Será a governança das águas no Brasil capaz de enfrentar a insegurança hídrica, a emergência climática e a vulnerabilidade social?
Por Angelo José Rodrigues Lima*
O Brasil aprovou em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei 9443/97, criando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) uma conquista da sociedade brasileira e da evolução da democracia no País. A Lei apresenta alguns fundamentos importantes: a água é um bem de domínio público; a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas e a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
Outros aspectos importantes da Lei são algumas de suas diretrizes, tais como a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental; a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo e a a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras.
Entre seus objetivos, está a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais. Portanto, os fundamentos, diretrizes e objetivo citados guardam inteira relação com a questão da segurança hídrica, emergência climática e as vulnerabilidades sociais e ambientais, demonstrando que temos um bom arcabouço legal para enfrentar os desafios da emergência climática, vulnerabilidade social e segurança hídrica.
O Singreh (Figura 1) é um sistema assentado na necessidade de intensa articulação e ação coordenada entre as diferentes esferas e políticas para sua efetiva implementação, indicando que a Governança é um elemento que faz parte deste sistema.
Figura 1: Organograma do atual Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh).
Interações necessárias entre segurança hídrica, emergência climática, vulnerabilidade e governança
De acordo com a Organização das Nações Unidas, segurança hídrica significa: “a capacidade de uma população para salvaguardar o acesso a quantidades adequadas de água de qualidade aceitável para sustentar meios de vida, bem-estar humano e desenvolvimento socioeconômico; para assegurar a proteção contra a poluição e doenças transmitidas pela água; e para a preservação de ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política”.
Em relação a emergência climática, as expressões “emergência”, “crise” ou mesmo “colapso climático”, usadas têm origem incerta.
Segundo o Dicionário Oxford, “emergência climática, é uma situação em que é necessária uma ação urgente para reduzir ou interromper a mudança climática e evitar danos ambientais potencialmente irreversíveis”.
Para Ximenes (2010), vulnerabilidade social é um conceito multidimensional que se refere à condição de indivíduos ou grupos em situação de fragilidade, que os tornam expostos a riscos e a níveis significativos de desagregação social. Relaciona-se ao resultado de qualquer processo acentuado de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de indivíduos ou grupos, provocado por fatores, tais como pobreza, crises econômicas, nível educacional deficiente, localização geográfica precária e baixos níveis de capital social, humano, ou cultural, dentre outros, que gera fragilidade dos atores no meio social.
Em relação à governança, “é possível dizer que a governança envolve tanto a gestão administrativa do Estado como a capacidade de articular e mobilizar os atores estatais e sociais para resolver os dilemas de ação coletiva’, segundo Fernando Abrucio. Para Castro, a governança sendo democrática é um processo político que pode caracterizar-se pelo confronto de projetos políticos rivais fundamentados em diferentes valores e princípios. Consequentemente, a discussão sobre governança ainda ressalta a necessidade do debate político sobre os diferentes valores e princípios existentes na sociedade.
Qual é o cenário da mudança climática, da vulnerabilidade social e da governança?
Segundo o 6º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), “o Brasil e os outros países do mundo já apresentam um grande cardápio de impactos das mudanças climáticas.
No Nordeste, a redução de chuva, que já é pouca, pode chegar a 22%, a agricultura no Brasil deverá ser prejudica, como por exemplo, a produção de trigo pode cair 21% no cenário de altas emissões e a produção de arroz, pode cair entre 3% a 6%.
Assim como já está acontecendo em algumas capitais, haverá um aumento no número de eventos de chuvas extremas, o que implica aumento na probabilidade de enchentes e deslizamentos de terra, como os verificados em Petrópolis no início de 2022.
Segundo o MapBiomas, o desmatamento e o manejo inadequado e uso do solo na área urbana e rural fez o Brasil perder cerca de 15,7% da superfície de água, demonstrando que o país está reservando menos água, reserva esta que é fundamental para enfrentar os períodos mais secos que sempre acontecem e conforme dados do IPCC, esses poderão ser maiores.
O Brasil tem governança para resolver estes desafios?
A Política Nacional de Recursos Hídricos é o marco que estabelece os princípios, objetivos, instrumentos e a definição de um sistema de gerenciamento integrado, descentralizado e participativo para governança e gestão das águas. A questão é se esta governança está preparada para enfrentar os desafios.
