Por Fernanda Rennó*
Os indígenas, que construíram no mundo os primeiros jardins, em uma relação harmônica com a natureza, hoje expõem suas obras em um dos principais jardins do mundo. São obras que alertam para a necessidade de se recriar um equilíbrio entre pessoas e ambiente
Estou indo, onde vou chegar não sei, mas meu destino é a Bienal de Veneza. O objetivo do destino pode embaçar a visão do caminho (a velocidade do trem também), somos instintivamente convidados a olhar para o futuro (frente) ou para o passado (trás) para não enjoar com a velocidade que a visão da janela lateral (presente) nos oferece.
Pensei em como me preparar para essa viagem, e resolvi não me preparar. Resolvi viver o caminho e o destino. As próximas linhas trazem um relato sensível de tudo que me atravessa enquanto percorro um território que não é meu, mas no qual estou construindo uma paisagem. Uma paisagem na qual sou estrangeira, assim como todos os 331 artistas da 60a edição da Bienal de Veneza, realizada no início deste ano.
Instigada pelas provocações do curador brasileiro, Adriano Pedrosa, que trouxe para a Bienal de Veneza uma proposta que “enfatiza diversidade cultural e de gênero destacando histórias e artistas menos conhecidos e defendendo a ideia de que trazê-los é uma atitude contemporânea”, fui visitar pela primeira vez a Bienal de Veneza.
Ao chegar nos jardins públicos de Veneza, deparei-me com a fachada monumental do pavilhão central, invadida por cores e personagens da cultura Huni Kuin, do Acre. Um enorme mural executado pelo coletivo Mahku com no centro, a figura de um jacaré, que para eles significa uma ponte entre o passado e o presente. Tempos que ali estavam para além dos próprios pavilhões, mas em todo o espaço dos jardins que remontam a 1807, quando Napoleão Bonaparte estabeleceu que a cidade de Veneza deveria ter uma área verde.
Jardins são significativos testemunhos da arte, da história e da cultura da humanidade desde as antigas civilizações. Considerados o mito fundador da civilização ocidental, influenciam o imaginário. Pensei que nenhum lugar poderia ter sido melhor do que um jardim para acolher uma bienal de arte.
Voltando ao painel do pavilhão principal, em qualquer lugar que essa obra de arte estivesse ela chamaria sem dúvida a atenção de observadores mais ou menos atentos. Mas, ali, ela não só sugava os olhares como se integrava completamente ao restante do cenário. O corredor do jardim parecia ter sido projetado para levar a ela. A vibração das cores aumentava o contraste das plantas que recebiam essa florescência de ideias, mitos, cultura e arte. Essa sensação de integração, de fazer parte, de não ser protagonista, mas de estar junto, me permeou durante toda a visita.
Planejados para demonstração de poder, como teatros para celebração dos sentidos ou ainda como retiros para elevação espiritual, os jardins materializam, dentro de um determinado perímetro a imagem de uma natureza profícua e generosa, recriando assim, sob o controle do homem, um espaço mítico em que plantas, animais, rios e fontes estariam em perfeita harmonia com desígnios divinos de bem-estar.
Encontrar neste espaço obras de arte indígenas contemporâneas é metalinguagem pura, é como um romance que fala sobre literatura, um filme cuja temática é o cinema, um poema que fala de poesia. Os indígenas, que construíram no mundo os primeiros jardins, em uma relação harmônica com o meio ambiente, hoje expõem suas obras em um dos principais jardins do mundo. São obras que alertam para a necessidade de se recriar um equilíbrio entre pessoas e ambiente, num espaço “artealizado”, um espaço onde ocorre um processo de imitação da arte na construção da paisagem. Sem dúvida, o cenário da bienal potencializa a mensagem das obras expostas e a riqueza da narrativa por trás delas.
Nas primeiras experiências brasileiras de criação de jardins, ainda no período colonial, existia uma tentativa de imitação de jardins e paisagens europeus, já representados artisticamente em quadros, elucidando o quanto cultural é a paisagem, uma vez que quem naquele momento a estava transformando (os colonizadores) o fazia a partir de suas experiências de vida, de seus filtros, do conhecido e vivido, ou seja da cultura. Hoje, me encontrava em um jardim europeu, parecia que eu estava dentro de um dos quadros da sala da casa de minha avó, mas, desta vez, não era a cultura europeia a ser representada, mas as dos indígenas, que ali estavam para relembrar que uma harmonia é possível, hoje, amanhã e ontem.
