Startups levam soluções tecnológicas a pequenos agricultores para eliminar gargalos na cadeia de suprimentos da indústria
Por Magali Cabral
Quando uma latinha de guaraná é aberta para saciar a sede de alguém, significa que está próximo o fim da jornada de um produto que envolveu um sem-número de trabalhadores, localidades, insumos, equipamentos, transações, entre tantas coisas mais. Cadeias produtivas como a da indústria precisam garantir que nenhum desvio de percurso macule os princípios ESG (agenda corporativa de sustentabilidade baseada em critérios ambientais, sociais e de governança) associados ao produto.
Soluções para iluminar os principais pontos cegos dessas cadeias de suprimento estão sendo apresentadas por startups, como a Agtrace, que desenvolve plataformas customizadas de rastreabilidade, e a ManejeBem, que dá apoio tecnológico ao pequeno agricultor na estruturação sustentável de seu sistema produtivo por meio de um aplicativo. Juntas, a Agtrace e a ManejeBem ajudam a reduzir riscos, dando mais segurança aos negócios de grandes indústrias. Ambas as startups foram selecionadas, em diferentes anos, pela Aceleradora 100+, programa de aceleração de startups de impacto social e ambiental mantido pela Ambev e seus parceiros. A Agtrace foi selecionada na chamada deste ano e a ManejeBem, em 2019, para apresentar soluções inovadoras relacionadas ao setor agro da companhia.
Durante os anos em que trabalhou para grandes empresas de tecnologia, como a IBM, Andre Turkienicz, cofundador da Agtrace, entendeu os meandros das cadeias de produção agrícolas. As cadeias vão desde as fazendas, passando por cooperativas e distribuidoras, exportadoras, processadores de alimentos até o varejo. Chamava sua atenção a falta de eficiência causada pela desconexão entre os elos da cadeia do agro. “Há pouca interoperabilidade entre elas”, afirma.
A Agtrace testará a plataforma de rastreabilidade nos próximos meses, junto a 20 agricultores associados a duas cooperativas fornecedoras de guaraná de Maués, no Amazonas. Será utilizado o conceito de Produto Mínimo Viável (MVP, na sigla em inglês) antes de expandir o sistema para as 14 cooperativas que atuam na região. Turkienicz explica que, ao processar as informações sobre área plantada, produtividade, previsão de colheita e outras variáveis, o sistema ajudará a indústria a resolver a problemática de prever abastecimento e de garantir a qualidade e a segurança do seu produto. Uma vez capturados, os dados sobre a produção do guaraná passarão por um mecanismo de checagem antes de serem gravados em blockchain, um meio de armazenamento que garante a segurança e a auditabilidade da informação.
A plataforma da Agtrace oferece mais. “Estamos integrados com outros sistemas operacionais que possuem dados relevantes para fazer, por exemplo, uma checagem socioambiental das propriedades. Podemos saber se há registro de trabalho escravo ou de desmatamento ilegal. Para isso, basta a inscrição do Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou o número do CPF ou do CNPJ”, afirma Turkienicz.
O produtor rural que terá a sua atividade “escaneada” pela plataforma também se beneficiará do sistema. Turkienicz afirma que, além de o produto rastreado ser mais valorizado no mercado, a Agtrace está fazendo um levantamento sobre a possibilidade de levar certificação aos produtores que fazem cultivo orgânico de guaraná.
Outra vantagem do rastreamento para o proprietário rural é que, ao conhecer mais profundamente as dificuldades enfrentadas nas lavouras, a indústria pode contribuir com recomendações agronômicas mais assertivas. “Existe um time de técnicos com a Ambev levando informação às associações e aos produtores para que aumentem a produtividade e comecem a agregar valor à produção”, observa Turkienicz.
Melhorando o manejo
Parte desse time de técnicos agrícolas que atua junto aos fornecedores da Ambev é composta por uma equipe da ManejeBem. A diferença é que essa turma de técnicos não se desloca até o campo para resolver problemas ou para tirar dúvidas. Ela fica na outra ponta do aplicativo Maneje Chat, instalado nos smartphones dos produtores.