Para responder a esta questão, diversos atores da gestão de recursos hídricos no Brasil realizaram uma discussão sobre a necessidade do monitoramento da governança. Segundo Souza (2013), monitoramento pode ser entendido, em sentido lato, como o conjunto de atividades, articuladas, sistemáticas e formalizadas, de produção, registro, acompanhamento e análise crítica de informações geradas na gestão de políticas públicas, de seus programas, produtos e serviços, por meio das organizações, agentes e públicos-alvo envolvidos, com a finalidade de subsidiar a tomada de decisão quanto aos esforços necessários para aprimoramento da ação pública.
Segundo a rede de atores do Observatório das Águas (OGA Brasil), a gestão de recursos hídricos no Brasil necessita de um sistema de monitoramento para avaliar os processos para que a gestão seja implementada; a governança prepara a gestão. Ao pensar na construção de um Sistema de Monitoramento, deve-se trabalhar com os elementos que compõe este sistema e para monitorar é necessário a construção de indicadores.
O que são indicadores?
O vocábulo “indicador” tem raízes no verbo latino indicare, que significa anunciar e divulgar. Os indicadores normalmente são pensados como peças de evidência que forneçam informações sobre questões de interesses amplos.
Segundo Altmann, no caso de políticas públicas, avaliar uma política pública é avaliar amplamente toda forma de ação pública, sejam programas, legislações, serviços ou instituições; é emitir um julgamento sobre o valor dessas ações.
A construção deste sistema de monitoramento inicia-se em 2005 fazendo a pergunta “Como verificar se o Sistema está cumprindo o seu papel diante de sua finalidade?”. Isso deu origem à publicação do documento Reflexões & Dicas (Figura 2) apresentando a necessidade de criar indicadores de monitoramento do Singreh.
Figura 2. Reflexões e Dicas.
Alguns anos depois, em 2012, quando todos os estados da Federação já haviam aprovados suas Políticas Estaduais de Recursos Hídricos, foi produzida uma análise sobre a governança do Sistema de Recursos Hídricos.
Essa análise sugeriu a construção de um sistema de monitoramento que veio através da criação do Observatório das Águas do Brasil, ao mesmo tempo que foi construído a primeira versão de indicadores de governança que estão apresentados na publicação Governança dos Recursos Hídricos – propostas de indicadores para acompanhar sua implementação.
Figura 3. Governança dos recursos hídricos – Proposta de indicadores para acompanhar sua implementação
A partir desta primeira versão, foi realizada uma pesquisa no Brasil e no mundo sobre indicadores de governança que contou com a participação de diversos atores e pesquisadores (as) de governança e gestão das águas no Brasil resultando na publicação Guia de Monitoramento da Governança das Águas, que apresenta 5 dimensões de governança e onde estão distribuídos 55 indicadores (Figura 4).
Figura 4. As cinco dimensões da governança onde estão distribuídos 55 indicadores no total.
Para Januzzi, indicadores de processo ou fluxo, são indicadores intermediários, que traduzem, em medidas quantitativas, o esforço operacional de alocação de recursos humanos, físicos ou financeiros (indicadores/insumo) para a obtenção de melhorias efetivas de bem-estar (indicadores/resultado e indicadores/impacto), como número de consultas pediátricas por mês, merendas escolares distribuídas diariamente por aluno ou ainda homens/hora dedicados a um programa social.
O Guia de Monitoramento da Governança das Águas está composto por indicadores que tem o olhar para analisar os processos de funcionamento e da implementação da gestão de recursos hídricos no Brasil.
O Guia compreende que monitorar a governança das instâncias do Singreh significa avaliar tanto a instância em si, quanto as relações e as necessidades de interação e integração da instância com outras esferas, inclusive esferas fora da gestão de recursos hídricos e outros temas que se relacionam direta ou indiretamente com a gestão de recursos hídricos.
O Guia de Monitoramento da Governança das Águas está preparado para analisar as interfaces com emergência climática, segurança hídrica e vulnerabilidade social?
O Guia tem como base conceitual a democracia e o modelo de governança de política pública construídos com participação social, tal qual é o modelo da gestão de recursos hídricos descentralizado e participativo que deve contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. É preciso compreender que, sem democracia, não existe gestão descentralizada e participativa.
Estudiosos como Fiorino identificaram vários benefícios da participação, que vão desde o aumento da legitimidade de decisões, ao desenvolvimento da democracia participativa, além da democracia representativa.
