocupada pelo Aeroporto Internacional de Confins, na capital mineira.
O Rio das Velhas foi chave no surgimento de importantes cidades como Ouro Preto, que se desenvolveu junto a outras após a primeira pepita de outro encontrada naquele leito, em 1677, pelo bandeirante Manoel Borba Gato. Ao longo da história, por drenar a região mais industrializada e densamente povoada de Minas Gerais, a bacia vem sofrendo acelerado e crescente processo de degradação. Como principais impactos estão a atividade mineradora nas cabeceiras dos rios, poluição do esgoto doméstico e industrial, além do desmatamento da vegetação que protege contra o assoreamento e filtra agrotóxicos. A retirada indiscriminada de água para projetos de irrigação e a construção de barragens completam o cenário de danos.
Com recursos da cobrança pelo uso da água, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) lançou em junho o Programa de Conservação e Produção de Água para o território, com planejamento e execução de SbN. Foram identificadas áreas prioritárias para medidas de conservação do solo, restauração florestal e incentivo a boas práticas agropecuárias, com olhar na redução das taxas de erosão e exportação de sedimentos, de modo a contribuir para a garantia de vazão suficiente para atender à demanda de água da capital.
“Todo mundo quer água, mas ninguém a protege”, ressalta Marcus Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão, uma das mais longevas iniciativas socioambientais do País, criada em meados da década de 1990 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para articular as instituições e a sociedade contra a falta de saneamento e a total destruição do Rio das Velhas. “Além das cidades com solos impermeabilizados, que impedem a infiltração da chuva no solo, a região sofre como o rebaixamento do lençol freático pela mineração, além dos efluentes domésticos”, resume Polignano.
Como resultado do processo de mobilização, na virada para o século XXI a capital mineira ganhou a primeira estação de tratamento e, mais tarde, a segunda, processando hoje 70% do esgoto. “Os peixes voltaram em grande parte do território e o rio sobrevive”, celebra o coordenador, apostando em mais avanços na revitalização. “Ações coletivas da sociedade forçam maior aproximação entre o meio empresarial e a sustentabilidade”, diz.
Ir além dos muros
“O desafio é achar as melhores parcerias, públicas e privadas”, observa Rodrigo Brito, head de sustentabilidade da Coca-Cola Brasil e Cone Sul. Ele destaca a importância dos esforços pré-competitivos no tema da água, situação em que o ganho comum está acima da concorrência.
De acordo com Brito, devido à presença em diversas realidades do planeta nas temáticas ESG (Environmental, Social and Governance), a companhia traz uma ampla bagagem de experiências para as parcerias brasileiras. E nos projetos colaborativos em torno da água não é diferente: “Usamos a força da marca para mobilizar organizações e pessoas, fortalecer modelos e dar visibilidade ao que está funcionando”, enfatiza.
O trabalho exige mapear riscos para priorizar investimentos, com ênfase em SbN voltadas à segurança hídrica, como a restauração de florestas, na lógica de não apenas reduzir danos, mas promover impactos positivos. Dados da ONU indicam que esse caminho pode entregar 37% dos esforços de mitigação climática, marcando a retomada de investimentos em infraestrutura e produção no mundo pandêmico. Segundo o WWF, cerca de US$ 44 trilhões, ou pouco mais da metade do PIB global, depende diretamente do que a natureza fornece.
Além de aumentar a eficiência hídrica em 38% nas fábricas que opera no País, a companhia alcançou em 2015 o compromisso de devolver toda a água que utiliza, cinco anos antes do previsto – o que ocorreu via conservação e revitalização de bacias, bem como ações visando maior acesso ao recurso hídrico por populações locais, no total de 103 mil hectares no Espírito Santo, em São Paulo e no Amazonas. O plano, segundo Brito, é a expansão para as demais regiões brasileiras, com investimentos para ampliar, recuperar ou manter sistemas de abastecimento, no modelo de gestão comunitária da água.
Semiárido nordestino, a corrida pela água doce
O município de Irauçuba, no Ceará, representa um dos principais núcleos de desertificação mapeados no País. A paisagem árida de cactos e pedras foi cenário do flagelo da seca em tristes capítulos da História do Brasil. Ao longo das décadas, a construção de açudes e a distribuição de cisternas para armazenar água da chuva, junto a programas de transferência de renda no combate à fome e pobreza, por exemplo, ajudaram a mudar a realidade na zona rural. Onde há acesso à energia, o avanço de maior segurança hídrica, porém, está nos poços artesianos, com rede de distribuição às residências. Com um problema: em solos cristalinos como os do semiárido nordestino, a alta presença de sais torna salobra a água subterrânea, exigindo processos de tratamento que permitem uma melhor qualidade para beber.
Devido a isso, usinas de dessalinização foram disseminadas no sertão, conquista que agora chega à comunidade de Juá, naquele município, por meio da aliança entre a Coca-Cola e o Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar) – organização da sociedade civil voltada à instalação e operação de sistemas hídricos na zona rural do Nordeste. O novo empreendimento, incluído em acordo de cooperação técnica com o MDR no Programa Água Doce, prevê beneficiar 800 famílias, com investimento de R$ 300 mil pela empresa.
“Até agora, a população, que já teve acesso a poço artesiano em ações anteriores, permanecia refém dos garrafões de água para beber, vendida por comerciantes após tratamento realizado por particulares”, explica Marcondes Ribeiro, diretor-presidente do Sisar, antiga parceira da multinacional de bebidas no Programa Água+Acesso. Com a usina, a comunidade será abastecida a baixo custo, seguindo um modelo de gestão inovador que já implantou mais de 1,2 mil sistemas hídricos em 2,1 mil localidades sertanejas, atendendo a 40% da população rural do Ceará e mudando a realidade em áreas não atendidas pelas companhias de abastecimento.
“Sem gestão e manutenção, o resultado é o sucateamento, como ocorre com mais de 1 mil dessalinizadores existentes no Ceará”, adverte Ribeiro. Além do sistema hídrico, o trabalho social inclui a orientação dos moradores – que participam do processo e pagam pelo serviço – sobre o uso adequado. “É um modelo de parceria, não de competição, em benefício da população que mais precisa e que gira as economias locais”, afirma Ribeiro.
Para ele, o maior desafio é a busca por novos parceiros, além da necessidade da mudança de paradigmas no setor: “Em geral, os projetos são elaborados com base em referências urbanas, o que dificulta iniciativas em áreas rurais mais carentes, sem a definição de quem vai operar e fazer a gestão”. Ribeiro reforça que “muitos falam em crise hídrica, mas esquecem que no Semiárido nordestino vivemos a questão o tempo todo e já aprendemos a conviver com ela”.
[Fotos: Instalações do Sisar no Ceará/ Divulgação]