[Turismo religioso]
Santuário de Aparecida planta florestas em áreas do entorno como segurança hídrica para o complexo turístico, em projetos que reforçam um novo ciclo econômico baseado em árvores nativas no Vale do Paraíba
Por Sérgio Adeodato, de Aparecida do Norte e Guaratinguetá
Fotos: Juan Pablo Ribeiro
Em relevo íngreme sob sol quente na Fazenda Santana, em Aparecida do Norte (SP), o trabalhador rural Douglas Pontes, enxada em punho, prepara a terra para novamente plantar árvores, após a destruição das primeiras mudas nativas pelo fogo originado nos vizinhos. A pressão urbana se soma aos riscos climáticos em área já bastante degradada pelos ciclos econômicos do café e do gado, ao longo da história, no Vale do Paraíba. “Fazemos a nossa parte, mas falta maior consciência no entorno”, diz ele, na esperança de sucesso com a restauração florestal que lhe dá o sustento e requer resiliência – e uma boa dose de teimosia – naquela paisagem para lá de desafiadora.
À frente do Santuário Nacional de Aparecida, dono da propriedade, o frenético vaivém de carros, ônibus e caminhões na Rodovia Presidente Dutra, à altura do Km 336, convive com o trabalho que devolve floresta e dá novas feições aos morros, em parceria com a SOS Mata Atlântica. Na Fazenda Santana, onde se localizam fontes hídricas que abastecem a megaestrutura de turismo religioso, o acesso a pé até as áreas de plantio das novas árvores expõe inimigos: a braquiária, o capim das antigas pastagens que domina o terreno e sufoca o crescimento das mudas; e as vorazes formigas que atacam as plantas que chegam dos viveiros e precisam ser combatidas.
“É uma conquista alcançada dia-pós-dia”, reforça Douglas, enquanto abre o “berço” no chão para colocar a muda, com os cuidados no roçado para a braquiária não vencer a guerra.
A rotina no campo é um indicativo de como a restauração da Mata Atlântica se faz a duras penas, e não por mágica, na busca pela mitigação da mudança climática, garantia de água, prevenção de desastres nas tempestades, qualidade de vida e volta da biodiversidade. Diante dos impactos já ocorridos, o bioma possui enorme possibilidade de restauração, também com potencial socioeconômico. O envolvimento de ONGs, poder público, proprietários rurais, financiadores, comunidades locais e pequenos negócios florestais faz a atividade acontecer na prática.
Por trás das árvores em crescimento em Aparecida, existe uma cadeia de serviços na qual Douglas é um dos principais elos. “Sem essa nova atividade, estaria tirando leite de vaca como muitos na região, com remuneração 50% menor”, conta ele, otimista diante da alta demanda pelo trabalho de recuperar floresta. “Antes o pessoal acostumado na roça tinha resistência e questionava por que tanta energia plantando mato e espinho, mas agora muitos reconhecem a importância”.
Disputa por mão-de-obra
O ofício de plantar mudas se torna mais valorizado, mas o sinal de alerta está ligado. “É uma mão de obra muito disputada na concorrência com a construção civil e outras atividades urbanas, porque as novas gerações não se interessam pelo trabalho duro no campo, com riscos de picadas de cobra e muitas vezes sem acesso à internet”, aponta Fausto Balduíno da Silva, à frente da Hummus, empresa florestal que realiza os plantios da SOS Mata Atlântica na região de Aparecida.
O negócio começou anos atrás com a demanda das áreas de eucalipto fornecido à produção papel e celulose, mas a decadência da atividade na região abriu a porta para outros usos da terra, principalmente a restauração com floresta nativa. “A nova galinha dos ovos de ouro”, reconhece o engenheiro agrônomo. Um estudo da Universidade de São Paulo indica que há potencial de gerar 2,5 milhões de empregos no desafio de reflorestar 12 milhões de hectares previstos no Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg). Isso significa um emprego, em média, a cada 2,3 hectares restaurados (área equivalente a cerca de dois campos de futebol).
