A transição energética estabelecida na declaração final da COP de Dubai, em 2023, segue sem cronograma definido no Brasil. Segundo o relatório “Política Climática por Inteiro”, do Instituto Talanoa, não há no Plano Clima indicação clara de redução da produção e do consumo de combustíveis fósseis. Ao contrário: projeta-se um aumento de até 14% das emissões até 2035. Confira, a seguir, mais destaques do relatório
O Brasil chega às vésperas da COP 30 com um inédito mapa do caminho para reduzir emissões e se adaptar às mudanças climáticas – porém sem uma estimativa clara do custo de implementação de seus compromissos climáticos. De toda forma, qualquer que seja esse valor, ele dificilmente superará o custo estimado para o País caso não enfrente a crise climática, que pode chegar a R$ 17 trilhões em 25 anos em perda do PIB se o aumento da temperatura ultrapassar 4°C em relação aos níveis pré-industriais.
Esse roteiro apresentado pelas diversas peças do Plano Clima também não prevê o afastamento dos combustíveis fósseis. Há ainda lacunas em outros setores como as dificuldades para enfrentar as emissões da agropecuária, amplamente dominada pelo metano da chamada fermentação entérica, o processo digestivo do gado. No setor de uso da terra, o relatório mostra que, ao mesmo tempo que ali se concentra grande parte das emissões do Brasil, está a maior parte da solução. Se o combate ao desmatamento e as medidas para restauração da vegetação não forem implementados, dificilmente o país alcançará as metas declaradas em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Estes são alguns dos destaques da edição prévia de 2025 do relatório “Política Climática por Inteiro”, que o Instituto Talanoa lança hoje, dia 22 de outubro.
O estudo, que analisa a trajetória do Brasil para neutralizar as emissões de gases de efeito estufa em 2050, mostra, em seu quadro-resumo O Estado da Política Climática no Brasil em 2025, que, de 41 áreas de políticas públicas relacionadas ao clima, o País avançou no ano passado em 21, avançou pouco em 15, não avançou em 3, e retrocedeu em 2.
Nesse sentido, o Plano Clima tem lacunas relevantes em relação ao que era esperado, a começar pela falta de um sinal claro de transição para longe dos combustíveis fósseis, conforme previsto na declaração final da COP de Dubai, com base no primeiro Balanço Global do Acordo de Paris (GST, na sigla em inglês). Ao contrário: o Plano Clima projeta aumento até 2035 nas emissões da produção de energia, indústria e transportes – setores que fazem uso de combustíveis fósseis.
Outro ponto de atenção é a adaptação a um clima que já mudou e o Brasil é um país bastante vulnerável a secas, enchentes, inundações e ondas de calor. Estimativas oficiais mais recentes indicam que as mudanças climáticas já atingiram diretamente mais de 113 milhões de brasileiros na última década, em quase 5 mil municípios, danificando 1,7 milhão de moradias e causando prejuízos superiores a R$ 455 bilhões.
Nessa agenda, os recursos do PAC são apontados como uma fonte importante para a adaptação no curto prazo. A maior fatia dentro do eixo Cidades Sustentáveis e Resilientes do programa é destinada ao programa Minha Casa Minha Vida, que não conta com critérios claros de análise de riscos climáticos e promoção de resiliência. Obras de prevenção de desastres, gestão de resíduos sólidos, esgotamento sanitário, mobilidade urbana e urbanização de favelas, mais alinhados à agenda de adaptação às mudanças climáticas, recebem uma fatia bem menor: R$ 54,8 bilhões no total, entre 2023 e 2026 – o equivalente a 18% dos investimentos previstos no mesmo período em petróleo e gás, que contribuem para o agravamento da crise climática.
“Vimos que tanto para reduzir as emissões como para promover a adaptação, não é preciso apenas reforçar investimentos na transição, é urgente alinhar o gasto público ao desafio climático”, afirma Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa.
O relatório aponta também que a transição para uma economia de baixo carbono exige salvaguardas ambientais específicas, como vedar a mineração em áreas protegidas na Amazônia ou em terras indígenas, e de orientação clara sobre a agregação de valor a minérios críticos e estratégicos em território nacional, admitindo a exportação de commodities. Esses minerais usados na geração de energia eólica e solar e em baterias para carros elétricos, por exemplo, estão fortemente associados à pauta de transição energética.
