A série “Veredas da Democracia”, concluída neste artigo, mostra que o regime democrático não segue um único trilho: emerge na interação entre voz e visibilidade de grupos marginalizados, resiste a pressões econômicas concentradoras, e renova-se pela ampliação de acesso que a digitalização é capaz de promover
Por Mariana Galvão Lyra*
Na coluna do mês passado, discorri sobre iniciativas macro, com escala, que estão mapeando questões ligadas à participação pública. Como parte do meu período na Itália, visitei algumas iniciativas e conversei com acadêmicos que estão, numa escala mais micro, analisando a democracia por diferentes prismas. Primeiro, partimos para a Toscana. Além das belas paisagens, eu estava em busca de algumas visitas e reuniões para entender melhor como pesquisadores estão entendendo grupos marginalizados e questões de democracia.
Meu primeiro compromisso foi na Scuola Normale Superiore em Firenze. O Cosmos, sigla para centro de estudos em movimentos sociais, convidou Aidan McGarry, professor da Loughborough University London, para uma fala sobre representação política, protesto, democracia e grupos marginalizados.
Sua fala centralizou temas como autonomia, voz, e visibilidade. Ele acredita que a voz política tem o poder de reimaginar o relacionamento entre representação e democracia. Existe uma tensão entre voz e visibilidade que pode servir como uma ferramenta poderosa de comunicação para reanimar valores centrais da democracia, como o exercício da autonomia, a transformação de estruturas existentes, e a ruptura do status quo.
Pesquisando o povo Roma na Europa e comunidades LGBTQIAP+ na Índia, professor McGarry evidenciou como esses grupos usam o protesto não só como forma de representação, mas também para dar visibilidade à sua forma de ver o mundo e, assim, questionar ideias e práticas dominantes na sociedade. Roma é um grupo étnico historicamente marginalizado na Europa, conhecido por sua diversidade cultural e por enfrentar séculos de exclusão e preconceito, e pejorativamente chamado de cigano.
Recalibrando a democracia
De maneira muito diferente, mas também com o foco em transformar a democracia, o projeto de pesquisa Rebalance Democracy & Capitalism, liderado por Elisa Giuliani na Universidade de Pisa, está colhendo frutos e finalizando em 2025.
Chama atenção um projeto dentro de uma escola de negócios discutindo a fundo como a democracia é ameaçada pelo capitalismo. Um dos seus objetivos é identificar quais empresas são as principais violadoras de direitos humanos e como isso pode estar vinculado à capacidade das empresas em resistir ou aceitar o controle regulatório existente em diferentes países. Essas violações não apenas afetam vidas e meios de subsistência, mas também podem abalar a participação política — um pilar fundamental da democracia.
Um dos estudos de caso do projeto vem do sul da Itália. A Usina ILVA em Taranto existe desde os anos 1960 e, embora tenha trazido empregos para a região, também expôs a população a décadas de poluentes tóxicos, incluindo substâncias cancerígenas. Em 2012, autoridades judiciais ordenaram o fechamento da usina diante de provas contundentes de danos ambientais e à saúde. A partir daí, a comunidade local começou a compreender a real dimensão da crise. Em 2022, a ONU classificou Taranto como uma “zona de sacrifício”, ou seja, áreas altamente contaminadas onde grupos vulneráveis suportam os piores impactos sociais e ambientais.
O que os pesquisadores do projeto Rebalance fizeram foi analisar dados eleitorais e de poluição e entrevistar moradores. Descobriram que os bairros mais expostos à poluição apresentaram maiores taxas de abstenção eleitoral. Muitos cidadãos também romperam com partidos tradicionais, apoiando o Movimento 5 Estrelas (ideologicamente orientado à direita), que prometia fechar a usina e resolver os problemas ambientais. No entanto, com o tempo, o partido falhou em cumprir suas promessas, gerando nova frustração e aprofundando a desconfiança nas instituições.
Democracia nas alturas
Da Toscana parti de volta para o norte, visitando o Centro de Estudos Históricos da Universidade de Torino. De lá, a professora Marta Gravela lidera o DemAlps, um estudo sobre comunidades alpinas e seus ideais políticos entre 1300-1500.
Durante os séculos XIV e XV, comunidades de montanha nos Alpes Ocidentais, regiões que hoje pertencem à França, Itália e Suíça, vivenciaram um intenso período de efervescência política. Longe dos centros de poder monárquico e feudal, essas populações desenvolveram formas originais de autogoverno, ancoradas em valores coletivos e práticas participativas.
As comunidades alpinas não apenas administravam seus próprios assuntos: elas o faziam baseadas em ideais de autonomia local, governo coletivo e soberania popular. Reunidas para tomar decisões sobre o uso de recursos naturais, como pastagens e água, essas sociedades desenvolveram noções de liberdade política e justiça social moldadas pelas necessidades do cotidiano. Esses debates não eram apenas pragmáticos: expressavam valores como igualdade, bem comum e solidariedade local.
Reivindicavam a isenção de tributos feudais, defendiam o direito à autonomia frente a autoridades externas e valorizavam o consenso como base do poder político. Embora longe de uma democracia moderna, a participação política era relativamente ampla para os padrões da época. Chefes de família e proprietários locais, em geral homens, tinham direito à voz e voto nas assembleias comunitárias (espaços de deliberação coletiva).