Segundo Fausto, o salário de quem pega na enxada chega a R$ 3 mil e há necessidade de manter as equipes em casa nos períodos de seca, quando não há plantios, para o serviço não perder mão-de-obra. A questão influencia o custo da restauração, um desafio ao aumento da escala da atividade no bioma, junto a outros fatores que demandam soluções. Em Aparecida, diz Fausto, lugar onde a religião busca se conectar à natureza, o êxito de repor árvores exige “conhecimento técnico, experiência e muita fé”.
Mapeando a realidade local
Em 2016, a SOS Mata Atlântica e o Santuário de Aparecida firmaram parceria com o objetivo de promover a restauração florestal de 248 hectares em propriedades do Santuário, junto a ações de educação ambiental, sensibilização e engajamento. O diagnóstico que serviu de base ao trabalho levantou o potencial de sinergia com 93 iniciativas ambientais mapeadas nos municípios do Vale do Paraíba paulista. Na região há mais de 500 bacias de afluentes que contém várias nascentes, sob risco de impactos.
Entre as atividades econômicas por lá, destacam-se a agropecuária, a indústria automobilística e aeroespacial, a mineração de areia e o turismo religioso, com o suporte de uma rede de serviços urbanos. Nesse campo, além de Aparecida, há o Santuário de Frei Galvão (Guaratinguetá), a Fazenda Nova Gokula (Pindamonhangaba), o Mosteiro da Sagrada Face (Roseira) e o Santuário Pai das Misericórdias – Canção Nova (Cachoeira Paulista).
O atual cenário provém de uma longa história de pelo menos 13 mil anos, quando teve início o processo de interação entre o homem e a natureza no continente americano. Primeiro, os caçadores-coletores; depois, os agricultores itinerantes – e assim por diante, de maneira mais intensa, após a chegada dos colonizadores portugueses. “Incapazes de compreender intelectualmente a magnitude de sua descoberta, (…) tropeçaram em um meio continente movidos por cobiça e virtude, sem se deixarem levar por compaixão ou mesmo por curiosidade”, escreveu o brasilianista Warren Dean, na clássica obra “A Ferro e Fogo – a História e a Devastação da Mata Atlântica brasileira”. Após a busca do ouro, o gado, o açúcar e o café, vieram a industrialização e a expansão das cidades. O Vale do Paraíba foi um dos principais alvos da destruição.
Morros de Aparecida, novos tons de verde
A Fazenda Santana, recebida pelo Santuário de Aparecida como doação e arrendada para pecuária, vive hoje um novo ciclo. No local, agora sem o gado, foram plantadas até o momento 282 mil mudas nativas, que se somam às 187 mil de outra área próxima, a Fazenda São José, onde está o Morro do Cruzeiro, ponto de chegada do teleférico que transporta turistas com vista panorâmica da basílica. Não muito longe, no Vale do Paraíba, mudas também chegaram à Fazenda Sobradinho, pertencente ao Santuário, em Taubaté (SP) – área estratégica por abrigar nascentes da água mineral vendida no complexo turístico-religioso.
Os plantios na região foram realizados por meio do programa Florestas do Futuro, mantido pela SOS Mata Atlântica, desde 2004. O modelo reúne a sociedade civil organizada, iniciativa privada, proprietários de terras e poder público em projetos participativos de restauração florestal. Além das pessoas físicas, as empresas podem colaborar de duas maneiras: como participação voluntária ou compensação obrigatória no Estado de São Paulo via Termo de Compromisso de Recuperação Ambiental (TCRA).
O programa promove a aproximação entre propriedades rurais que precisam restaurar áreas para cumprir a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/12) e doadores. As mudas são direcionadas ao campo com base no mapeamento de áreas prioritárias para restauração no bioma. A ONG mobiliza viveiros e prestadores de serviço para o diagnóstico das áreas, plantio das mudas, manutenção e monitoramento, fomentando a cadeia da restauração e aumentando a escala dos plantios. Em Aparecida, foram no total 470 mil mudas, como apoio voluntário de doadores ou compensação obrigatória.
