Se a diversidade só traz benefícios, por que o Brasil ainda está tão atrasado em termos de equidade? Evento sobre a inclusão de mulheres negras debate as razões do descompasso e como mudar esse quadro
Estudos cada vez mais numerosos demonstram que diversidade e inclusão só trazem benefícios – para as pessoas, para os negócios e para a sociedade. O estudo Diversity Matters (Diversidade Importa), da McKinsey, por exemplo, mostra que empresas com maior diversidade étnica e racial têm 36% maior probabilidade de obter melhores resultados financeiros. No entanto, os números no mercado de trabalho no Brasil ainda não refletem essa constatação. No caso de mulheres negras, apenas 8% das que estão no mercado formal ocupam cargos de chefia, como gerente, diretora ou sócia de empresas, segundo a pesquisa Potências (in)visíveis: a realidade da mulher negra no mercado de trabalho. Realizado pela consultoria Indique Uma Preta e pela empresa Box1824, o estudo ouviu mil mulheres, entre 18 e 65 anos, de março a setembro de 2020. Nas 500 maiores empresas do Brasil, as mulheres negras detêm menos de 1% em cargos de liderança, segundo pesquisa do Instituto Ethos.
Quais as razões desse descompasso e o que pode ser feito por empresas, governos e organizações da sociedade civil para mudar esse quadro? Essas são algumas questões debatidas com representantes dos três setores da sociedade, no segundo encontro da série Diálogos Coca-Cola para Sustentabilidade, em parceria com a Página22.
A live, realizada em 25 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher, durante o mês da Consciência Negra, contou com a participação de Débora Mattos, chefe de gabinete do presidente da Coca-Cola América Latina e uma das líderes da agenda de diversidade e inclusão na empresa; Luciana Gonçalves, diretora de políticas étnico-raciais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; Paulo Roberto, secretário nacional de políticas de promoção de igualdade racial do ministério; e Marina Peixoto, diretora executiva do Mover – Movimento pela Equidade Racial; com a mediação de Victor Bicca Neto, diretor de políticas e relações governamentais da Coca-Cola Brasil.
“Queremos um mundo sem racismo e machismo. Ninguém nasceu machista ou racista, tudo isso é construção social. E, se foi construído, temos o poder de desconstruir”, afirma o secretário Paulo Roberto. “Devemos olhar pelo para-brisa, mas também pelo retrovisor para refletir de onde viemos e, com isso, interromper um ciclo que só prejudica a todos.”
Assim, ele abre o debate com uma breve reconstituição de amostras do racismo e do machismo estrutural enraizados na História do Brasil. O secretário entende que o Brasil importou o conceito maligno de darwinismo social, aplicando na sociedade a ideia de que as “espécies” mais aptas sobrevivem e a menos aptas desaparecem.
O ideário racista, disseminado na Europa do século XIX pelo diplomata francês Arthur de Gobineau, teve influência direta na elite nacional. Gerou expoentes como o médico brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, adepto da eugenia, que só defendia a mestiçagem caso promovesse o embranquecimento da raça, e de João Batista de Lacerda, cientista que presidiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro. Em 1911, ao participar do I Congresso Universal das Raças em Londres, Lacerda apresentou o quadro A Redenção de Cam, de modo a defender a tese segundo a qual a população brasileira se tornaria branca ao cabo de 100 anos, por conta miscigenação com a entrada no País de imigrantes europeus. Com isso, segundo ele, as “mazelas” do Brasil acabariam.
“O Brasil adotou uma política de branqueamento. É preciso saber com quem estamos lutando: lutamos contra uma estrutura de Estado que deixou um rastro ao longo da História”, afirma o secretário. “Negro aqui foi espezinhado pelo Estado, é só ler Cidadania no Brasil: O longo caminho, deJosé Murilo de Carvalho. Foi muito pior do que brancos contra negros, era o Estado contra negros”, ressalta.
