A energia gerada em pequena escala por fontes alternativas ainda pode ser mais bem aproveitada no Brasil. Além de reduzir a emissão de gases poluentes, a pulverização de produtores contribui para a resiliência do suprimento energético nacional
Falar sobre o futuro energético brasileiro é como adentrar um espaço de superlativos. Enquanto países reconhecidos como modelos de gestão ambiental, como a Alemanha, tentam chegar a 20% de geração limpa, no Brasil o desafio é manter uma das matrizes elétricas com maior participação das fontes renováveis no mundo (82,19%) pelos próximos 20 anos. E ainda proporcionar a oferta necessária para uma taxa de crescimento econômico de 5% ao ano.
A julgar pelas pautas que dominam o planejamento energético nacional, poderíamos imaginar que este é um caminho para ser trilhado em mão única e proporções de avenida. A construção de grandes hidrelétricas na Amazônia e o retorno da discussão sobre energia nuclear concentram as atenções no Brasil, enquanto cresce o uso das usinas térmicas movidas por combustíveis fósseis.
Mas é nas ramificações que se escondem as veredas do baixo custo, do baixo impacto ambiental e de um potencial de expansão nada desprezível. Trata-se de pulverizar os investimentos entre pequenos e médios produtores, um grupo que hoje responde por 8% da capacidade instalada da matriz energética do País. E que pode produzir muito mais.
A geração é de pequena escala, mas isso não significa que estamos falando de pequenos empresários. Esse grupo é formado por aqueles que investem em usinas de pequeno e médio porte, com custos de instalação menores e capacidade de geração entre 30 e 3.000 mWh (megawatts/hora). E essa escala corresponde à maior parte do universo das energias alternativas moderna [1] , como pequenas centrais hidrelétricas, usinas de queima de biomassa e aproveitamento do gás metano de lixões e aterros urbanos.
[1] De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), do Ministério de Minas e Energia, até 2020 a geração de energia elétrica oriunda de fontes alternativas pode passar dos atuais 8% para 16% da matriz brasileira
Algumas dessas fontes podem ter um desempenho futuro superior até ao dos grandes projetos de hidrelétricas, como Belo Monte, no Pará, e Santo Antônio e Jirau, em Rondônia. “Algo que poucos sabem é que apenas a capacidade de geração de energia com o aproveitamento do bagaço da cana-de-açúcar já plantada no Brasil pode ser superior à de Itaipu, com uma média de 14 gigawatts/ hora”, diz Ricardo Botelho, presidente do Grupo Energisa, especializado em soluções de eficiência energética.
Se considerarmos a necessidade de expansão da cana-de-açúcar para suprir a demanda do etanol até 2020, teremos uma geração de energia equivalente a uma Itaipu e meia. Mas a proposta dos produtores independentes é tornar a energia do bagaço não uma alternativa à geração hidrelétrica, mas um complemento.
Um estudo liderado pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) descreve o potencial de uma cultura que já está instalada no Brasil há cinco séculos. E com a vantagem de ser uma fonte renovável, com capacidade de geração pulverizada por vários produtores de pequeno e médio porte, e não concentrada nas mãos de apenas uma grande usina.
Segundo a pesquisa, a energia que vem dos rios tem sido responsável por cerca de 90% da carga elétrica no país. A irregularidade das chuvas, concentradas no verão e no início de outono, entre dezembro e abril, faz com que em agosto e setembro haja uma redução de dois terços do potencial energético. Para reduzir esse déficit e evitar uso de usinas térmicas, a proposta dos pesquisadores é usar a biomassa da cana para alimentar a demanda nacional de energia durante esses meses. A projeção do estudo é que a cana poderia saltar dos atuais 5% para 12% de contribuição para a capacidade energética nacional instalada.
O lixo é outra fonte alternativa ainda subestimada no Brasil. Um levantamento da consultoria Andrade & Canellas revela que o País poderia produzir entre 3.050 e 3.660 gWh de energia todos os anos com o uso do biogás gerado pela decomposição do lixo urbano. Seriam suficientes para abastecer a Grande São Paulo, considerando-se o consumo médio residencial.