Durante toda a visita fui sendo levada pela intuição, pela sombra (estava um dia muito quente) e pela vontade de enxergar o inesperado. O inesperado, o não estereotipado, tudo isso estava presente nessa edição da mostra.
O próprio pavilhão do Brasil, renomeado com a palavra Hãhãwpuá, de origem Pataxó para se referir ao Brasil, antes de 1527 (quando o Brasil passa a se chamar Brasil), trazia uma referência não ao território que foi invadido, e sim àquele onde habitam povos que, como nos lembra Gersem Baniwa, nunca se submeteram à colonização, mas resistem até hoje com suas tradições e culturas.
Com obras indígenas espalhadas pelos jardins venezianos, a Amazônia invade muito rapidamente nosso imaginário. E claro, ela ali estava, com uma fina e cuidadosa curadoria de Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana, com as imagens de Claudia Andujar, com a artista amazonense Manauara Clandestina, com Joseca Mokahesi Yanomami e André Yanomami, mas, o Brasil estava também nas obras de Anna Maria Maiolino, Dalton Paula e Rubem Valentim. E, os indígenas de fora da Amazonia também estavam ali, como Arissana Pataxó, Glicéria Tupinambá e Ziel Karapotó. Uma mistura de Brasis, uma mistura de lugares, olhares e culturas que aproximam todo esse país gigantesco física e culturalmente.
A arte aproxima. A proximidade dos pavilhões, a possibilidade de passar de um país ao outro com apenas alguns passos deixam a sensação de conexão, de aproximação, de respeito. Ser levada a pensar pela arte, que as diferentes pessoas são mais próximas do que imaginamos, me deixou com uma sensação calma de pertencimento num mundo onde somos todos estrangeiros, num país onde sou literalmente estrangeira.
Sobre essa faceta e facilidade da arte de aproximar, duas obras me chamaram a atenção. Estavam expostas lado a lado, ambas de mulheres (a quantidade de mulheres também chamou minha atenção: somos ainda mais estrangeiras que os homens). Foram os quadros de Samia Halaby, de Jerusalém, e de Fanny Sanín, de Bogotá.
Dois mundos diversos que hoje vivem num mesmo espaço, Nova Iorque, e que em seus trabalhos, ambos realizados no mesmo tempo, 1969 existe, ao menos para mim, uma proximidade enorme na sensação provocada em uma leiga, eu. Lembrando que uma artista é da Panamazonia, essas duas imagens me ajudaram mais uma fez a quebrar estereotipos e a atualizar meu imaginário sobre tudo o que são as Amazônias.
Saí da bienal pensando que essas diferentes visões e percepções que a cultura consegue tão bem evidenciar, são chave para colocar a Amazônia no centro do Brasil, no centro do universo mental brasileiro. E, se a Amazônia tira e coloca o Brasil do cenário mundial (Izabella Teixeira), é preciso que ela faça parte da identidade brasileira, com toda a sua diversidade territorial e sociocultural. É preciso enxergar as Amazônias no plural, o que só é possível com um alto rigor científico e técnico e muita sensibilidade para identificar especificidades e absorver todas as sutilezas das Amazônias.
Precisamos inserir nossas discussões, propostas e ações de futuro num cenário maior que possibilite troca, aprendizado e respeito, como a bienal foi inserida num jardim que possibilitou a aproximação de mundos, a aproximação do mundo.
A cultura é a forma pela qual organizamos e damos sentido às nossas ações individuais ou em comunidade. É a partir da cultura que modificamos o espaço e construímos os territórios (e os jardins). Assim, os modos de fazer, de produzir, de nos relacionarmos, de nos expressarmos e de representarmos o mundo, no cotidiano, na arte ou em rituais, são manifestações da cultura.
Não existe relação humana que não seja mediada por elementos culturais. Até mesmo as tomadas de decisão políticas são baseadas em perspectivas culturais. Os territórios e a cultura que os organizam são inseparáveis. Nesse sentido, quando buscamos agir nos territórios, devemos nos esforçar para considerar as culturas ali existentes, pois é a partir delas que encontraremos os sentidos e usos por e para diferentes grupos humanos.
(Re)Conhecer os aspectos de práticas culturais é um caminho indissociável da sustentabilidade, e para isso, a arte é uma potência!
[Este artigo se conecta a “Fertilizando ciência e arte”, da mesma autora.]
*Fernanda Rennó é Doutora em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem, pela Université de Toulouse/UFMG. Atualmente é membro do Núcleo de Governança da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia onde é também responsável pelas frentes de Cultura e Bioeconomia