O papel da religiosidade
No local mais alto da Fazenda Santana, um mirante dá vista para a paisagem em restauração e para o rio Paraíba do Sul ao fundo do Santuário e seus 143 mil metros quadrados de área construída – ponto quase equidistante entre as duas maiores e mais ricas capitais brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. Ao lado de um shopping center, parte o trenzinho turístico rumo ao local, às margens do Paraíba do Sul, onde pescadores teriam encontrado a imagem da Virgem Maria que marcou o início da devoção, em 1717. No percurso, conhecido como Caminho do Rosário, foram plantadas mudas com apoio da SOS Mata Atlântica em ações de sensibilização do público quanto à relação entre floresta e qualidade da água do rio.
A restauração florestal em curso na região reforça princípios da Igreja Católica estabelecidos pelo Papa Francisco, em 2015, na encíclica Laudato Si, que alerta para o “cuidado da casa comum”. A carta de 184 páginas aborda a raiz humana da crise ecológica, destacando ideologias e tendências econômicas que causaram problemas ambientais, com uso irrefletido da tecnologia para manipular e controlar a natureza. Entre outros pontos, o documento propõe o conceito de “ecologia integral”, no qual os seres humanos são parte de um mundo mais amplo, o que exige “soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais”. A mensagem inclui a dimensão ética e espiritual no paradigma ambiental.
Em Aparecida, na grandiosa cúpula da basílica, um dos atrativos mais visitados, afrescos exibem animais, plantas e outros elementos dos biomas brasileiros, em nítida sintonia entre natureza e fé. O templo, junto à estrutura turística, recebeu 8,8 milhões de devotos em 2023 – um aumento de 10% em relação ao ano anterior, recuperando gradativamente a média de 12 milhões anuais registrada nos anos pré-pandemia.
Reflexo na questão social
Neste cartão-postal, vitrine para o tema ambiental, o esforço de repor árvores tem efeitos sociais. Na cidade de Aparecida, a Casa do Pequeno realiza trabalho assistencial voltado às famílias dos cerca de 2,5 mil colaboradores do complexo religioso – da creche a oficinas de formação profissional e atividades com idosos. “Sofremos muito com impactos ambientais, principalmente incêndios devido ao crescimento urbano no entorno”, afirma Ana Luísa Taschetto, gestora de comunicação e meio ambiente do Santuário, com planos de jogar mais luzes ao tema nas atividades junto aos romeiros e comunidades locais. Ela explica: “Investir na restauração de floresta é também uma contrapartida pela ampliação da nossa estrutura”.
Após a criação de uma agenda ambiental, foram promovidas iniciativas como o projeto SOS Paraíba, com monitoramento mensal da qualidade da água do rio. Convivência com a natureza, reciclagem de resíduos, bem-estar coletivo e plantio de hortas são os principais eixos. Entre as atividades, foram realizadas oficinas de capacitação de gestores, apresentações de vídeos em visitas ao Centro de Experimentos Florestais, mantido pela SOS Mata Atlântica em Itu (SP). “É muito importante reconectar as crianças e suas famílias com a Mata Atlântica de onde vivem”, diz Ana Luísa, ao lembrar que a restauração florestal representa ótima oportunidade para se falar de mudança climática, assunto ainda distante das preocupações locais.
A irmã Zuleide Savi Daros, diretora da Casa do Pequeno, é enfática: “Precisamos de maior aproximação da fé com a realidade das pessoas na cidade e entorno, onde é alta a pobreza e vulnerabilidade social”.
