A expectativa para o dia de hoje é imensa, pois haverá a primeira Marcha da ATL 2024, com o tema Emergência Indígena: nossos direitos não se negociam. Partimos em direção do Eixo Monumental e avistamos a multidão organizada. A massa compacta, multiétnica, colorida, com as delegações conformando a grande “Cobra do Tempo”, que tematiza o evento, se aproxima rapidamente
DIÁRIO DO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE
Terceiro dia: Terça-feira, 23 de abril de 2024.
Por Antônio Reis Júnior*, de Brasília
Acordamos com as imagens do documentário de Jorge Bodansky Amazônia, a Nova Minamata? exibido na tenda da Coiab, e o depoimento de Alessandra Korap Munduruku reverberando. E pensando que algo tão grave e impactante sobre os povos indígenas da região do Rio Tapajós ocorre no Pará, justamente o estado que sediará a COP 30 do clima em 2025. Oxalá, com os olhos do mundo voltados a Belém, haverá força política para conter o avanço do garimpo ilegal nas Terras Indígenas da região Norte, evitando o cenário distópico anunciado pelo filme.
Levantamos rapidamente para voltar ao acampamento, pois a expectativa para o dia de hoje é imensa, afinal, nesta terça-feira haverá a primeira Marcha da ATL 2024 que tem como tema #EmergênciaIndígena: nossos direitos não se negociam.
Partimos às nove da manhã em direção do Eixo Monumental e avistamos a multidão organizada se aproximando e atravessando, nesse momento, a Torre de TV de Brasília. A massa compacta, multiétnica, colorida, com as delegações conformando a grande “Cobra do Tempo”, que tematiza o evento, se aproximava rapidamente.
A Cobra, idealizada pelo artista Denilson Baniwa, com grafismos e símbolos de diferentes povos indígenas, e que percorreu longo percurso para chegar aqui nos últimos 20 anos de mobilização, está, nesse momento, diante de nós. Ela integrou a exposição Dja Guata Porã que, em guarani, significa “caminhar junto e/ou caminhar bem”. É o que fazem agora, no centro da capital do País. Vermelho urucum e preto jenipapo, são as cores e os tons representativos dessa luta. “Para chegar aqui, atravessei o mar de fogo” – lembrei de Lia de Itamaracá.
As delegações carregam suas faixas com as suas principais reivindicações, cantam, dançam e tocam seus maracás, instrumento tão presente na ATL e que, inclusive, substituem as palmas e as saudações aos convidados que circulam pelas plenárias.
Nós nos juntamos à marcha, procurando respeitar o espaço das delegações, e ficamos arrebatados com os cantos e a potência dessa mobilização que arrepia e emociona. O sol já queimava a pele às 10h no outono quente e seco de Brasília, mas isso não parecia incomodar alguém – embora fosse necessária a hidratação, pois percorreríamos quatro quilômetros até o Congresso Nacional, o destino da caminhada. “Segura o céu, que o chão vai tremer!”, anunciavam as lideranças.
As faixas das comissões de frente dos mais de 200 povos representados, revelam as pautas das delegações com variações do grande lema da ATL 2024, Nosso Marco é Ancestral: sempre estivemos aqui! “Exigimos a publicação da portaria da Terra Indígena (TI) Kanela-Memortumré. Ministro da Justiça, assina já!”; “Povos Timbira presente! Demarcação urgente! Abaixo a Lei nº 14.701! “Povos Indígenas do Maranhão, presentes!” “Lula: demarcação já! Somos povos do Cerrado! “Os indígenas do Rio Içá e Alto Solimões querem seus direitos respeitados! “Mineração, aqui Não!” E muitos cartazes da Funai “Terra Protegida”, que são normalmente afixados nas TIs para impedir acesso de indesejáveis aos territórios.
Caminhamos escoltados por um cinturão da Polícia Militar do DF e de agentes da Polícia Federal que nos separam do fluxo de carros que continua intenso nas faixas contíguas. Passamos sob um viaduto, apinhado de gente observando a marcha, no cruzamento dos dois maiores eixos do sistema viário da capital, o Monumental e o Rodoviário, de acordo com o princípio da organização de Brasília concebido por Lúcio Costa, e nos aproximamos da Esplanada dos Ministérios.
Permaneci a maior parte do tempo ao lado das mulheres Guajajaras do Maranhão, que cantavam lindamente, repetindo um coro infinito que logo acompanhávamos. Essas melodias permaneciam comigo durante muito tempo, ecoando.
Passamos pelo Palácio do Itamaraty e chegamos a um lugar próximo ao Congresso. Nesse momento, uma certa tensão e frustração: a barreira da Polícia Federal impediu que o carro de som da marcha seguisse até a frente do Parlamento. Contido, o carro fez uma conversão à esquerda e parou num gramado bem antes do destino, separado por grades.