Nesse caso, além de reduzir as emissões de gases que causam o aquecimento global, também se evitariam graves problemas de saúde pública, como o que causou a interdição do Shopping Center Norte e de um conjunto habitacional Cingapura, na capital paulista, em outubro. Essa energia também poderia gerar um ganho econômico, pois se enquadra no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Hoje, esse rico recurso é amplamente desperdiçado. “Falta planejamento nas políticas públicas voltadas para a geração de energia pelos produtores independentes”, diz Botelho, da Energisa. “Esse é um caso emblemático. Lembro que nesse tipo de geração não há custo com a tarifa de transmissão para a venda da energia. Porém esse é o único incentivo dado pelo governo para o desenvolvimento desse setor.”
O CUSTO PARA VENDER ENERGIA
Ligar-se ao Sistema Interligado Nacional (SIN) é um dos problemas dos produtores independentes. Hoje, o custo para chegar até uma distribuidora é pago pelos empresários, o que desestimula produtores muito pequenos a venderem sua energia na rede nacional. Isso faz com que o perfil dos produtores pequenos e médios de energia seja constituído, hoje, por grandes fazendeiros e empresários. Outro perfil que tem entrado no setor são os fundos formados por investidores de mercados de capitais. “Muitos olham o setor elétrico com bons olhos, pois os contratos de venda de energia têm longo prazo, o que significa um investimento com garantia de retorno por até 20 anos”, afirma Botelho.
Além desse investimento, os produtores precisam pagar a taxa de transmissão, uma vez que só está isenta a geração de energia originária da queima de lixo. Assim, tanto as usinas eólicas quanto as de biomassa pagam uma tarifa pelo uso do sistema, de 50% em relação ao valor de um empreendimento de geração de energia tradicional, como uma grande usina hidrelétrica.
O excesso de investimentos em opções pontuais da geração independente também é criticado pelo setor. Um dos temores são as políticas adotadas para a geração pelos ventos, em detrimento do crescimento das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que usam os rios em empreendimentos de até 30 mW/h, e que, em razão de seu reduzido tamanho, não demandam um licenciamento ambiental tão complexo quanto o de uma grande hidrelétrica.
“O setor vive situações distintas, dependendo da fonte de energia que estamos analisando. Existe certa euforia em relação à energia eólica e uma grande preocupação dos empreendedores de PCH e de biomassa”, conta Charles Lenzi, presidente da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel). “Os resultados dos últimos leilões vêm demonstrando isso. Enquanto os empreendimentos de energia eólica têm tido um destaque, com grande número de projetos, as PCHs têm perdido competitividade.”
Esse cenário apresenta questões econômicas distintas. De um lado, há um encarecimento no custo de construção das PCHs, e uma maior rigidez do ponto de vista ambiental em relação aos licenciamentos. Do outro, a crise econômica na Europa fez os custos da instalação de eólica cair no Brasil, e o desaquecimento no mercado de energia europeu tornou o mercado brasileiro mais atrativo.
Outro ganho das eólicas em relação às outras fontes é o incentivo fiscal. Na parte dos equipamentos, existe a isenção total de tributos como o ICM no preço dos equipamentos. “Por isso, defendemos a realização de leilões específicos por fonte, respeitando as particularidades e heterogeneidades de cada uma, além das complementariedades energéticas”, insiste Lenzi.
O temor dos produtores independentes é que haja um desequilíbrio nas fontes da matriz energética nacional. “Para ser independente, a matriz tem de ter todas as fontes de energia, e não pode depender exclusivamente de poucas fontes”, defende Botelho, da Energisa.
Se o que prevalecer for a busca do menor preço do momento, sem uma maior preocupação com as particularidades regionais e a complementariedade das fontes de geração, o ciclo das PCHs pode estar acabando no Brasil. “O setor de PCHs está preocupado com a sua viabilidade e a sua perspectiva de futuro. Há uma apatia e um desânimo generalizados, não só pelo lado dos empreendedores, mas também pelo lado dos fabricantes de equipamentos, das empresas prestadoras de serviço, dos escritórios de projetos”, alerta Lenzi.