Segundo Fiorino, o processo participativo tem decisões de melhor qualidade: quando o conhecimento de diferentes atores, incluindo especialistas, é reunido durante o debate, isso pode, potencialmente, levar a decisões com mais informações.
O monitoramento da governança possibilita verificar se as instâncias estão construindo políticas públicas para enfrentar os desafios da segurança hídria, emergência climática e vulnerabilidade social. Cada Dimensão do Guia possibilita de forma diferente o olhar para os temas acima e principalmente a análise de forma integrada e sistêmica.
Como exemplo disso, pode-se citar que na Dimensão Ambiente Institucional, o monitoramento verifica se a água é uma agenda estratégica para a sociedade brasileira; na Dimensão Capacidades Estatais, é discutido e identificado a capacidade operacional do Poder Público em relação a qualidade e quantidade de técnicos, contribuindo assim para discussão de qual é o tamanho do Estado que é necessário para dar conta da gestão das águas na União e em cada Poder Público Estadual.
Continuando, na Dimensão Instrumentos da Gestão de Recursos Hídricos que trata da análise dos Planos de Bacias, Enquadramento, Cobrança, etc.; identifica se na elaboração dos planos de recursos hídricos construídos tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento, se eles estão integrados com a gestão ambiental, com o manejo e uso do solo, com os cenários das mudanças climáticas, com os planos diretores dos municípios, possibilitando que se integrem aos temas da segurança hídrica, emergência climática e vulnerabilidade social.
Em relação a vulnerabilidade social que atinge atores que em alguns casos ainda estão fora da gestão dos recursos hídricos, o monitoramento trabalha com a dimensão Interação Estado-Sociedade, onde uma das questões a ser monitorada, é a exatamente a questão da representação e representatividade nas instâncias do Singreh, identificando quais são os atores ainda estão fora da instância.
O monitoramento da governança fortalece o espaço deliberativo, inclusive para que este seja reconhecido como um órgão de estado e não um órgão do governo que ora esteja no nível federal ou estadual.
Segundo Pedro Jacobi, atualmente, o maior desafio é garantir que esses espaços sejam, efetivamente, públicos, tanto no seu formato quanto nos resultados. A dimensão do conflito lhes é inerente, como é a própria democracia. Portanto, estes espaços de formulação de políticas, onde a sociedade civil participa, marcados pelas contradições e tensões, representam um avanço, na medida em que dão publicidade ao conflito e oferecem procedimentos de discussão, negociação e voto de forma legítima.
O monitoramento da governança verifica se as instâncias do Singreh, em especial, os comitês de bacias estão cumprindo com sua função deliberativa sobre a gestão dos recursos hídricos na bacia, pois além da elaboração de políticas públicas, é imprescindível que esta seja implementada.
O guia colabora para que as instâncias do Singreh identifiquem as lacunas de governança para verificar como está o nível de governança para enfrentar os desafios colocados inclusive para preparar políticas públicas em relação à emergência climática, vulnerabilidade social e a segurança hídrica.
A governança das águas está preparada para enfrentar os desafios da Segurança Hídrica, a Emergência Climática e a Vulnerabilidade Social?
A Governança é a base para integrar segurança hídrica, emergência climática e vulnerabilidade social (Figura 5). Sem Governança, será dificílimo para o Brasil enfrentar os impactos relacionados com os temas acima. É fundamental que os atores da gestão de recursos hídricos compreendam sua importância.
Figura 5. A Governança no centro para garantir segurança hídrica, e enfrentar a emergência climática e a vulnerabilidade social.
A rede do Observatório da Governança das Águas, quando constrói o Guia para monitorar a governança, primeiro quer chamar a atenção para a importância desta. Para obter a reposta se a governança das águas está preparada para enfrentar os desafios da Segurança Hídrica, a Emergência Climática e a Vulnerabilidade Social, é fundamental monitorar a governança do Singreh.
Quando a governança do Singreh é analisada, é possível verificar que existe um grande potencial para a integração de temas e atores, entretanto, só com o monitoramento é que se poderá saber se isto está acontecendo.
*Angelo José Rodrigues Lima é Biólogo (UFRRJ); Mestre em Planejamento Ambiental (Coppe/UFRJ); Doutor em Geografia (Unicamp) e atualmente exerce o cargo de Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas.
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