Mesmo com uma Sessão Solene da ATL 20 anos marcada para as 11 horas no plenário da Câmara dos Deputados, e com a participação de representantes autorizados e credenciados pela Apib, a Marcha ali estacionou, gerando protestos amplificados pelo carro de som. Fiquei pensando se era consequência do novo protocolo de manifestações em Brasília depois da tentativa de golpe de Estado pelos “patriotas” em 8 de janeiro de 2023.
De qualquer maneira, ali ficamos e ouvimos falas contundentes de inúmeros representantes que reforçaram as pautas emergenciais da mobilização indígena, sobretudo o cumprimento da promessa de homologação de terras que já estão em processo adiantado de regularização.
Como eu havia feito o credenciamento na Apib para a cobertura colaborativa da ATL, quando me colocaram uma pulseira para permitir alguns acessos, segui ao Congresso Nacional para acompanhar de perto a Sessão Solene comemorativa de 20 anos do acampamento.
Entrar no Parlamento acompanhado de representantes indígenas acampados, é de uma emoção ímpar. Atravessamos o longo corredor que dá acesso ao espaço reservado ao público na galeria da Plenário da Câmara dos Deputados que guarda o nome icônico da nossa redemocratização nos anos de 1980: Ulysses Guimarães.
Enquanto isso, as lideranças lotavam as cadeiras do plenário com seus cocares e os maracás que vibravam e não se abaixavam a cada fala da ministra Sônia Guajajara, da deputada federal Célia Xakriabá, e da presidenta da Funai Joênia Wapichana, que presidiam a sessão. Os maracás são símbolo de resistência onipresente neste acampamento e tomaram a Câmara por completo, se sobrepondo a todos os sons.
A tensão presente entre as lideranças dos povos acampados com aquelas que integram o governo, é notável. Não podemos nos confundir com o governo, destacam alguns. De fato, a mobilização indígena é parte importante da sociedade civil organizada, ainda que existam quadros integrados ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Lideranças Kayapó, Yanomami e Munduruku relatam práticas reiteradas de violação de direitos humanos nas Tis associadas ao garimpo ilegal, atualmente mais mecanizado e capitalizado, e pior, controlado por facções criminosas, fortemente armadas e que ameaçam cotidianamente as aldeias, como relata Dario Kopenawa da Associação Hutukara, em Roraima, território Yanomami. A associação, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), publicou um relatório descrevendo a mudança de perfil dos invasores e a atuação do crime organizado, em alguns casos, como segurança privada nas áreas de garimpo.
No mesmo tom, o Cacique Juarez Saw Munduruku da TI Sawré Muybu no Pará, denuncia, como já descrevi nesse diário, as consequências do consumo de peixe contaminado por mercúrio, base da dieta Munduruku no Rio Tapajós. Atualmente, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) realiza um importante estudo para aferir índices de mercúrio no organismo dos Munduruku e verifica a suspeita de malformação de bebês e outros graves problemas que esse metal pesado acarreta.
Portanto, a desintrusão, que é uma das áreas de atuação do MPI, coordenada por Paulo Teixeira, ganha uma relevância ímpar, e deve ficar sob pressão das associações indígenas permanentemente.
Do lado do governo, particularmente da Funai, Joênia Wapichana reclama que faltam recursos e servidores ao órgão federal para estruturar e expandir as Coordenações Regionais que poderiam dar mais capilaridade para as ações nos territórios.
Já Sônia Guajajara, destacando que a ATL é a maior mobilização indígena no Brasil e no mundo, tem um papel fundamental e deve ter o governo como parceiro. A ministra, que durante essa semana circula pelo acampamento confraternizando com lideranças e fazendo articulação política, lembrou que já existem dez territórios homologados pelo presidente Lula, embora reconheça que ainda é pouco diante da enorme demanda por demarcação em todas as regiões do país.
Finalizada a sessão, conversamos brevemente com quadros do mandato da deputada federal Célia Xakriabá do Psol e saímos do Congresso. Caminhamos de volta ao acampamento pelo Eixo Monumental observando grupos dispersos após a marcha.
No período da tarde, a programação seguia na Funarte com debates na Plenária sobre a Lei do Marco Temporal, uma manifestação do povo Avá Guarani e a continuidade da discussão das Mulheres Bioma na construção da agenda para a COP 30 em Belém.
No fim da tarde, saímos do acampamento, agora com um único local de entrada e saída, certamente por questões de segurança, e caminhamos de volta a zona hoteleira com cansaço nas pernas, resultado das caminhadas que, em nosso cálculo, somariam em torno de 15 quilômetros pelo centro da capital. Um cansaço gratificante! Escrevo no meu caderno de campo cenas e informações vitais para esse diário, faço a seleção de fotografias para integrá-lo, e vamos dormir para mais um dia da ATL 2024.
*Antônio Reis Júnior é historiador, professor universitário, autor de livros didáticos e colaborador da Página22
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