Produção ilegal de madeira apropria-se do sistema de fiscalização para expandir suas atividades. Certificação é uma das saídas para o problema
Há mais rigor no rastreamento e comercialização da madeira, mas – acredite – isso não garante que o produto que compramos dentro da lei tenha realmente origem comprovada. Quem atua na ilegalidade utiliza o próprio sistema criado por órgãos de fiscalização para nos convencer de que essa madeira sem exploração autorizada é legal. É o que se chama de “esquentar” a madeira.
Não há um cadastro único no País da produção madeireira, pois desde 2006 o controle passou do Ibama para os estados. Mas estima-se que 36% do total da exploração madeireira da Amazônia Legal sejam ilegais. Os dados não oficiais são do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e referem-se ao ano de 2009.
Considerando-se apenas os números do Pará, estado com mais registros de desmatamento da região, a atividade de extração não autorizada pelo órgão responsável chega a 76%, cerca de 4,7 milhões de metros cúbicos.
“Essas estimativas são bastante imprecisas, mas pesquisadores afirmam que entre 50% e 80% da madeira originária da Amazônia tenha algum grau de ilegalidade em sua cadeia produtiva”, afirma o engenheiro florestal Mauro Armelin, coordenador do Programa da Amazônia do WWF-Brasil. “São diversos os meios: na falta da documentação obrigatória, em questões fundiárias impróprias, na inconformidade dos documentos, no transporte, na legislação fiscal ou trabalhista irregular.”
É preciso que o Ibama e as secretarias de meio ambiente dos estados aprovem um plano de manejo para explorar a madeira. Eles emitem documentos que comprovam a atividade legal. No entanto, se o produtor “comprar” autorizações de áreas inexistentes ou áreas existentes, mas inviáveis para manejo, consegue esquentar a madeira ilegal.
Para escoar a produção ilegal existem duas fases da cadeia que a madeira pode ser inserida nos sistemas de controle de fiscalização: no manejo florestal e nas serrarias. “É mais difícil combater o falso legal do que o ilegal informal”, diz Roberto S. Waack, CEO da Amata, empresa que trabalha com manejo sustentável e tem como principal produto a madeira certificada. Waack também integra o conselho mundial do Forest Stewardship Council (FSC).
MANEIRAS DE BURLAR
Um modelo comum para burlar o sistema é superexplorar o volume de madeira. Para isso, o produtor mal-intencionado aprova um plano de manejo na Secretaria de Meio Ambiente que permite o corte de árvores em um volume determinado, e o explorador colhe muito mais e não é devidamente auditado. Se em determinada região existem 200 metros cúbicos de madeira autorizados, por exemplo, ele explora 500 metros cúbicos e os 300 restantes são obtidos ilegalmente, ou seja, sem origem comprovada.
Esses produtores entram no sistema legal e aprovam a quantidade superexplorada por meio de propina e também por confiança na impunidade. “A Amazônia tem dimensões gigantescas e jamais teríamos condições de colocar o número suficiente de fiscais para cobrir toda aquela extensão de forma minimamente satisfatória”, explica Mauro Armelin, do WWF-Brasil.
Os ritos da produção legal de madeira determinam que, após elaborar um plano de manejo e aprová-lo na Secretaria de Meio Ambiente do estado produtor, é necessário preparar um Plano Operacional Anual (POA), que determina a quantidade de madeira a ser cortada e transportada anualmente. Por fim, é gerado o Documento de Origem Florestal (DOF), que registra a quantidade e descrição de espécies que serão cortadas. Esse documento é utilizado em todas as etapas de produção e comercialização para checar se o que o órgão do governo aprovou corresponde ao que está sendo transportado ao longo da cadeia. [1]
[1] Leia mais no livro Madeira de Ponta a Ponta – O caminho desde a floresta até o consumo, realizado pelo GVces e GVceapg
Em geral, os produtores ilegais nem fazem o plano de manejo, apenas compram o documento falso que comprova a suposta origem legal da atividade irregular.
Outra forma de “esquentar” a madeira é inflar o rendimento nas serrarias. O sistema de controle do governo considera que metade das toras é convertida em pranchas, o restante é resíduo. “Mas, na prática, o rendimento é menor, cerca de 30% a 40%, principalmente se a serraria tem estrutura e equipamentos precários. Para alcançar os 50%, madeira de origem desconhecida é serrada e somada à produção legal que está documentada. É mais uma brecha para que a madeira sem exploração autorizada entre no sistema legal”, aponta Malu Villela, coordenadora da rede amigos da amazônia. [2]
[2] Rede coordenada pelo Centro de Estudos em Administração Pública e governo da FGV (GVceapg), tem como objetivos produzir conhecimento sobre modelos sustentáveis para a Amazônia, monitorar políticas e práticas e ampliar o diálogo entre empresas, governos e sociedade civil sobre o assunto
Há ainda outra dificuldade. A maioria dos estados brasileiros utiliza o sistema DOF, que é federal, enquanto Pará e Mato Grosso adotam o Sisflora – que tem algumas características que não correspondem às informações do DOF –, o que prejudica o rastreamento de informações entre o estado produtor e o consumidor da madeira.