Ao todo, 1.006 produtores rurais, a maior parte composta por fornecedores da Ambev, recebem hoje assistência técnica por meio do aplicativo. Os técnicos agrícolas ficam disponíveis para atender as dúvidas dos agricultores todos os dias, a qualquer hora, sem custo nenhum para o produtor. Com isso, a indústria beneficia-se de uma série de indicadores de sustentabilidade disponíveis no app: manejo, qualidade de água, preservação de áreas, documentação, renda familiar, tecnologias aplicadas etc. “Quando fazem a assistência técnica de forma tradicional, as empresas não têm tanto controle dos resultados de suas ações”, afirma a bióloga Juliane Blainski, cofundadora da ManejeBem.
Blainski conheceu a também bióloga Juliana Mattana e a engenheira agrônoma Caroline Luiz em um curso de pós-graduação na Universidade Federal de Santa Catarina. “Tínhamos em comum o mesmo orientador, a mesma linha de pesquisa e um histórico acadêmico semelhante: a procura de métodos alternativos naturais para controle de doenças de plantas”, conta. Elas começaram a trabalhar juntas prestando consultoria a um grupo de cem agricultores orgânicos por WhatsApp.
Em 2016, contempladas em um edital da Social Good Brasil (SGB), organização da sociedade civil que incentiva propostas tecnológicas com impacto socioambiental positivo, veio a chance de lapidar as ideias e transformá-las em negócio. “Ficamos oito meses validando soluções, tentando entender de fato quem que seria a persona do nosso projeto, quais os seus problemas e se as soluções que estávamos idealizando faria sentido. Saímos dessa imersão com o CNPJ da nossa primeira empresa – a Fitocon consultoria”.
A nova consultoria permitiu a criação do site manejebem.com.br, que também era um repositório do grande volume de informação de qualidade acumulada durante troca de experiências com o grupo do WhatsApp. Rapidamente o site registrou mais de 1 milhão de usuários. Segundo Blainski, essa experiência lhes mostrou que a tecnologia é um meio que permite dar assistência técnica sem estar fisicamente próximo dos produtores. “Em 2018, submetemos ao Sinapse da Inovação, uma subvenção econômica do estado de Santa Catarina, a proposta do aplicativo. Conseguimos o recurso e montamos o app. No mesmo ano, apareceu a oportunidade de nos candidatarmos à seleção de negócios da Aceleradora 100+, da Ambev”, conta a bióloga.
Nos primeiros meses de 2019, a ManejeBem foi selecionado pela Aceleradora 100+ para “rodar” um MVP com produtores de mandioca do Maranhão. Mas ainda não havia um modelo de negócio associado ao aplicativo. Depois de ser um dos selecionados no Demoday – dia em que os pitches dos projetos são submetidos a uma banca avaliadora – abriram-se as portas para que as empreendedoras finalmente validassem o modelo de negócios, que está rodando até hoje: “o desenvolvimento de projetos para pequenos produtores rurais com o objetivo de estruturar cadeias produtivas para grandes empresas semelhantes à Ambev”. Em outras palavras, as empreendedoras hoje atendem pequenos produtores rurais com financiamento de grandes empresas atentas à sustentabilidade de suas cadeias produtivas.
O aplicativo permite entregar às empresas relatórios de impacto socioambiental, com detalhamentos. Por exemplo: 66% dos produtores rurais fornecedores da Ambev estão utilizando a plataforma semanalmente para receber assistência ou para o consumo de conteúdos; houve um aumento de 400% da capacidade do atendimento a produtores; observou-se um acréscimo nos níveis de sustentabilidade e qualidade agrícola em torno de 62% e uma melhoria de 50% nos parâmetros agronômicos.
“Vale lembrar que 50% é um valor bem alto, visto que boa parte dos usuários do app produz mandioca, uma cultura rústica. A mudança de mentalidade desses produtores para fazer o manejo adequado e tirar o melhor desempenho da planta é uma mudança cultural que estamos ajudando a realizar”, comemora Blainski.
