No Peru, a discussão em torno de uma mina de cobre mostra como chegar a um bom termo ao dividir o espaço
Por Renato Guimarães*
Em que pese a retração econômica mundial prevista para os próximos anos, a economia peruana é uma das campeãs de crescimento da América Latina, com taxa média do PIB de 4% entre 2002 e 2006, e de 9% em 2007 e 2008. Grande parte desse êxito se deve ao boom no preço das commodities, como ferro, cobre e ouro, riquezas encontradas em abundância na região andina.
Desde os anos 90, sucessivos governos têm impulsionado uma política agressiva de liberação comercial e dado grandes facilidades para o investimento privado em indústrias extrativistas. Mas um dos efeitos colaterais dessa receita foi o aumento exponencial na quantidade de conflitos sociais, opondo empresas às comunidades diretamente afetadas por projetos de exploração mineira.
A situação é tão grave que o Ministério Público peruano mantém um grupo dedicado especificamente a monitorar os conflitos sociais em todo o país. Hoje, o Peru enfrenta 197 conflitos, dos quais 93 relacionam-se à exploração de minérios.
O denominador comum a todos é a aparentemente insolúvel contradição entre os conceitos de “terra” e “território”, tal como são entendidos pelas comunidades nativas e como são interpretados pelo governo e pelas empresas.
Para as comunidades, o território é um conceito único, que congrega não apenas o espaço físico, mas também o elemento espiritual. Neste contexto, o território de um povo ou comunidade inclui não apenas os ecossistemas naturais que ali existam, mas também a relação com sua cosmogonia e a própria memória coletiva.
O sistema legal peruano reconhece o direito das comunidades nativas às suas terras originais, mas prevê claramente que o Estado detenha a propriedade sobre o que se encontra no subsolo. Mesmo que uma comunidade obtenha o título legal de sua terra, o direito de exploração das riquezas do subsolo pode ser dado pelo governo a uma empresa privada. Comunidades com dezenas de anos, às vezes séculos, de ocupação de determinado território veem-se obrigadas a aceitar atividades de exploração de seu subsolo que podem trazer um prejuízo ambiental imediato.
Na prática, poucas comunidades são capazes de entender o impacto real dessas explorações ou de negociar com as empresas uma compensação e mitigação que sejam adequadas. Por sua vez, são poucas as empresas que investem em relações sustentáveis com as comunidades.
Instaura-se, assim, um diálogo de surdos, no qual comunidades e empresas usam de categorias mentais distintas para medir os potenciais benefícios e malefícios das explorações mineiras. Uma tentativa bastante inovadora para superar essa situação é a exemplificada pela Mesa de Diálogo de Tintaya.
A mina de cobre Tintaya está localizada a cerca de 10 quilômetros da cidade de Yauri, na região de Cuzco, acima dos 4.100 metros de altitude. As explorações na região remontam a 1917, mas se intensificaram a partir dos anos 1980, quando o governo expropriou 2.300 hectares de terras da comunidade camponesa de Antaycama.
Nos anos 1990, a mina foicomprada pela empresa anglo-australiana BHP Billiton e hoje é administrada pela suíça Xtrata, que adquiriu os direitos de exploração em 2008. Quando a BHP assumiu a mina, recebeu junto um longo passivo de conflitos com as comunidades no entorno, que reclamavam do processo de desapropriação a que foram submetidas.
Elas também denunciavam o impacto da atividade de extração de cobre sobre o meio ambiente. Representantes das comunidades afetadas e líderes políticos locais passaram a aumentar a pressão sobre a empresa para dar uma solução a suas demandas. Uma das estratégias usadas foi recorrer a ONGs internacionais que as ajudassem a estabelecer um diálogo com a sede da BHP na Austrália. Depois desse esforço, surgiu em 2001 a iniciativa de estabelecer uma “mesa de diálogo” que reunisse representantes de todos os atores envolvidos: empresa, ONGs locais e internacionais, lideranças comunitárias e políticas.
Em um primeiro momento, o maior desafio foi o de estabelecer os mecanismos para uma conversa real e transparente entre partes com interesses, conhecimentos e percepções distintos. Superar o clima de desconfiança e encontrar uma linguagem comum foi a tarefa que absorveu os primeiros dois anos de trabalho.
Já em uma segunda etapa, buscou-se encontrar soluções concretas para os problemas levantados. Esse consenso foi traduzido em um acordo assinado em 2003 entre a BHP Billiton (e corroborado pela Xtrata quando esta comprou a mina, em 2008) e as comunidades e governos locais, prevendo compensações pelos danos econômicos e ambientais causados pela exploração.
A mesa de diálogo continua funcionando, supervisiona a aplicação do acordo, e também atua na prevenção de novos conflitos. O respeito ao território é ainda um ponto fundamental para as comunidades afetadas pelas atividades de extração de cobre, mas já existe uma aceitação da presença da mina.
Principalmente depois que a empresa se comprometeu a entregar novas terras às comunidades afetadas pela expropriação dos anos 80. A experiência de Tintaya representa uma quebra no paradigma da construção de relações entre empresas e comunidades que pode ser muito útil em outros contextos. Mostra que o entendimento comum de conceitos básicos como os de terra e território, o correto manejo das expectativas de parte a parte e o gerenciamento transparente de informações e de recursos são elementos que devem fazer parte de qualquer relação sustentável entre empresas e comunidades.
*Jornalista pós-graduado na Universidade de Lima e fellow do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da City University, de Nova York. Entre 2002 e 2008, viveu em Lima, de onde coordenou a área de comunicação estratégica da ONG britânica Oxfam GB para a América Latina. Edita o blog Tordesilhas (http://tordesilhas.net).