Plantar floresta, acrescenta ela, “contribui no processo de cultivar reflexões e sonhos; alegria e acolhimento”. No cenário socioambiental, os plantios de árvores em grande escala na vizinhança mobilizam esforço colaborativo como um “trabalho de formiguinha” que gera transformações positivas. Com o perdão do trocadilho, nisso sim, as indesejáveis formigas – tão temidas pelas mudas – são muito bem-vindas.
Frei Galvão, na mesma trilha
No município vizinho de Guaratinguetá (SP), separado de Aparecida do Norte por uma rua, no Vale do Paraíba, o casamento entre fé e restauração florestal ganha eco na nova estrutura voltada à devoção do Frei Galvão – frade franciscano brasileiro que se tornou o primeiro santo nascido no Brasil, canonizado pelo Papa Bento XVI em 2007. A placa na base da estátua do religioso, na entrada do terreno reservado para as obras, registra: “Com o plantio de 3 mil mudas de árvores da Mata Atlântica, no Parque Laudato Si, deu-se por concluída a primeira etapa da construção do novo santuário”.
Em parceria com a SOS Mata Atlântica, foi restaurado um trecho cedido pela prefeitura em Área de Preservação Permanente (APP) urbana, nas margens do riacho que banha o fundo de um vale sob risco do crescimento urbano. “O objetivo é possibilitar o uso para o lazer e atividades espirituais de contemplação da natureza”, afirma frei Leandro Costa Santos, responsável pelo setor de comunicação do Santuário. Ele reforça que a ecologia tem papel carismático entre os franciscanos, reforçado pela encíclica Laudato Si. Na abertura da carta papal, há uma citação do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, no qual o santo louva a Deus meditando sobre a bondade do sol, do vento, da terra, da água e de outras forças naturais.
“A natureza é como uma outra página do Evangelho onde a gente vê Deus”, diz frei Leandro. Não à toa, lembra, a restauração florestal foi a primeira providência ante qualquer coisa no novo complexo religioso, em terreno atrás do antigo santuário em funcionamento. “Isso demonstra o apelo explícito para o cuidado da natureza”, completa o religioso.
Aberto à população, o Parque Laudato Si deverá ocupar 20% da área total da nova estrutura de visitação, que será construída a um custo estimado em R$ 400 milhões. “Reflexões sobre a fé e a vida devem vir juntas de ações ecológicas”, enfatiza frei Leandro, próximo do local onde são distribuídas as famosas “pílulas de Frei Galvão”. São comestíveis, feitas de papel de arroz; contêm uma oração dedicada à Virgem Maria, e devem ser ingeridas ao longo de uma novena.
Para além da devoção, diz ele, é necessária mobilização social para abraçar a área e evitar os impactos da pressão urbana. Há ameaças, por exemplo, como a presença de cavalos da vizinhança que danificam as mudas em crescimento. Frei Leandro alerta: “Precisamos ter fé, mas também cuidados”.
“A natureza é como uma outra página do Evangelho onde a gente vê Deus”, diz frei Leandro. Não à toa, lembra, a restauração florestal foi a primeira providência ante qualquer coisa no novo complexo religioso, em terreno atrás do antigo santuário em funcionamento. “Isso demonstra o apelo explícito para o cuidado da natureza”, completa o religioso.
Aberto à população, o Parque Laudato Si deverá ocupar 20% da área total da nova estrutura de visitação, que será construída a um custo estimado em R$ 400 milhões. “Reflexões sobre a fé e a vida devem vir juntas de ações ecológicas”, enfatiza frei Leandro, próximo do local onde são distribuídas as famosas “pílulas de Frei Galvão”. São comestíveis, feitas de papel de arroz; contêm uma oração dedicada à Virgem Maria, e devem ser ingeridas ao longo de uma novena.
Para além da devoção, diz ele, é necessária mobilização social para abraçar a área e evitar os impactos da pressão urbana. Há ameaças, por exemplo, como a presença de cavalos da vizinhança que danificam as mudas em crescimento. Frei Leandro alerta: “Precisamos ter fé, mas também cuidados”.