Livro sobre justiça climática lançado hoje reúne conceitos, pesquisa histórica, entrevistas e ensaios, mostrando como fatores ambientais e climáticos reforçam as desigualdades no País; leia depoimentos e acesse o pdf completo
O livro Quem precisa de justiça climática no Brasil?, coordenado pela jornalista Andréia Coutinho Louback, é lançado hoje pelo Observatório do Clima, durante a Conferência Brasileira de Mudança do Clima, em Recife. O título foi o ponto de partida para um trabalho a várias mãos, ao longo de um ano e meio, que traz conceitos, retrospectiva de eventos climáticos extremos no País e, em destaque, 16 entrevistas com lideranças indígenas, quilombolas de comunidades pesqueiras, periféricas e rurais, além de especialistas que lidam com o tema.
Para responder à pergunta do título, a publicação buscou uma perspectiva interseccional, ouvindo lideranças majoritariamente mulheres, indígenas, negras, quilombolas, periféricas, pesqueiras e rurais. “A interseccionalidade evidencia que cada pessoa é recortada por diferentes eixos identitários que, somados, tornam invisíveis as questões específicas desses encontros de eixos, chamados intersecções. Essas intersecções podem ser a raça, a etnia, a classe, a orientação sexual, a religião, a origem geográfica”, escrevem os autores.
“Quanto mais eixos se cruzam, ou seja, quanto mais uma pessoa reúne tais características, mais marginalizada ela se encontra dentro da sociedade, o que explica porque nessas intersecções surgem especificidades que não são evidentes para todas as pessoas e que, por isso, não são abordadas pelos movimentos sociais e de direitos de modo geral.”
Considerando que as injustiças climáticas ocorrem nos territórios, foram entrevistados: Adriana Ramos, Cacica Eliara, Diosmar Filho, Érika Pires Ramos, Iago Hairon, Jouse Barata, Luana Costa, Mãe Donana, Max Maciel, Regina Rodrigues de Freitas, Roselita Vitor da Costa Albuquerque, Selma Dealdina, Silvia Helena Batista, Tuya Kalunga, Veridiana Vieira e Walelasoetxeige Suruí (Txai Suruí).
O coração da publicação é exatamente a fala dessas pessoas que defendem seus territórios, em diversas regiões do Brasil e em diferentes contextos. Elas moram em periferias urbanas de Pernambuco e do Distrito Federal, em aldeias de Rondônia ou Santa Catarina, coletam castanhas no Amazonas e em Mato Grosso ou vivem em quilombos da Bahia e de Goiás.
A maioria das entrevistas foi realizada com lideranças mulheres e especialistas na defesa do meio ambiente, que contam sobre suas vivências e perspectivas quanto às transformações da natureza e como se organizam coletivamente. O alerta — que surge para além dos espaços acadêmicos ou institucionais — é de como fatores ambientais e climáticos reforçam desigualdades já existentes e exacerbam a marginalização.
Completam a publicação seis ensaios e um breve tributo a algumas ativistas climáticas. O prefácio é assinado por Marina Silva. A ex-ministra do Meio Ambiente abre reflexões lembrando o quanto o modo de vida humano gera desorganização no sistema natural que dá suporte à vida na Terra. “Em geral são os que menos causam impacto ambiental, os que menos consomem os recursos naturais do planeta, mas é sobre quem recai o maior sofrimento pelas mudanças climáticas já em andamento”, afirma Silva.
Confira aqui alguns depoimentos colhidos pela publicação:
“O mundo tem que olhar e valorizar a sabedoria tradicional. As soluções já existem e já são praticadas dentro da comunidade. O que precisa é que o mundo escute o que a gente fala e coloque isso em prática em outros lugares.” Txai Suruí, da Terra Indígena Sete de Setembro (RO)
“Eu acho que a justiça faz muito pouco por nós, mulheres. Quando você vai à procura desses seus direitos, descobre que tem uma lei que te protege, mas cem leis que dizem o contrário”. Veridiana Vieira, de Cotiguaçu (MT)
“No dia seguinte às enchentes, os patrões querem que você vá trabalhar normalmente, sendo que na periferia está tudo transbordando. E quando você chega naqueles bairros elitizados, está tudo sequinho, bonitinho, mesmo sendo bairros baixos.” Jouse Barata, de Recife
“Quando a gente vai para Brasília, para muitos debates de projeto de algumas coisas que já chegou nos estados do sul do país, a Região Norte nem sequer é incluída.” Silvia Batista, de Manicoré (AM)
“Não tem como desvincular a questão ambiental da racial. Se a pauta ambiental não conversar com a racial, é fracasso. Se a pauta não tratar ambiental, racial, gênero e classe, é fracasso.” Selma Dealdina, do Território do Sapê do Norte, São Mateus (ES)
“Mesmo precarizada, ganhando mal, [a periferia] não parou nem um minuto na pandemia. Não teve a oportunidade de ficar em casa. Ao mesmo tempo, são esses próprios grupos que têm condição e autonomia de falar sobre o real impacto do meio ambiente nas vidas das pessoas.” Max Maciel, de Ceilândia (DF)
Leia a seguir trecho da publicação sobre como o conceito de justiça climática surgiu:
A justiça climática é um desdobramento da justiça ambiental, que evidencia especificamente os impactos desproporcionais das mudanças climáticas sobre determinados grupos sociais. Nesse sentido, os impactos climáticos são também impactos ambientais e podem ser analisados de acordo com a lógica da justiça ambiental aplicada ao clima.
O termo foi usado, inicialmente, na década de 1990, em documento que denunciava a indústria do petróleo como principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa que causam as mudanças climáticas. Desde então, de acordo com Susana Borràs, as bases para a sua aplicação são delineadas em documentos internacionais, como a previsão dos princípios da equidade19, responsabilidades comuns, porém diferenciadas e da responsabilidade histórica dos países industrializados pelas emissões de gases de efeito estufa que deram causa à crise climática, previstos no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), de 1992.
Porém, foi apenas em 2015 que a justiça climática finalmente foi reconhecida no preâmbulo do Acordo de Paris e explicitada formalmente pela ONU. Um verdadeiro marco histórico em múltiplos sentidos para a comunidade climática, o que oficializou um caminho de transformação no campo global de atuação contra as iniquidades da crise climática.
A justiça climática propõe que as mudanças climáticas sejam analisadas e combatidas com o viés da responsabilização daqueles que efetivamente deram causa ao desequilíbrio constatado e que possuem mais condições de enfrentá-las – principalmente países e empresas do Norte Global –, evitando- se, assim, a socialização dos ônus climáticos e a privatização dos bônus. Em outras palavras, significa que aqueles que, historicamente, se beneficiaram e se desenvolveram com as emissões de gases de efeito estufa acumulados até hoje na atmosfera não podem compartilhar com os demais a responsabilidade pelos prejuízos e impactos das mudanças climáticas.