Sem a fiscalização efetiva, essas fraudes não são detectadas. Um dos principais problemas é a falta de pessoal treinado para identificar a falsificação dos documentos, diz Malu. Segundo ela, há apenas três policiais federais com a especialização necessária trabalhando em todo o Pará. “Há muitas espécies de árvores semelhantes comercializadas no Brasil. Sem preparo adequado, o policial pode não saber checar se as características apontadas no DOF correspondem à carga fiscalizada nas estradas”, explica.
Juntes-se a isso o sistema de propina. No final de 2010, oito servidores da Secretaria do Meio Ambiente do Pará foram presos por integrarem um esquema de suborno envolvendo desmatamento ilegal. O diretor do Centro de Programas de Uso Sustentável da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, Carlos Beduschi, confirma que já presenciou casos de fiscais paulistas que encontraram cargas irregulares aprovadas anteriormente por postos fora do estado.
Procurado pela reportagem, o Ibama assume a deficiência de pessoal nos trabalhos de orientação e fiscalização da atividade. “Faltam definição formal de um plano de carreira e concursos para contratar mais gente habilitada a tratar desses rastreamentos. Ainda atuamos com técnicos contratados por curto espaço de tempo e há troca frequente de profissionais capacitados, prejudicando os trabalhos”, diz Carlos Fabiano, coordenador-geral de Autorização do Uso da Flora e Floresta da Diretoria de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas do órgão.
Já as Secretarias de Meio Ambiente do Pará e de Mato Grosso não responderam aos pedidos de entrevista até o fechamento desta edição.
O Brasil é o maior consumidor de madeira no mundo. E, com os grandes projetos como Copa do Mundo, Olimpíadas e programas habitacionais como Minha Casa, Minha Vida, essa quantidade tende a aumentar e tornar o governo o principal comprador de madeira no País. Como garantir que os próprios órgãos públicos compram apenas madeira de origem legal?
TENTATIVAS DE COMBATE
Armelin, do WWF-Brasil, cita o estado de São Paulo, maior consumidor de madeira do Brasil, como caso de sucesso de aprimoramento dos sistemas de rastreamento. O governo do estado criou o Cadmadeira – um cadastro estadual das pessoas jurídicas que comercializam madeira nativa dentro do estado – para aumentar a transparência e controle das compras públicas, e orientar as empresas a se regularizarem. Metade dos empresários que inicia o cadastro consegue a regularização e recebe um selo.
“Boa parte desses empresários não está regular por falta de especialização sobre as regras e os requisitos para atividade legal. Além de fiscalizar e punir, é papel do governo conduzi-los à atividade regulamentada, por isso também orientamos sobre como se regularizar”, diz Carlos Beduschi, da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo.
O mecanismo é regulamentado pelo Decreto no 53.047, de 2008, segundo o qual as empresas que comercializam madeira no Estado devem estar cadastradas no Cadmadeira. Mas não é possível garantir que todos respeitem a regra. “É difícil saber se todas as entidades que pertencem ao governo do estado estão cumprindo essa determinação. Não posso responder se todas já estão comprando via Cadmadeira”, afirma Beduschi.
A Caixa Econômica Federal é um dos principais agentes financeiros da construção civil no País e criou um mecanismo para favorecer a compra de madeira rastreada, o Ação Madeira Legal, que consiste na exigência de documentação que comprove a regularidade da origem e transporte da madeira utilizada em projetos financiados. Questionada se todos os contratos financiados participam da ação, a Caixa não respondeu a Página22. Apenas informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que o projeto visa incentivar “o mercado madeireiro responsável, desestimulando os desmatamentos”.
Uma crítica comum entre os empresários do setor é a lentidão dos processos de concessões públicas das florestas, ou seja, o direito de manejar a área que pertence à União. A Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, por exemplo, assinou os primeiros contratos em setembro de 2008, mas a atividade madeireira de fato começou apenas dois anos depois, segundo o Serviço Florestal Brasileiro (SFB).
“A regulamentação da Lei de Gestão de Florestas Públicas foi demorada”, admite o diretor-geral do SFB, Antônio Carlos Hummel. “Mas melhorar a eficiência e eficácia de todo o processo é uma meta do SFB. Podemos, por exemplo, reduzir o tempo de aprovação do plano de manejo florestal sustentável e do Plano Operacional Anual. O cidadão tem todo o direito de cobrar do Estado melhoria dos serviços públicos, e isso inclui a concessão florestal”, justifica.
Ainda como forma de combater a ilegalidade, uma saída é estimular a certificação, que assegura o cumprimento de critérios socioambientais no processo produtivo, mas tem custos que tornam o produtor ilegal muito mais competitivo em termos de preço.
“A madeira certificada acaba sendo naturalmente mais cara e perde incentivo para produzir corretamente na competição de custos”, afirma Fabiola Zerbini, secretária-executiva do FSC Brasil.
Quem trabalha de forma ilegal em média tem metade dos custos em relação à legalidade, explica Waack, da Amata. No entanto, o valor de mercado de seu produto é equivalente aos custos de produção, o que torna concorrência econômica inviável a quem atua de forma legal.
O consumidor pode contribuir no combate a esse problema dando preferência a produtos de madeira certificada. Infelizmente, a falta de conscientização ainda é grande, segundo Rosângela Guimarães, diretora-executiva da Cikel, uma empresa de Curitiba que também atua na área de manejo florestal. “As pessoas compram madeira pouco preocupadas com sua procedência. O mercado não diferencia quem possui selo verde de quem não tem. O que define a compra, no final, é o preço e a qualidade.”