O cenário da inovação e empreendedorismo se descola dos grandes centros e se aproxima da base produtiva na floresta, engajando talentos ribeirinhos e indígenas rumo a uma nova economia da Amazônia
O rio Amazonas é o mais caudaloso do mundo, com vazão média de 210 milhões de litros e 31 toneladas de sedimentos a cada segundo até a foz, no Oceano Atlântico. O volume equivale ao consumo hídrico da cidade de São Paulo em três dias, mas – ao longo de seus 6,9 mil Km na maior floresta tropical do planeta – esse gigante não carrega somente água e nutrientes. Fonte de diversidade e resiliência, mobiliza vidas, expectativas e o fluxo de uma economia carimbada pelo conhecimento.
Carhuasanta, Lloqueta, Apurímac, Ene, Tambo, Ucayali, Solimões e Amazonas. Os vários nomes que recebe desde a nascente na Cordilheira dos Andes, no Peru, dão bem a dimensão desse colosso. Um retrato das várias Amazônias – a florestal, a rural, a urbana, a profunda e a desmatada – onde fluem diferentes culturas. Inovações, criatividade, ciência, empreendedorismo, talentos. E realidades multifacetadas, desafiadoras e complexas, em tempos de mudanças climáticas do planeta.
A Amazônia não é um vazio geográfico inóspito e desabitado. Grandes populações, em estruturas sociais complexas, já ocupavam as margens do rio Amazonas há 11 mil anos com práticas de agricultura sustentável. Não à toa o nome do manancial vem de “guerreiras” na mitologia grega, atribuído depois que uma expedição de Francisco de Orellana do século XVI foi atacada por uma tribo de mulheres.
De Benjamin Constant (AM), na tríplice fronteira com Peru e Colômbia, até o município de Itacoatiara (AM), ao Leste, percorremos o curso do Amazonas no território do estado que – muito orgulhosamente – tem o nome do rio. E descobrimos um cenário de vida pulsante em cidades e comunidades conectadas a um momento da história em que os holofotes do mundo estão centrados na Amazônia. Os desafios ambientais, sociais e econômicos se descortinam no contexto da importância das florestas na COP 30 do Clima em Belém.
Os poderes da bioeconomia
A Amazônia ocupa 60% do território brasileiro, mas representa somente 8% do Produto Interno Bruto (PIB), além de apresentar indicadores socioambientais abaixo da média nacional. São cerca de 20% da população na linha de pobreza, segundo o IBGE. No contexto climático, embora a floresta seja um sumidouro de carbono da atmosfera, a região corresponde a 49% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil, o que se deve, principalmente, ao desmatamento. Uma das estratégias para redução está no fomento de uma economia baseada no uso sustentável da biodiversidade como forma de gerar renda e promover qualidade de vida, com valorização da floresta em pé.

Relatório liderado pelo WRI Brasil revela que a bioeconomia já gera um PIB de R$ 12 bilhões na Amazônia. Com investimentos adicionais, será possível atingir pelo menos R$ 38,6 bilhões em 2050, gerando 833 mil novos empregos, que substituiriam ocupações hoje ligadas à destruição da floresta. O cenário de potencialidades, na expectativa de um significativo aumento do fluxo de finanças verdes na região, tem o rio Amazonas como um dos principais fios condutores – seja pela logística do transporte em suas águas ou pelo dinamismo dos municípios às suas margens.
De ponta a ponta no fluir da correnteza, constatamos a diversidade de cores e vidas por trás dos números da bioeconomia – a começar pela região fronteiriça onde o rio tem o nome de Solimões. De acordo com Pedro Mariosa, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em Benjamin Constant (AM), “estar em um território multicultural de três países diferentes, com muitas etnias e visões de mundo, nos permite sair do óbvio e do convencional frente às novas problemáticas que surgem com a mudança climática”.
A capacidade de adaptação e soluções é diferenciada neste território que enfrenta o desafio de oferecer atividades econômicas sustentáveis capazes de competir com o desmatamento e o garimpo, em cenário de expansão do crime organizado. “O momento é de coleta dos primeiros resultados de políticas públicas voltadas ao empreendedorismo e inovação”, afirma Mariosa, também diretor-executivo da Incubadora de Negócios de Impacto Socioambiental do Alto Solimões (Inpactas), sediada na Ufam, em Benjamin Constant, na fronteira amazônica com Peru e Colômbia.