As práticas políticas dessas comunidades eram profundamente documentadas. Cada deliberação, pacto ou estatuto era redigido por notários comunitários, muitas vezes em latim ou nos vernáculos locais. Os documentos eram guardados em arquivos locais, como igrejas, torres comunais ou mosteiros. Esses, séculos depois, se tornaram parte de arquivos regionais e nacionais.
É aí que entra a inovação do DemAlps: um projeto digital desde a origem, que reúne fontes dispersas em um só lugar. Usando ferramentas digitais como inteligência artificial (IA), por exemplo, o projeto constrói uma plataforma online para coletar, analisar e compartilhar dados com pesquisadores do mundo todo, iluminando formas pouco conhecidas de fazer política na Idade Média.
Caminhos e tensões atravessando a experiência democrática
A democracia deve ser vista como uma prática viva, que acontece em múltiplas escalas, mas é construída no chão, em encontros presenciais a e na vida cotidiana. Dessa forma, estudos em pequenas comunidades ou grupos específicos, trazem à tona nuances muitas vezes invisibilizados pelas análises feitas em dimensões macro.
A questão da voz e visibilidade como alavancas de mudança é crucial nas discussões sobre democracia. Isso porque os grupos marginalizados não só reivindicam representatividade, mas querem tornar pública sua visão de mundo de modo a questionar e influenciar narrativas dominantes. Como consequência, almejam a transformação da sociedade e a criação de espaços institucionais que escutem suas vozes.
Por outro lado, no âmbito corporativo, podemos ver como a concentração de poder econômico pode ter consequências indiretas na corrosão de participação política. O capitalismo projeta uma tensão na democracia que, no fim, tem efeitos de frustração e descrença nas instituições por parte da sociedade.
Já os estudos históricos nos trazem a importância da transparência e instrumentos de memória para que a democracia possa perdurar. Além disso, curadoria, agregação e compartilhamento digital de parte da história da democracia ampliam o alcance do debate – não só acadêmico como também cívico. O acesso a documentos fortalece a memória coletiva e torna mais “viva”.
Caminhos para o futuro da democracia
Este é meu último texto da série Veredas da Democracia. Termino de escrevê-lo já de volta em casa, observando a primavera chegando com força aqui na Finlândia.
Durante o tempo em que mergulhei nos caminhos e possibilidades da democracia, questionei como resgatar a democracia, expliquei um pouco dos efeitos que isso tem na sustentabilidade, entendi um pouco mais como a participação pública acontece na Europa, mapeei iniciativas que estão avançando discussões de inclusão, participação e seus desafios de forma sistêmica e em escala, e visitei algumas iniciativas locais no interior da Itália.
A Itália não é o berço da democracia, mas sua história influenciou e influencia fortemente o pensamento político. Foi lá que nasceram princípios como o veto, a divisão de poderes e a representação política por meio de senadores, por exemplo.
Voltar à Itália para tentar desvendar um pouco do que o futuro da democracia promete foi uma aventura instigante, cansativa, e muito produtiva. Acredito fortemente que para reinventar (ou melhorar) a democracia, temos um longo caminho a percorrer. Esse caminho passa pela ampliação de canais participativos que acolham demandas de grupos tradicionalmente excluídos, incluindo protestos e espaços deliberativos formais no repertório democrático.
Depois dessa curva, existe também um trecho da estrada que demanda a integração de cuidados e responsabilidades ambientais nas instituições políticas, reconhecendo que a justiça ambiental é parte da justiça democrática. Uma implicação desse trajeto é restringir o poder excessivo de empresas transgressoras de forma efetiva, assegurando a transparência das decisões que afetam comunidades.
Complementando aquela via, está a autonomia local. A autonomia está presente no incentivo de formas descentralizadas de deliberação inspiradas em experiências históricas e contemporâneas, incluindo conselhos municipais ou regionais fortes, iniciativas de orçamento participativo, assembleias deliberativas (cidadãs, paroquiais etc.). Essas práticas, junto com soluções baseadas no consenso para disputas comunitárias, podem fortalecer a soberania popular direta e reconstruir a confiança na política.
Assim, digo que a participação inclusiva, o engajamento ecológico e a governança de base respondem aos desafios de exclusão social, crise climática e concentração econômica. Ao combiná-las, a democracia pode reinventar-se, tornando-se mais aberta, resiliente e sensível às necessidades das comunidades.
O mergulho em casos, banco de dados, entrevistas com acadêmicos e especialistas me ensinou e reforçou que a democracia não segue um único trilho: ela emerge na interação entre voz e visibilidade, resiste a pressões econômicas concentradoras, e renova-se pela ampliação de acesso que a digitalização pode promover.
Cada vereda enriquece nossa compreensão de que participar, deliberar e registrar são atos políticos interligados, imprescindíveis para qualquer sociedade que aspire a ser verdadeiramente democrática.
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*Mariana Galvão Lyra, colunista da Página22, é pesquisadora da Escola de Negócios da LUT University, Finlândia
Referências
McGarry, A. (2024). Political Voice: Protest, Democracy, and Marginalised Groups. Oxford University Press.
Projeto Rebalance (em inglês) https://rebalanceproject.org/companies-that-engage-in-harmful-practices-found-to-threaten-democracy/
Projeto DemAlps (em inglês) https://www.demalps.com/