Este mesmo Estado impediu a mulher de votar durante 400 anos, até 1932. “Viemos de uma sociedade marcada pelo patriarcado, no qual a mulher era vista como uma coisa pertencente ao homem”, diz. Isso se reflete em números de violência contra a mulher até os hoje. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve quatro feminicídios por dia nos primeiros seis meses deste ano.
Por isso, o secretário defende que não se entenda a inserção da mulher negra no mercado de trabalho como privilégio, e sim como oportunidade. “Não se trata de um coitadismo, não é vitimismo, nem o tal do mimimi – expressão da qual tenho pavor, porque o mimimi nada mais é do que a desqualificação da dor do outro, da dor que fere a alma, a dor que não dá para dosar”, diz.
Mas, segundo ele, “quando a iniciativa privada entende que também possui um papel no sentido de evoluir em diversidade e inclusão, vemos que o capitalismo pode ser humanista também.” Há um longo caminho nessa direção, por isso há pressa em acelerar o passo.
Ainda de acordo com a pesquisa Potências In(visíveis), 51% das mulheres negras ouvidas afirmaram que receber promoções foi difícil ou muito complicado nos últimos anos, e 51% também disseram ter sido alvo de piadas relacionadas a cor, cabelo ou aparência no espaço de trabalho. Além disso, 49% disseram ter se sentido desqualificadas profissionalmente, mesmo tendo a formação necessária para ocupar tal espaço (considerando que pretos e pardos são mais da metade dos alunos nas universidades públicas, segundo o IBGE). E 37% contaram que tiveram uma opinião ou ideia silenciada, enquanto a opinião de pessoas brancas era ouvida ou valorizada, e 42% temeram se posicionar ou falar em espaços coletivos.
Para mudar situações como essas, o Mover, associação civil que reúne 47 empresas, atua em três pilares, com metas definidas e acompanhamento de indicadores, segundo a diretora Marina Peixoto. O primeiro é criar 10 mil cargos de liderança para pessoas negras até 2030, levando em conta a interseccionalidade, ou seja, levando em contra recortes como gênero, deficiência e LGBTQIA +. Com isso, espera-se promover mudanças na política de recrutamento e seleção, e realizar mentoria, programas de desenvolvimento de talentos e troca de experiências, para as empresas mais avançadas puxarem as que estão começando.
O segundo pilar é gerar 3 milhões oportunidades além dos muros das empresas, com criação de empregos, bolsas de estudos e programas de mentorias com comunidades, atuando em parceria com o Fundo Baobá. E o terceiro, importante para que os dois primeiros aconteçam, é o pilar de conscientização. Uma das ações é conscientizar as pessoas que trabalham nas 47 empresas – como foi feito por meio deste evento virtual realizado em 23 de novembro, batizado como Dia de Mover – mas também usar a força das marcas para ampliar a conscientização das pessoas como um todo.
“Não basta o D de diversidade, é preciso ter o I de inclusão e E de equidade. Se você traz pessoas, mas não oferece um ambiente inclusivo e programas de equidade, não consegue reter, nem desenvolver a pessoa. A meta para cargos de liderança é 2030, porque sabemos que isso não se constrói de hoje para amanhã. Por mais que a gente trabalhe a conscientização, existe a questão dos vieses [racistas]”, diz Peixoto.
Ela se refere a vieses inconscientes, principalmente quando se usa a parte “primitiva” do cérebro. Segundo teoria desenvolvida pelo economista comportamental Daniel Kahneman, autor de Rápido e Devagar – Duas formas de pensar, o cérebro humano divide-se em dois: o mais primitivo, chamado de cérebro rápido, e o mais moderno (o córtex pré-frontal), denominado cérebro lento. Ou seja, mais do que combater atitudes conscientemente preconceitusoas, é preciso atuar também nas ações involuntárias.