Outra métrica de impacto social, segundo relata, é um indicador mostrando que para cada agricultor atendido outros sete são impactados positivamente em consequência da organização das informações da propriedade e da comunidade.
“A cada R$ 1 investido na solução proposta pela ManejeBem, R$ 5 retornam em benefício da comunidade. Esses benefícios extrapolam o nosso objetivo”, explica a bióloga. “Nas regiões trabalhadas, constatamos a melhoria de estradas rurais, o aumento do acesso a crédito, a renegociação de dívidas com bancos”. Como todas as informações coletadas têm evidências, os produtores, de posse delas, conseguem pleitear benfeitorias para as comunidades.
A ambição da ManejeBem é alcançar até 2023 pelo menos 10 mil usuários e, em 2024, chegar a 70 mil. O desafio no momento é trabalhar na gamificação do aplicativo para torná-lo mais atraente e estimular o produtor a consumir mais conteúdo. Outro objetivo é ajustar a metodologia para automatizar a parte de diagnóstico da produção. Hoje é o técnico quem conduz o produtor, via chat, a trazer as respostas aos questionários. “Estamos trabalhando nisso. Utilizamos inteligência artificial, mas não queremos uma metodologia muito robotizada, sem empatia na comunicação com o produtor. Vamos encontrar um caminho para ganhar escala sem perder a qualidade do atendimento personalizado”, afirma.
O sucesso dos empreendimentos da Agtrace e da ManejeBem coloca a Ambev mais perto de suas metas de sustentabilidade para o setor de agricultura. De acordo com Vitor Antunes Monteiro, gerente de sustentabilidade agro da Ambev para a América do Sul, a indústria pretende ter 100% dos seus agricultores treinados, conectados e empoderados financeiramente até 2025.
Segundo ele, a ManejeBem exerce um papel importante em relação ao treinamento ao levar conhecimento técnico ao campo e a Agtrace, ao abrir um canal de comunicação, via rastreabilidade, entre os agricultores e os demais elos da cadeia do agro. Em sua opinião, essas ações tecnológicas são como pontes que aproximam a empresa também de metas globais como as dos ODS, em particular a dos objetivos Fome Zero e Agricultura Sustentável, Redução das Desigualdades e Ação para a Mudança Climática.
Sobre a Aceleradora 100+
O programa Aceleradora 100+ surgiu em 2018, alinhado à iniciativa global da Ambev e aos seus compromissos de sustentabilidade para 2025 (mais informações: aceleradora.ambev.com.br). Desde então, foram mais de 60 startups aceleradas e R$ 15 milhões investidos em negócios parceiros. Em 2021, a Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e Quintessa se uniram a essa jornada e, agora, PepsiCo, Valgroup, Ball Corporation e Machado Meyer chegaram para integrar a quarta edição e ampliar a escalabilidade dos projetos apresentados.
As startups implementam as soluções de impacto por um período e mensuram os resultados gerados. A implementação pode ser de uma solução pronta, mas também é possível adaptar uma solução existente e até cocriar algo novo entre executivos e empreendedores. O foco do programa é garantir o êxito dessa implementação, corrigir a rota, se necessário, e orientar as duas partes a partir de boas práticas.
Destinado a negócios que estão ingressando no mercado, com clientes e vendas já realizadas, o programa está dividido em duas etapas, incluindo aulas teóricas sobre gestão de negócios; workshops realizados pelo Quintessa para desenvolvimento do piloto, implementação durante um processo de quatro meses; e apresentação no evento de encerramento, com premiação em dinheiro. Algumas startups se beneficiam pela contratação de serviços pela Ambev posteriormente, além disso, podem apresentar propostas de investimentos para a empresa e parceiros do programa.
A Ambev anunciou que toda a alta liderança tem remuneração variável atrelada às metas de ESG. São consideradas todas as iniciativas ligadas à economia sustentável, geração de valor para micro e pequenos empreendedores, projetos de impacto social, diversidade e inclusão, além de governança.
Leia aqui a primeira reportagem desta série.