Outro risco da falta de uma política multivariada de geração de energia é o crescimento de investimentos descontrolados – por exemplo, para geração de energia solar por produtores independentes na Espanha. A distorção entre o preço real da energia solar e o que era subsidiado pelo governo espanhol encareceu todo o sistema. Os produtores recebem até 450 euros por kWh, quando o custo médio dessa energia é de 250 euros por kWh. O acréscimo é pago pelo Tesouro espanhol ou rateado pelos consumidores residenciais – o que é bom para o desenvolvimento tecnológico da energia solar, porém tornou a fonte inviável do ponto de vista econômico. Em tempos de crise, vira mais um problema competitivo para a economia.
Um exemplo possível para o Brasil poderia ser a Alemanha. O país é considerado o que melhor lidou com o incentivo às fontes renováveis de energia. Em 1991, os alemães já buscavam uma forma de reduzir sua dependência [2] do carvão. Conseguiram, em 15 anos, triplicar a geração de energia com fontes não poluentes.
[2] A matriz energética do país é 84% dependente da queima de combustíveis fósseis, praticamente o inverso da situação brasileira
A fórmula foi a adoção do sistema de preços introduzido com o Electricity Feed Act (1991) – e posteriormente atualizado pelo Renewable Energy Sources Act (2000) e pela emenda do Renewable Energy Sources Act (2004). Esses programas foram baseados na obrigatoriedade de compra, pela operadora de rede, de toda a eletricidade gerada pelas fontes renováveis, o que gerou mais renda para o produtor independente de energia (PI) e uma tarifa-prêmio a cada kWh gerado. Hoje a Alemanha produz 16% de sua energia de fontes eólicas, solares e outras variedades renováveis.
No Brasil, um passo similar foi o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que ajudou a criar e a estabilizar um mercado para a venda dessa energia. A primeira fase do programa acabou em 2010, restando poucos empreendimentos licitados ainda para entrar em operação.
Hoje, a previsão do governo é a de que não ocorra a segunda etapa do Proinfa, que seria mais consistente do que a primeira, porque previa uma programação anual de compra de energia dessas fontes, anualmente, até que se atingissem 10% do consumo anual de energia elétrica do País. Mas essa etapa acabou abandonada por conta da realização dos leilões de fonte alternativa (LFA) e também de outros leilões específicos, que permitem a participação das fontes de biomassa, de PCH e de eólica.
Um projeto de lei também pode piorar a situação da produção independente de energia no Brasil. A Medida Provisória número 540, de autoria do deputado federal Odair Cunha (PT-MG), prevê justamente o contrário do sistema alemão de incentivos. Hoje, os produtores que geram até 500 mWh têm a venda de sua energia garantida para determinados segmentos, que consumam até 3.000 mWh. O que o PL no 540 prevê é o fim dessa obrigatoriedade, fazendo com que essas empresas possam comprar de quem quiserem, o que pode privilegiar as grandes hidrelétricas, que já contam com grandes investimentos e empréstimos de bancos públicos.
Um dos pontos de mudança, previsto no Plano Decenal de Energia, do governo federal, é a queda no investimento na participação das hidrelétricas de 76% para 67%. A geração oriunda das eólicas será destaque, aumentando de 1% para 7%. Com isso, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelos estudos que fundamentam o plano, prevê que a fatia de fontes renováveis se manterá em torno de 82,19% até 2020. “O grande problema é que toda vez que temos eólica, mas sem investimento em energia hídrica, podemos ter que recorrer às usinas térmicas movidas a carvão, óleo e gás, pois existem períodos do ano sem vento”, explica Botelho.
“O Brasil já tem uma folgada vantagem comparativa. Na matriz de energia nacional [3], a participação de fontes renováveis (45,8%) é mais de três vezes superior à média mundial (12,9%)”, diz Lenzi, da Abragel. “O que é necessário agora é manter e aprofundar essa vantagem investindo na diversificação e independência das fontes de energia.” Com o cuidado de manter todas as fontes alternativas competitivas.
[3] Inclui a energia elétrica e os combustíveis consumidos no setor de transporte