Lá vicejam boas ideias propostas por talentos que são capacitados e estimulados a transformá-las em negócio com impacto positivo e oportunidades no território. “Ao contrário do que se imagina”, diz o professor, “a Amazônia tem capital intelectual suficiente para a produção de conhecimento capaz de gerar avanços no uso sustentável da floresta”.
Startups se espalham na Amazônia
Segundo dados da rede Rhisa, a Amazônia Legal abriga 651 programas de pós-graduação em instituições de ciência e tecnologia, além de pelo menos 872 startups que já captaram capital-semente para decolar. Do total, 154 se localizam no Amazonas – muitas em municípios do interior, longe das capitais, como as incubadas na Inpactas, em Benjamin Constant. “Os números evidenciam a presença de ecossistemas de inovação em cidades intermediárias, reforçando a descentralização do empreendedorismo tecnológico na região”, analisa Mariosa.
Juliana Teles, cofundadora do Impact Hub Manaus, ressalta: “soluções para a Amazônia passam por transformações no nível municipal, com a visão plural de que cada lugar tem a sua especificidade”. Sem colocar a lupa no território, adverte, será difícil virar a chave para uma nova economia. O movimento exige ações diversas e diferentes modelos de investimento, porque “a busca por escala na região não é fazer grande, mas ter vários fazendo certo”.
Em Tefé (AM), no médio-Solimões, ações do programa EcoAm apoiadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Instituto Meraki buscam impulsionar negócios socioambientais. “É necessário envolver pessoas locais não somente em consultas, mas na corresponsabilidade da tomada de decisão”, diz Marcus Bessa, também cofundador do Impact Hub Manaus. A região tem longo histórico científico pela presença do Instituto Mamirauá, referência em trabalhos que unem academia e conhecimento tradicional de indígenas e ribeirinhos, como o modelo de manejo do pirarucu que salvou a espécie da extinção. Em parceria com comunidades, inovações viram negócios e chegam ao mercado por meio de mentorias, capacitações e apoio ao empreendedorismo.

“O desafio é levar a agenda da bioeconomia atrelada a demandas locais, gerando renda para além do trabalho no serviço público ou atividades ilegais”, aponta Bessa. Teles concorda: “os municípios precisam de maior ambição para trabalhar com uma lente econômica e não assistencialista”.
“O Brasil precisa estar disposto a entender a justiça climática”
“O empreendedorismo e a ciência, em escala robusta, são indispensáveis para construir uma economia que preste para a Amazônia; o atual caminho não é adequado nem grande o suficiente para criar as bases à conservação e prosperidade”, enfatiza Denis Minev, CEO do Grupo Bemol e enviado especial para setor privado da Amazônia na COP 30. Ele pergunta: “Como criar um outro paradigma de forma que, em uma cidade como Tefé, a vida seja tão boa quanto em Ariquemes, celeiro do agronegócio em Rondônia – mas sem precisarmos da soja?”.
Na visão do empresário, incomoda ver o imaginário da bioeconomia mostrada na TV com jovens ribeirinhos subindo em árvores para colher açaí, sem condições dignas e seguras de trabalho. “É pitoresco, mas não uma solução de prosperidade”, adverte Minev, para quem o extrativismo é só uma pequena parte da história, à qual é necessário incorporar tecnologia de ponta, com produtividade e geração de renda. E assim um dia, no futuro, alcançar relevância no Produto Interno Bruto (PIB).
“Empreender na Amazônia é mais caro e demorado, e o País não tem os arcabouços para isso funcionar na escala necessária”, acrescenta Minev, investidor de quatro startups de agroflorestas. “Há grande potencial, mas também alta complexidade, diante dos diversos modelos possíveis de plantios e da falta de estudos e de financiamento público como na soja e gado”, afirma.
Ele completa: “Alguém precisa dar certo como referência; produzir comida e madeira, armazenar carbono e gerar renda e benefícios à biodiversidade e ciclo de água. E, assim, construir uma região mais rica”.