“Cerca de 70% a 80% das nossas decisões são tomadas pelo cérebro primitivo”, comenta. Por isso, segundo ela, são necessários novos processos voltados a mitigar os vieses nos sistemas de recrutamento e nos processos internos de avaliação de desempenho – que foram desenhados na maioria por homens brancos, sem o olhar da mulher e muito menos da mulher negra. “Precisamos revisitar esses processos e investir em mudanças, se quisermos acelerar a equidade”, diz.
Letramento massivo
Outra maneira de acelerar essa transformação, segundo ela, é desenvolver um letramento massivo nas empresas, o que no Mover tem sido realizado com o parceiro Instituto ID_BR | Sim à Igualdade Racial. Uma estratégia adicional é trabalhar o letramento diretamente com os CEOs das empresas. “A agenda move mais rápido quando você tem o engajamento da alta liderança, porque eles quebram as barreiras”, explica.
Esse engajamento com CEOs, conta ela, foi buscado desde o início da existência do Mover, com reuniões periódicas com os executivos e construção conjunta de planos. “Eles são, em sua maioria, homens brancos e precisam entender cada vez mais como podem atuar dentro de suas empresas. Em cada uma dessas reuniões, que hoje ocorrem mensalmente, trazemos um convidado de fora que possa falar sobre o racismo, dizer por que é estrutural e contar essa História do Brasil que muitas vezes não foi contada nas escolas”, diz, lembrando que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. As reuniões também contam com um negro em cargo de gestão que possa abordar o tema sob o ponto de vista mais empresarial.
Marina Peixoto já trabalhava com diversidade e inclusão na Coca-Cola, onde trabalhou por 20 anos. Quando foi a trabalho para Atlanta, nos Estados Unidos, morou perto de onde viveu o ativista negro Martin Luther King, e lá estava quando George Floyd foi assassinado, em 25 de maio de 2020. “Ali eu entendi que tinha de ser mais atuante nessa agenda, e que essa agenda precisava ganhar muito mais intensidade e velocidade”
Quando retornou ao Brasil, ela assumiu a diretoria de diversidade e inclusão na Coca, e deu início à construção do Mover junto a várias outras empresas. Tudo começou como um compromisso público da coalizão de empresas. Com a ideia de fazer com e não fazer para, Peixoto conversou com vários líderes de movimentos negros para entender qual seria o papel da empresa nessa agenda.
A partir de uma série de escutas, o Mover nasceu em 8 de junho de 2021, já com 45 empresas. Ela, então, optou por deixar a carreira corporativa para dedicar atenção total às causas do movimento. “A mudança de carreira foi por acreditar que no coletivo vamos conseguir maiores transformações”, conta. Hoje o Mover está constituído como associação civil, localizado na L’oréal Brasil, em uma região do Rio de Janeiro conhecida como Pequena África.
Campanha
O coletivo pressupõe atuar em rede, em diálogo com os diversos setores da sociedade. Segundo Luciana Gonçalves, do Ministério da Mulher, a pasta está trabalhando na construção de campanha nacional para atender a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com previsão de entrega de campanha de 8 de março de 2022 a campanha deve trabalhar temas de sensibilização com enfoque na igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, a garantia constitucional da mulher e enfrentamento da discriminação.
Para isso, a diretora de políticas étnico-raciais. busca articulação com diversos ministérios da Esplanada na construção da campanha, além de parcerias, inclsuive como setor privado. Segundo ela, já houve adesão de 27 universidades federais e do Ministério Público do Trabalho. “Ação afirmativa é política de Estado, não é moda”, afirma Gonçalves, ao comentar que o tema veio para ficar. “Houve avanços, mas ainda são necessárias políticas públicas específicas para identificar a potencialidade das mulheres para além da contratação.”
Em comparação a outros países da América Latina, a agenda no Brasil está acelerada, na avaliação de Débora Mattos, que a partir de janeiro assumirá o posto de gerente geral da Coca-Cola no Chile, Bolívia e Paraguai, com base em Santiago. Ela também é colíder do grupo de raça no Brasil e líder do grupo de equidade racial na América Latina – região na qual os negros perfazem 25% da população. “O Brasil, com representatividade grande nesse número, passou por uma visibilização da população negra antes que outros países. Somente entre 2018 e 2019, que México e Chile começaram a reconhecer afrodescendentes no Censo”, exemplifica.
