Por Mônica C. Ribeiro
Vista como instrumento de financiamento da transformação social, a filantropia precisa cumprir esse processo com a maior transparência possível, segundo participantes do Congresso Gife. Também é necessário ter escuta ativa, promover a troca de aprendizado e abrir mão do protagonismo
Qual o potencial da filantropia e do investimento social para ajudar a reduzir desigualdades e ampliar o acesso a direitos no Brasil? Durante o 12º Congresso Gife, cujo tema foi Desafiando Estruturas de Desigualdades, essa foi uma das questões que circulou nas mesas e corredores, nas trocas, almoços e cafés ao longo dos três dias de evento.
Realizado entre os dias 12 e 14 de abril, o evento contou com a participação da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, que citou dados da pesquisa Periferias e Filantropia – as barreiras de acesso aos recursos no Brasil, realizada pela iniciativa Pipa em parceria com o Instituto Nu, durante plenária temática sobre investimento social e equidade racial: 80% das organizações da periferia são lideradas por pessoas negras, e destes, 50% trabalham com o orçamento de apenas R$ 5 mil ao ano.
“Se não tiver um combinado de políticas públicas eficazes e a garantia que sociedade civil abra as portas para organizações da periferia, o Brasil não consegue avançar nessas questões. Quanto mais conseguirmos compartilhar e garantir acessos, mais o País tem possibilidade de prosperar”, afirmou a ministra.
A pesquisa da Pipa foi citada várias vezes ao longo do Congresso. Com o objetivo de analisar a descentralização de recursos privados para viabilizar as ações e os projetos dos que estão na ponta, o levantamento levou em consideração mais de 600 respostas de iniciativas das cinco regiões do país.
Os projetos atuam com até 10 pessoas em sua organização, mas impactam a vida de muitas pessoas nas comunidades em que estão inseridos, muitas vezes em condições precarizadas e sem acesso a financiamento. Trata-se de uma rede gerida por mulheres negras e indígenas e a população LGBTQIAP+. Cerca de 21% das iniciativas atingem um público de 10 a 50 pessoas, enquanto 19% atendem de 250 a 1000 pessoas. Outros 17% atendem de 50 a 100 beneficiários.
A pesquisa aponta para uma rede estável e considerável de beneficiários que utilizam dessas iniciativas como exercício de promoção da cidadania, e que a amplitude das ações pode estar ligada às capacidades financeiras de cada iniciativa.
Um dos pontos destacados como dificultadores de acesso ao financiamento privado e filantrópico no país para esses grupos diz respeito à exigência de requisitos, no caso de portfólios e materiais que possam comprovar a existência desses projetos, que reforçam uma lógica excludente. E a necessidade de promover o acesso à rede de financiadores, construindo e reforçando uma rede de filantropia baseada na confiança.
Filantropia brasileira e grantmaking
A prática do grantmaking – repasse de recursos para organizações da sociedade civil fomentando propostas e soluções elaboradas e executadas por essas organizações – ainda não é predominante na filantropia brasileira, embora tenha registrado crescimento segundo o Censo Gife 2020.
Esse cenário registrou uma mudança significativa no período da pandemia de Covid-19, quando recursos expressivos foram doados para organizações que atuam nas bases como ação estratégica e efetiva para atuação em situação emergencial, considerando a capacidade de articulação e desenvolvimento de soluções dessas organizações nos territórios.
Rodrigo Pipponzi, do Instituto ACP, em que o grantmaking é prática predominante, destacou a importância do cuidado em entender o campo filantrópico na tomada de decisão: “Percebemos que a raiz do problema era entender a forma mais eficiente para transferência de recursos para gerar transformação. E também transferência de poder. Fomos aprendendo sobre valores que norteiam o grantmaking, como escuta ativa, troca de aprendizado, abrir mão do protagonismo. E esses princípios valem também para dentro, precisam estar na tomada de decisão.”
Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá de Equidade Racial, reforçou, em mesa sobre filantropia e equidade racial, a importância dos critérios e a responsabilidade das organizações filantrópicas quanto a essa questão:
“O doador exerce o poder. Nós, enquanto instituições filantrópicas. temos que ter responsabilidade porque, quando fazemos doações, e fazemos escolhas, interferimos no ecossistema e no ambiente no qual os movimentos sociais estão organizados. E precisamos respeitar isso. A escolha é inevitável, mas o que eu questiono aqui é a falta de transparência ou ausência de critérios. E aí fica um convite para as instituições que atuam na filantropia, para que se posicionem”.
Para ele, é preciso entender a filantropia como instrumento de financiamento da transformação social, mas que possa cumprir esse processo com a maior transparência possível.
A filantropia e o enfrentamento às desigualdades
A filantropia comunitária como um dos caminhos para o enfrentamento à desigualdade também foi tema de mesa de debate durante o Congresso.
Graciela Hopstein, diretora executiva da Rede Comuá – que reúne 16 fundos que trabalham com grantmaking voltado a direitos humanos – destacou que “a filantropia comunitária está ligada a um conjunto de práticas. É preciso entender o papel que ela ocupa nos processos de transformação. Ela não é protagonista, e sim acredita na potência das comunidades e chega para contribuir com processos já existentes nos territórios. É fundamental entender a desigualdade vinculada a acesso e garantia de direitos. Direitos são a chave para combater qualquer desigualdade.”