Nas cidades, as soluções são diferentes e ganham relevância para o empreendedorismo na Amazônia, onde 80% da população está no meio urbano – e a maioria convive com baixos índices de saneamento e outros serviços públicos, enquanto integram a dinâmica local da bioeconomia. “Sem boas cidades, perdemos cérebros e talentos que buscam outras regiões de melhor qualidade de vida”, observa o empresário, ao lembrar que a boa conectividade por internet, nos dias hoje, é o básico.
Na floresta ou nas cidades, a distância entre os atuais esforços de inovação e o tamanho do desafio de uma nova economia do conhecimento não ofusca a existência de talentos – eles estão lá, na calha dos rios, em instituições de ciência, startups ou fora delas, pois não há nada no DNA amazônida que incapacite para soluções. Faltam, sim, ações coordenadas e investimentos de vulto para despertá-los, em cenário que endereça um inadiável debate: o que o Brasil espera da Amazônia e vice-versa?
“É uma questão de justiça climática”, ressalta Minev como pano de fundo recorrente nas conversas com empresários da região no contexto da COP 30. “Pelo tamanho da floresta e da população indígena que tem a Amazônia, somos credores; não estamos no banco dos réus como outras regiões brasileiras que já construíram suas economias à base da destruição de florestas e produção de petróleo. Se o País nos pede para dar um salto sem desmatamento, parece justo que os custos deste momento não fiquem na Amazônia”.
Isso significa direcionar grande parcela de investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) para a região, bem como capital de fomento que pule para a casa dos bilhões de reais. Na análise de Minev, “por razão de justiça, é hora de assumir riscos”. Os atuais investimentos em empreendedorismo inovador – diz o empresário – são micro exemplos, pequenas iniciativas isoladas, longe de oferecer alternativas competitivas com a atual taxa de desmatamento.
Minev segue o pensamento do avô, o economista Samuel Benchimol (1923-2002), que há mais de 50 anos falava da necessidade de recompensar economicamente a floresta amazônica pelos benefícios ao mundo, com mais de 150 livros publicados. “Sofremos com injustiça climática, porque o Brasil não tem investido o suficiente na Amazônia e espera dela uma entrega que ninguém no mundo até hoje alcançou: a prosperidade sem usar intensamente os seus recursos naturais”.
Manaus mais próxima da floresta
Em Itacoatiara, às margens do rio Amazonas, o empresário criou na Bemol uma iniciativa de formação em tecnologia que capacita jovens a trabalhar remotamente para grandes empresas globais sem sair da floresta. Na era da inteligência artificial, o tempo vagaroso do vaivém nos rios amazônicos e seus banzeiros se combina à urgência de soluções climáticas, em região na qual o algoritmo encontra ambiente propício. Manaus, polo brasileiro de indústrias de tecnologia no coração da Amazônia, já ocupa espaços como capital da IA, com a marca da floresta.
De lá, pelo rio Amazonas, sai grande parte dos celulares, televisores, motocicletas, aparelhos de ar-condicionado e computadores consumidos Brasil afora, e agora a capital amazonense tem pela frente o desafio de uma maior conexão com a floresta ao seu redor. Parques tecnológicos povoam a cidade, inclusive com a proposta de abrigar plantas industriais compartilhadas por startups para o processamento de bionsumos que chegam da floresta, com menor custo e mais valor. Novos espaços de crescimento dos negócios estão na valorização do interior.
O modelo que alia tecnologia e natureza atrai novas gerações à base das cadeias produtivas. “Estamos semeando o que pode gerar uma nova economia”, destaca Carlos Koury, diretor de inovação em bioeconomia do Idesam, instituição que coordena o Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio). O mecanismo da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) repassa investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) que as empresas são obrigadas a realizar em contrapartida dos incentivos fiscais.
A iniciativa mobilizou até hoje mais de R$ 190 milhões, com 40 empresas investidoras e 86 projetos já finalizados ou em execução no Amazonas, Amapá, Roraima, Rondônia e Acre. São inovações apoiadas na fase de desenvolvimento, antes de chegar a um novo negócio.
“Universidades e institutos tecnológicos no interior geram reflexões sobre como fazer mais e melhor, produzindo com mais valor”, pondera Koury. O cenário positivo, com bons exemplos que funcionam, estimula alternativas econômicas sem repetir o mantra de que desmatar é o único caminho para o desenvolvimento.