No caso dos data centers, um dos problemas é o consumo de energia. Estudo da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) indica que seu consumo global de energia elétrica irá dobrar até 2030 e crescer a uma taxa de 15% por ano – quatro vezes mais que o consumo geral de energia elétrica do planeta. Por isso, a Política Nacional de Datacenters e o Regime Especial de Tributação para Serviços de Datacenter (Redata) condicionam a concessão de incentivos fiscais à exigência de uso exclusivo de fontes limpas e renováveis para o fornecimento de energia elétrica. Porém, os cenários de aumento de consumo de energia do Plano Clima ainda não contemplam esse aumento da demanda por data centers.
Outro grande desafio que o relatório aponta é nas finanças. O mais notável mecanismo de financiamento climático ainda é o Fundo Clima. Fora do Orçamento da União, o financiamento climático conta com a contribuição do Fundo Amazônia, que tem um papel importante na restauração florestal, pilar da estratégia climática brasileira. Projetos de restauração da vegetação nativa também integram a Plataforma Brasil de Investimentos Climáticos e para a Transformação Ecológica (BIP), lançada no final de 2024.
A caminho da COP 30, o governo trabalha em outros mecanismos para ampliar o financiamento climático, como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), destinado a financiar a conservação de florestas tropicais em países em desenvolvimento e apoiar quem vive nelas. O País está para lançar também a Taxonomia Sustentável Brasileira, um mecanismo de classificação de investimentos, planejado para impulsionar investimentos sustentáveis tanto ambiental como socialmente. Objetivos climáticos, como a mitigação das emissões de gases de efeito estufa e adaptação às mudanças climáticas, são contemplados. Também é esperada a regulamentação do mercado regulado de carbono. O Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) foi criado em 2024 por meio de lei, mas a previsão é que seus impactos para conter as emissões de gases de efeito estufa ainda demorem alguns anos.
Para onde caminham as emissões brasileiras
Como a meta de 2025, que exigiria uma redução de 719 milhões de toneladas de CO2e em três anos, já se mostrava uma “missão quase impossível”, o Plano Clima trabalha nas etapas intermediárias de 2030 e 2035. O intervalo estabelecido para 2035, entre 850 milhões de toneladas de CO2e e 1,05 Gt de CO2 e foi objeto da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) submetida pelo governo brasileiro à Convenção do Clima em novembro de 2024, durante a COP de Baku, no Azerbaijão. Como o primeiro Balanço Global do Acordo de Paris recomendou um corte de 43% das emissões globais até 2030 e um corte de 60% até 2035, com base nas emissões de 2019, vemos que o Brasil precisa recuperar o prejuízo de andar na contramão, sobretudo entre 2017 e 2021.
“O descumprimento dessa primeira meta do nosso compromisso climático é algo que o País terá de enfrentar um pouco mais adiante, o importante agora é assegurar que a transição para uma economia de baixa emissão de carbono e resiliente às mudanças climáticas seja implementada”, destaca Marta Salomon.
A aposta no combate do desmatamento
A maior parte do esforço de mitigação previsto pelo Plano Clima está concentrada no combate ao desmatamento e na restauração florestal. Ele prevê uma drástica redução da supressão de vegetação nativa também nos imóveis rurais. Isso permitiria reduzir e capturar 1.084 Gt CO2e na meta mais ambiciosa para 2035. A maior parcela (581 milhões de toneladas de carbono) deverá vir do combate ao desmatamento em imóveis rurais e assentamentos – tanto ilegal como o autorizado por lei. Para isso, o Plano Clima prevê o pagamento de incentivos que desestimulem a retirada de vegetação nativa nos imóveis rurais, algo que vem sofrendo forte resistência do setor. “A atividade agropecuária resiste em reduzir as emissões, mesmo dependendo enormemente da estabilidade do clima para produzir. A resistência em reduzir o desmatamento nos imóveis rurais, mesmo que mediante incentivos, poderá impor uma redução maior das emissões provocadas pela pecuária e pelo uso de fertilizantes”, comenta Salomon.