Vinicius Ahmar, gerente de estratégia para desenvolvimento sustentável do Instituto Arapyaú, destacou a iniciativa envolvendo o cacau no território da Bahia. “O Instituto passou a atuar de forma estruturada, a partir de diagnósticos participativos no território, entendendo vocações e o que precisava ser fomentado. Em um desses diagnósticos, escolhemos a atuação na cadeia do cacau, por entender que poderia desenvolver um pouco mais a região.”
Ahmar falou sobre a importância do uso estratégico dos recursos da filantropia para alavancar outros investimentos e a importância de ouvir o território e entender como é possível trabalhar junto em questões complexas. “A ação é fomentar um território que é capaz de pensar soluções por ele mesmo. Estamos ali muito mais como alavancadores do que alguém que é necessário para o desenvolvimento local.”
Carola Matarazzo, do Movimento Bem Maior, destacou como as soluções locais e a expertise das organizações dos territórios podem gerar soluções e modelos testados com potencial de se transformarem em políticas públicas: “O recurso filantrópico pode correr risco. O poder público, não.”
Para Cássio França, secretário geral do Gife, “o enfrentamento às desigualdades é um tema que não pode ser mais evitado. Isso vale para todos os setores da sociedade. A ideia de o investimento social privado pegar esse tema como central é uma responsabilidade cívica e moral para o País. Todos têm que falar sobre isso, é uma demanda social e do Brasil.”
Democracia e interseccionalidades de gênero, raça e clima
A mudança climática tem agravado ainda mais a situação dos grupos em vulnerabilidade socioambiental. Esses grupos são compostos predominantemente por mulheres, comunidades periféricas, negras e quilombolas, povos ancestrais e agricultores familiares. Esse foi também um dos pontos debatidos durante o Congresso.
“As mulheres estão sofrendo com a mudança climática. Quando foram desabrigadas e seguiram com crianças para abrigos, sofreram violência doméstica. As mudanças climáticas têm consequências diretas nas mulheres e nas crianças, e temos que estar com o olho aberto para que essa interseccionalidade exista. Não pensem só na conservação e preservação do meio ambiente. Em todos esses espaços existem seres humanos e não humanos, e nós temos que apoiar quem está nos protegendo, e nesse caso são muitos dos povos originários no mundo”, destacou Amália Fischer, coordenadora geral do Fundo Elas+ Doar para Transformar.
Fernanda Lopes, diretora de programa do Fundo Baobá para Equidade Racial, também destacou a importância dessa interseccionalidade: “A filantropia precisa ter responsabilidade com aqueles que vivenciam os efeitos do clima de forma vulnerável e desigual. Até o início dos anos 2000, tudo estava focado no impacto ambiental, físico. Hoje as pessoas passam a figurar num lugar que ainda é muito periférico. As injustiças climáticas alimentam e são alimentadas pelas injustiças sociais e raciais. Todos sofrem com o clima, mas tem gente que sofre muito mais.”
Vanessa Purper, gestora de programas do Fundo Casa Socioambiental, destacou a aliança GAGGA (Global Alliance for Green and Gender Action), que reúne o poder coletivo dos movimentos de gênero, clima e justiça ambiental em todo o mundo. Os integrantes da aliança fornecem doações e apoio para fortalecimento de capacidade para organizações e redes de direitos das mulheres e justiça ambiental de mais de 30 países na África, Ásia, Europa e América Latina. O Fundo Casa é parte da rede.
“O clima afeta a todos, mas é diferente quando alguém pode fugir de um lugar de helicóptero ou tem sua vida soterrada por um deslizamento. A gente não pode falar de justiça climática sem falar de raça e gênero. Quem sabe melhor a solução é quem está na base. É onde o recurso precisa chegar, onde a filantropia pode fazer mais”, disse Purper.
Diversidade como marca nacional
Ao longo dos três dias do Congresso, cerca de 1.200 pessoas participaram de plenárias e mesas temáticas que trouxeram temas crescentemente fundamentais para uma contribuição efetiva no combate às desigualdades no país.
A pluralidade de possibilidades que se desenha para que o investimento social participe de forma ativa e decolonial desse movimento permeou todos os debates, que passaram, além dos temas já citados aqui, por filantropia e políticas públicas, juventudes, bioeconomia e negócios de impacto, saúde mental, produção de informação e conhecimento, ESG e estratégias para promoção de equidades, desafios regulatórios do financiamento e da participação da sociedade civil, alcance e desafios da filantropia familiar na redução de desigualdades.
Os desafios são grandes e estão postos. A expectativa da organização do Congresso é que a filantropia e o investimento social se engajem em ações concretas para contribuir e ajudar a transformar a realidade social brasileira.
Para França, do Gife, o evento foi exitoso “não só porque os temas são candentes e fundamentais, mas porque as mesas foram compostas de uma forma brasileira, e porque o público é brasileiro. A gente não está falando somente entre um grupo de associados, estamos falando com pessoas que transitam em diversas áreas, que têm conhecimento de território. A diversidade deste País é uma marca que a gente nunca mais pode abandonar.”