Avançar em diversas frentes de mobilização social, começando por reflexões sobre transformações internas como indivíduos, é chave no desafio de aumentar expressivamente a escala da regeneração da natureza até o fim desta década
Por Sérgio Adeodato
Diante da emergência climática e da perda global de biodiversidade, a expansão das iniciativas na dimensão e urgência necessárias para reconstruir os ecossistemas impactados pela ação humana, criando oportunidades e reduzindo riscos às condições de vida, aos negócios e às economias, depende de um elemento básico por trás das mudas e sementes: o engajamento da sociedade. Como mobilizar tomadores de decisão, formadores de opinião, coletivos, consumidores e o público em geral nas cidades e fora delas? Quais as melhores estratégias para envolvimento de produtores rurais e outros setores na temática? O que falta para a narrativa romper os muros das escolas ou a bolha da academia?
“A questão não está somente em como mobilizar, mas como chegar aos corações e engajar na velocidade necessária para atingir metas”, ressalta o profissional de comunicação estratégica Vitor Leal Pinheiro, coordenador da campanha Mares Limpos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). “Precisamos construir a relação com a natureza e reconhecer que fazemos parte dela”, observa.
O tema inspirou o debate no webinar “Como Dar Escala à Restauração de Ecossistemas – o Papel da Mobilização Social”, realizado pelo Pnuma, The Nature Conservancy (TNC) e Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre), em parceria com a Página22. De acordo com Pinheiro, para uma maior abrangência das iniciativas, é imprescindível aproximar o meio urbano dos ecossistemas: “O que nós, nas cidades, podemos fazer?”.
O desafio da participação popular ganha força em cenário de desinformação e demanda pelo efetivo cumprimento de políticas ambientais já existentes. “Uma chave é estabelecer conexões entre as agendas, como a da poluição por plásticos e da degradação dos ecossistemas”, afirma Pinheiro no debate – o segundo de uma série de três webinários que discutiu o tema das políticas públicas no primeiro evento, em setembro, e abordará o papel da capacitação técnica no último debate, a ser realizado em 8 de novembro.
Na análise do comunicador, ao promover maior entendimento sobre a relação entre a vida cotidiana e a realidade dos impactos ambientais, “devemos testar argumentos e entender o que é mais importante para cada perfil de público e suas várias características, criando pontes e caminhos mais interessantes de envolvimento, com maior identidade”.
A expansão do debate das escolas para os bairros e das casas de cada um para os vizinhos ajuda a gerar comunidades, com as pessoas mais próximas umas das outras. “É uma forma de se envolverem por mais tempo”, explica Pinheiro, dedicado à comunicação de causas ambientais, com experiência em campanhas da Oxfam e Greenpeace.
A questão exige traduzir relatórios científicos complexos para uma linguagem popular mais fácil de entender: “Mobilizar é compreender o que está acontecendo e gerar engajamento nesse processo”, diz Pinheiro.
A temática representa um dos três pilares do plano de ação da Década da Restauração de Ecossistemas, que objetiva fortalecer compromissos públicos para reverter a degradação e promover a recuperação de florestas, oceanos e demais ambientes naturais do planeta. No campo do movimento regional para compromissos e participação social, as ações abrangem promover a sensibilização pública, dar visibilidade a quem defende a restauração e levar o tema para as escolas.
Do indivíduo à sociedade
Entre os diferentes caminhos para sensibilizar as pessoas, inclui-se a dimensão da espiritualidade, conforme destaca Danielle Celentano, consultora do Pnuma no apoio às ações da Década da Restauração no Brasil. “É uma maneira de atingir os corações, aprendendo pelo amor e não pela dor, com reflexos na qualidade de vida das futuras gerações”, pontua.
Em artigo científico na revista Ecological Restoration, a engenheira florestal discute o conceito de “restauração ecológica integral”, em que a busca por escala só faz sentido com o trabalho dos aspectos internos do indivíduo e sua conexão com a natureza. “O que vemos no meio ambiente é um reflexo da sociedade; e o que vemos na sociedade é um reflexo da pessoa como indivíduo”, ressalta Celentano. Ela conclui: “as ações práticas serão apenas paliativas se não trabalharmos a dimensão humana da restauração, que no fim do dia determina o querer político e econômico”.
A sinergia catalisada pelas pessoas em grupo, mobilizadas em rede, pode resultar em um impacto de grande abrangência, como uma maré.
“Só mesmo um coletivo é capaz de criar uma grande onda de restauração no País e temos essa década para fazer a diferença”, enfatiza Claudia Picone, líder de marketing e parcerias corporativas na The Nature Conservancy (TNC) Brasil, com trabalhos no engajamento de indivíduos e empresas em campanhas de mobilização, como na plataforma Restaura Brasil.
Com o objetivo de plantar 1 bilhão de árvores até 2030, contribuindo para o alcance das metas climáticas, a iniciativa online permite doações por meio de um clique sem sair de casa. Com mapeamento de áreas para restauração e banco de dados sobre as ações em campo, o trabalho é realizado em parceria com mais de dez estados brasileiros, coletivos de restauração, outras ONGs, associações rurais e setor privado, na demanda das agendas de sustentabilidade. “A plataforma representa o casamento entre conhecimento técnico e o momento [de busca por regeneração de ecossistemas] que estamos vivendo”, diz Picone.