O plano também conta com uma parcela considerável de restauração florestal – a forma mais “barata” de capturar carbono da atmosfera – para que o Brasil cumpra a meta de 2030. No caso das propriedades privadas, essa captura de carbono pode se dar tanto pela recuperação de passivos de vegetação nativa como pela conversão de pastagens degradadas.
Paralelamente ao combate ao desmatamento, deveria ter avançado a recuperação da vegetação nativa. No final de 2024, o governo anunciou a revisão do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), com a meta de recuperar 12 milhões de hectares até 2030 – a mesma meta da primeira NDC Brasileira, anunciada em 2016. Mas ainda não há dados oficiais sobre o resultado nessa área, eles são esperados até a COP.
Agropecuária: o setor que mais emite no Brasil
Sem considerar o desmatamento, de que a atividade também é em grande parte responsável, para a abertura de áreas para lavouras e pastagens, atualmente a agropecuária responde por mais de 30% das emissões brasileiras. Apesar disso, o Plano Clima não inclui qualquer medida para enfrentar a maior fonte de emissões do setor, a fermentação entérica – o processo digestivo do gado. Ela é responsável por 65% dos gases de efeito estufa do setor e quase a quinta parte (20%) das emissões totais do Brasil, de acordo com dados do inventário nacional usados na Estratégia Nacional de Mitigação. A título de comparação, a fermentação entérica emite quase quatro vezes o volume das emissões de caminhões, ônibus rodoviários e da aviação doméstica juntos, sendo que estes representam a maior parcela de queima de combustíveis fósseis no país.
Ao analisar os incentivos climáticos para a agricultura familiar e o grande agro, o relatório do Talanoa encontrou cenários diferentes. O Plano Safra da Agricultura Familiar dá destaque maior ao contexto da crise climática, com a criação de linhas para apoiar a agroecologia, a irrigação sustentável e a adaptação às mudanças climáticas. A agricultura familiar também conta com ações inovadoras no Plano Setorial de Agricultura e Pecuária, como a implantação de corredores agroecológicos produtivos em regiões metropolitanas.
No grande agro, ao contrário, há poucas iniciativas. Apenas uma parcela pequena do Plano Safra é destinada às tecnologias que reduzem a emissão de gases de efeito estufa da atividade. Estudo do Instituto Talanoa divulgado em julho mostra que o Programa para Financiamento a Sistemas de Produção Agropecuária Sustentáveis (RenovAgro), principal linha de investimento na chamada agricultura de baixa emissão de carbono, representou apenas 8% do investimento total do Plano Safra 2025/2026. Do conjunto total dos recursos tanto para custeio como para investimentos anunciados em julho, apenas 1,6% são para a produção mais alinhada aos compromissos assumidos pelo Brasil na agenda climática.
Embora já tenha completado 25 anos, desde a sua primeira fase, não há indicadores claros de desempenho do plano ABC e a meta de mitigação do plano ABC+, que vai até 2030, está muito distante das emissões registradas no setor em um único ano. Os dados de recuperação de pastagens também são pouco consistentes. O painel de acompanhamento de resultados do ABC+ no site do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) tem dados atualizados apenas até 2022 e, segundo eles, da meta de recuperar 30 milhões de hectares de pastagens degradadas, já teriam sido recuperados 16,9 milhões de hectares, ou mais da metade do total. Porém essas informações não batem com o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas, criado em 2023 e rebatizado em 2025 como “Caminho Verde” e que tem o objetivo de recuperar 40 milhões de hectares de pastagens degradadas em 10 anos.
Energia: que transição é essa?
A transição para longe dos fósseis estabelecida na declaração final da COP de Dubai, em 2023, segue sem cronograma definido no Brasil, assim como nos demais países do mundo. Não há indicação clara de redução da produção nem do consumo de combustíveis fósseis no Plano Clima, em sua versão submetida à consulta pública. Pelo contrário: no conjunto de ações que tratam da produção e do consumo de energia, o Plano Clima projeta um aumento de até 14% das emissões de gases de efeito estufa até 2035. Há pressão maior na continuidade ou aumento de queima de combustíveis fósseis na produção de energia, na indústria e nos transportes, com possibilidade de aumentarem suas emissões, respectivamente, em 44%, 34% e 16% até 2035.