A partir de uma ideia que surgir no comitê de diversidade racial da Coca, a empresa passou a oferecer bolsas de inglês, espanhol e português para funcionários em toda a América Latina. Segundo ela, esse é um exemplo de ação inclusiva que considera o ponto de partida desigual das pessoas e busca reduzir esses gaps. “Precisamos garantir que políticas de recrutamento não tenham vieses inconscientes que atrapalhem identificar a potência de cada um. Muitas pessoas negras sustentam uma família estendida, pais, primos, tios. Exigir inglês dessa pessoa é diferente de exigir de quem pode pagar”, diz.
Além ser o certo do ponto de vista moral e ético, o reconhecimento e a valorização das potecialidades das minorias é vantajoso do ponto de vista dos negócios. “Já não vejo caminho para as empresas fora da diversidade, porque elas precisam colocar o consumidor no centro, e esse consumidor é diverso. Na Coca-Cola, por exemplo, precisamos ser tão diversos como são os nossos consumidores “, afirma a executiva.
Além disso, a diversidade nas equipes ajuda os negócios na medida em que cria ambiente, de confiança para lançar novas ideias, exercitar a criatividade e gerar inovação. “Em um ambiente mais diversificado, você tem coragem de falar algo que de início pode soar estranho. Por exemplo, um dia alguém deu a ideia de fazer o Papai Noel da Coca-Cola negro em 2019, o que era considerado uma ação ousada. Mas aí alguém pode lembrar: ‘Poxa, na minha casa o Papai Noel sempre foi negro, porque meu pai é negro’. Então você vai desconstruindo, trazendo os novos olhares”, diz.
Este estudo descrito na Harvard Business Review corrobora a percepção de Mattos. Mostra que as equipes resolvem problemas mais rapidamente quando são mais diversificadas do ponto de vista cognitivo. Além disso, Peixoto,da Mover, lembra que uma equipe heterogênea tem maior probabilidade de entender as necessidades de seu cliente do que uma equipe homogênea, o que impacta positivamente no crescimento da empresa e, por consequência,no apetite dos investidores.
Não por acaso, o mercado financeiro começa a abraçar a agenda de diversidade e inclusão, que faz parte do S do ESG (critérios ambientais, sociais e de governança). Ela acredita que, com o mercado cobrando métricas públicas e o consumidor também, não tem como as empresas ficarem apenas no discurso e não praticarem. “Não há mais volta”, afirma (leia mais nesta reportagem da Página22 sobre racismo e desigualdades na agenda ESG).
Aliados não-negros
Mattos salienta que a Coca foi a primeira empresa a colocar na publicidade negros e brancos juntos, em plena época da segregação racial nos EUA. Há um outro episódio do qual a empresa se orgulha. Quando ganhou Martin Luther King ganhou o Nobel da Paz em 1964, um grupo de empresários em Atlanta quis fazer um jantar em homenagem para ele, mas encontrou uma resistência muito grande. Diante disso, o presidente da Coca mundial na época, disse que, se o jantar não fosse feito, a empresa iria embora de Atlanta.
Essa ação mostra a relevância do engajamento de não-negros na causa étnico-racial. Peixoto comenta que às vezes é questionada por ser uma branca falando por negros. “Sim sou uma branca, no papel de aliada.” Ela argumenta que os brancos foram os responsáveis por essa construção histórica e, dos cargos que ocupam, têm a responsabilidade de mexer nesses privilégios. Segundo ela, quando alguns brancos assumem a luta contra o racismo, os outros que resistem a isso passam a prestar atenção e o movimento cresce. “É uma forma de furar a bolha.”
Assista à integra do debate aqui.