Com mestrado na Bradford University, no Reino Unido, a comunicadora social reúne reflexões sobre o histórico de movimentos de referência em causas ambientais, como a marcha do Dia Global de Ação pela Justiça Climática, na Conferência do Clima (COP 26), em 2021, que mobilizou cerca de 100 mil pessoas em Glasgow e se desdobrou em ações de ativismo em mais de 100 países. Na mesma onda, como forma de pressionar o governo alemão a repassar £ 100 bilhões para o combate à mudança climática, o Fridays for Future (Greve Global pelo Clima) reuniu 36 mil pessoas em setembro deste ano, em Berlim. O movimento é liderado por Greta Thunberg, ativista que aos 15 anos, em 2018, sentou-se em frente ao parlamento sueco, às sextas-feiras, para exigir ações climáticas de seu governo.
Jovens engajados
No Brasil, os efeitos se refletem nas ações de redes articuladoras em diversas regiões, como a Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável (Cojovem), no Pará. “Para mobilizar alguém, temos que primeiro mobilizar a nós próprios; quando falamos de restauração de ecossistemas, estamos falando sobretudo de pessoas”, reforça Karla Giovanna Braga, cofundadora da ONG e diretora de gestão de projetos e sustentabilidade.
A iniciativa surgiu da união de lideranças amazônidas reconhecidas com o título de Embaixadores da Juventude pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes. Entre as ações, o programa Maré tá pras Juventudes mobiliza e fortalece quem faz acontecer nas Amazônias, com ênfase na mitigação de impactos da crise climática na perspectiva da Agenda 2030 da ONU. Até o momento, o programa abrangeu mais de 500 mil jovens em diferentes territórios do Pará.
Como desmascarar fake news, direitos das populações amazônidas e impactos climáticos são temas das jornadas online do programa, com desafios de comunicação e de mobilização social que oferecem prêmios em dinheiro e oportunidades para as juventudes paraenses. Além da formação e engajamento de 112 jovens mobilizadores, 17 coletivos foram criados ou fortalecidos – e, atualmente, o movimento contribui na elaboração de uma agenda positiva norteadora de políticas públicas estaduais no Pará.
“O papel da escola é fundamental, mas é preciso ir além do plantio de mudas e romper os muros para tocar os corações”, afirma a engenheira sanitarista e ambiental. “Diante dos desafios climáticos, precisamos olhar de forma mais carinhosa sobre o nosso papel como cidadãos e sobre como temos tratado a nós mesmos nesse processo de reconstrução dos territórios e do planeta”, conclui Braga.
Na restauração de ecossistemas, o aumento da escala é impulsionado pela força de coletivos locais e produtores rurais no trabalho de chão, com desafios de mobilização que precisam ser vencidos. “É difícil falar em restaurar quando falta o básico para as famílias”, aponta Ana Paula Rovedder, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade), na Universidade Federal de Santa Maria (RS). A engenheira florestal defende a recuperação ecológica com inclusão social e engajamento por meio da “restauração produtiva”, incorporando aspectos socioeconômicos como renda, alimentação, acesso à água e segurança energética.
O desafio do engajamento cresce no contexto do aumento da pobreza e da fome, que atinge 33 milhões de brasileiros. No Programa Conexus, o Neprade trabalha junto a cerca de 100 produtores da agricultura familiar em assentamentos rurais na região do Pampa, com proteção de nascentes e cultivo de agroflorestas nos quintais, após amplo diagnóstico socioambiental realizado em 46 municípios. Análises da qualidade da água que constataram a presença de coliformes fecais e contaminantes de agrotóxicos ajudaram na percepção das famílias sobre os riscos do contínuo avanço da monocultura de soja no entorno e a necessidade de práticas sustentáveis.
“A mulher é personagem essencial para o processo dar certo nas comunidades”, destaca Rovedder, ao enfatizar a importância da “restauração de terra e, também, de gente”.
Na visão da pesquisadora, cofundadora da Rede Sul de Restauração Ecológica, a estratégia deve buscar o estabelecimento de confiança e autoestima de quem precisa recuperar os ecossistemas, em especial no Pampa. No entanto, há entraves estruturantes que afetam a qualidade de vida e colocam a prioridade das famílias em aspectos da sobrevivência imediata, não no longo prazo.
Faltam políticas de estado, imunes a mudanças político-partidárias. “Não vivemos o melhor cenário para o trabalho com conservação ambiental e a sociedade civil tem sido a grande promotora das atividades, por meio da organização de coletivos”, afirma Rovedder, para quem a ciência exerce igualmente importante contribuição na trajetória de reconstruir a natureza. “Temos conhecimento, fazemos a lição de casa, mas há um grande potencial ainda aberto de comunicação para a academia descer da cátedra, chegar às comunidades e estabelecer os vínculos necessários à restauração dos ecossistemas”.
Acesse também a reportagem sobre o primeiro webinário da série e acompanhe o próximo evento do canal da Página22 no Youtube, em 8 de novembro.