Não há meta, no Plano Clima, referente ao percentual de renovabilidade da matriz energética brasileira, que alcançou 50% em 2024, bem acima dos 14,3% de fontes renováveis médios no mundo. No Brasil, o petróleo ainda responde por 34% da oferta interna de energia. Com o gás natural e o carvão mineral, as fontes fósseis somam 48,1% da matriz energética.
Na geração de energia elétrica, a expectativa é que as fontes renováveis tenham participação menor, segundo o Plano Setorial de Produção de Energia. Considerados não apenas o Sistema Interligado Nacional (SIN), mas também os sistemas isolados, a importação de eletricidade e a autoprodução não-injetada na rede, a matriz elétrica brasileira é 88,2% renovável, segundo dados do Balanço Energético Nacional. Porém as metas do Plano Clima são de 82,7% de renovabilidade em 2030 e algo entre 82,7% e 86,1% em 2035. Ou seja, a matriz elétrica brasileira ficará menos limpa segundo o Plano Clima.
“Com uma matriz elétrica que recua em percentual de fontes renováveis e uma matriz energética sem indicação clara de abandono gradual dos combustíveis fósseis até 2035, seria possível perguntar: que transição energética é essa?”, questiona o relatório.
A peça-chave na transição energética brasileira é a produção de biocombustíveis. Ela tem investimentos estimados em R$ 110 bilhões entre 2025 e 2035, segundo estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), para o Plano Decenal 2035. A maior parcela desses investimentos teria como destino a produção de combustível sustentável de aviação (SAF) e hidrogênio de baixa emissão de carbono, a expansão de canaviais (mantendo a cana-de-açúcar como principal matéria-prima para a produção de etanol) e também a produção de etanol de milho.
Indústria cresce no bolo das emissões brasileiras
O Plano Clima prevê que as emissões da indústria brasileira aumentem até 11% até 2030 e entre 13% e 34% até 2035, comparadas aos níveis de 2022, incluindo a queima de combustíveis fósseis do setor, aumentando a participação do setor no total de emissões do país. As metas setoriais da indústria parecem não estar de acordo com a política industrial lançada em 2024, conhecida como Nova Indústria Brasil (NIB), mostra o estudo do Instituto Talanoa.
Resíduos: de problema a parte da solução
No Plano Clima, o setor de Resíduos é um dos setores que devem apresentar queda nas emissões no período até 2035, entre 12% e 19%. É apontado como parte da solução para a transição energética. Entre as metas do Plano Setorial de Resíduos, estão aproveitar energeticamente 45% do biogás gerado em aterros sanitários e 25% do biogás gerado em estações de tratamento de efluentes sanitários domésticos até 2035. O uso desse biogás ajuda na substituição de combustíveis de origem fóssil.
A alta vulnerabilidade do Brasil à mudança do clima
Diante da urgência em lidar com os impactos das mudanças climáticas e da grande lacuna de financiamento para esse tipo de projeto, o Instituto Talanoa reforça a necessidade de alinhamento dos investimentos públicos à resiliência climática.
O relatório do Talanoa classifica como um avanço notável na agenda de adaptação a seleção de 581 municípios considerados prioritários, que contarão com capacitação em 2026 para elaborar seus planos locais de adaptação. Feita em conjunto com os governos de 26 Estados e do Distrito Federal, a seleção engloba quase 53 milhões de habitantes, ou cerca de 26% da população brasileira.
Governança precisa avançar
A política climática vem sendo conduzida desde 2023 de forma transversal, por meio do Conselho Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM). O Instituto Talanoa avalia que o CIM teve um papel fundamental na elaboração do Plano Clima, mas que a implementação da política climática daqui para a frente requer uma estrutura mais robusta de governança, que permita avançar na articulação e capacitação com entes federativos e em mecanismos de monitoramento e avaliação, além de manter alinhamento com evidências científicas.