Por André Carvalho
Em tempos de louvação ao livre-comércio, parece não haver alternativa aos países não desenvolvidos que não a de ecoar, em uníssono, o refrão da liberalização comercial como única esperança de desenvolvimento de suas economias, em um quadro internacional em que predominam as cores da integração global de cadeias produtivas e de mercados financeiros.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a expansão do comércio internacional é inegável: de acordo com a Organização Mundial de Comércio (OMC), entre o início da década de 1950 e o ano de 2005, as exportações mundiais de mercadorias cresceram cerca de 120 vezes, em valores correntes, de aproximadamente US$ 100 bilhões para um patamar de US$ 10 trilhões, desconsiderando- se nesses números o comércio internacional
De serviços. Ao longo desse período de expansão vertiginosa, a Europa manteve-se como principal exportador de mercadorias e a Ásia se consolidou como o segundo bloco exportador de mercadorias já no início da década de 1990 (gráfi co abaixo).
A expansão do comércio internacional relaciona-se a questões ambientais na medida em que as atividades econômicas se baseiam na conversão de recursos naturais em matéria-prima de processos produtivos, em energia, ou em recipiente para o descarte dos resíduos gerados nessas atividades.
Além disso, o acesso aos recursos naturais é fundamental às atividades econômicas de qualquer nação. Mas tão importante quanto o acesso é a forma como ele se dá. O comércio pode trazer benefícios ao meio ambiente, por exemplo, ao refl etir nos processos produtivos os padrões ambientais de consumidores mais sensíveis a questões ambientais. A relação pode ser negativa, contudo, se resultar em depleção desmedida de um recurso natural por conta do crescimento do fluxo comercial.
No início de 2007, as questões ambientais ganharam destaque nas esferas de discussão sobre comércio internacional. Logo após a divulgação da versão preliminar do quarto relatório de avaliação da saúde da atmosfera produzido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, afi rmou que “o comércio e, portanto, a OMC devem ser desenhados de forma a proporcionar desenvolvimento sustentável”. A frase foi dita no Fórum Global do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) realizado em Nairóbi.
Dias depois, a União Européia anunciou a decisão de incluir critérios ambientais em todos os acordos comerciais que se encontram em negociação. A iniciativa responde a pressões tanto de ONGs ambientais quanto de empresas que atribuem às exigências mais brandas de proteção ambiental a competitividade de alguns setores produtivos de países em desenvolvimento.
A lista de países envolvidos nessas negociações em curso inclui Índia, Coréia do Sul e nações da Comunidade Andina e da América Central, mas o recado serve também a nosotros, em especial, ao agronegócio exportador instalado no Mercosul, questionado por conta da não internalização de passivos ambientais ao longo da cadeia produtiva, o que pode ser entendido como dumping ambiental. Buscando amainar a fumaça, mas não o fogo, a diplomacia brasileira se apressou em declarar que não aceitará a inclusão de questões ambientais na agenda de negociações do acordo comercial entre União Européia e o Mercosul.
O exemplo recente de disputa comercial adornada por questões ambientais pode parecer uma novidade catalisada pela maior exposição do tema no período imediatamente posterior à divulgação de dados pelo IPCC, marcado ainda pela dupla premiação do documentário Uma Verdade Inconveniente na noite de entrega do Oscar. Porém, a disputa é apenas mais um interlúdio em um longo enredo que se desenrola desde 1991, quando o Grupo sobre Medidas Ambientais e Comércio Internacional (Emit) do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) se reuniu pela primeira vez, 20 anos após sua criação oficial.
Em seus mais recentes capítulos, o enredo explicita a consolidação de uma nova forma de protecionismo por parte dos países desenvolvidos, marcado pela aplicação de medidas sanitárias, fi tossanitárias e de proteção ambiental a produtos alimentícios.
Para os países não desenvolvidos, a inclusão da temática ambiental é mera encenação que tem como objetivo compensar setores agroindustriais de forma dissimulada, em um período em que o tema do protecionismo agrícola é reconhecido como um dos principais entraves ao avanço da Rodada de Doha, no âmbito da OMC.
Como o foco principal das negociações multilaterais referentes à agricultura está na redução dos subsídios e das tarifas alfandegárias praticadas pelos países desenvolvidos, a emergência da preocupação ambiental, em uma visão simplifi cadora, signifi ca nada mais do que uma nova estratégia protecionista daqueles que conclamam o mundo à liberalização comercial.
O debate sobre o grau de dissimulação da preocupação ambiental desse ou daquele país pode ser um
experimento sociológico tão lúdico quanto inconcluso, ainda mais se levarmos em conta o que o poeta piauiense Torquato Neto postulou como a melhor maneira de se identificar a raça humana: “Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”. Distinguir quem finge, neste caso, é um tema irrelevante diante da urgência da questão ambiental.
É certo que, em relação ao meio ambiente, todos os países são livres para estabelecer suas legislações de proteção e conservação, atendendo aos interesses nacionais e ao desejo de suas sociedades. Na medida em que as leis nacionais interferem direta ou indiretamente nos fluxos de comércio internacional, sobrepõe-se ao espaço de autonomia da legislação ambiental a zona de influência dos princípios e acordos da OMC. É nessa zona nebulosa que se busca saber até que ponto a legislação ambiental, ou um padrão que a reflita, pode funcionar como barreira técnica injustifi cada ao comércio internacional.
Não seria um devaneio, contudo, afirmar que a questão ambiental ainda não passou de moeda de troca no sistema multilateral de comércio, o que parece fazer todo sentido quando se leva em conta que tal espaço é, por defi nição, de negociação.
Mas uma percepção distinta pode afl orar se for considerado que já no preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC—criada em 1995, ou seja, após a Rio-92—reconhece- se que “(…) as relações na esfera comercial e econômica devem ser conduzidas de forma a elevar os padrões de vida, assegurando o pleno emprego e um abundante e constante crescimento de renda e demanda efetiva, expandindo a produção e o comércio de bens e serviços, permitindo ao mesmo tempo a utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo do desenvolvimento sustentável, buscando proteger e preservar o meio ambiente, fazendo-o de forma adequada às respectivas necessidades e interesses dos diferentes níveis de desenvolvimento econômico.”
Deve-se levar em conta que a OMC não é, nem pretende ser, uma agência de proteção ambiental. É difícil compreender, porém, como o comércio internacional pode ser um meio para que os países que operam no sistema multilateral caminhem em direção ao desenvolvimento sustentável se os métodos e processos empregados na produção de uma mercadoria qualquer só podem ser objeto de restrições comerciais quando relacionados a impactos ambientais gerados pelo seu consumo.
Validar restrições comerciais baseadas em atributos de uma mercadoria e não considerar barreiras fundamentadas em exigências sobre os métodos e processos utilizados em sua produção signifi ca dizer que o modo de se fazer um produto é indiferente.
Por essa lógica, uma prancha de madeira obtida através de práticas de manejo fl orestal é a mesma coisa que outra cuja origem é o desmatamento ilegal, já que as externalidades ambientais resultantes do consumo do
produto, no país-destino, são as mesmas.
Mesmo considerando que nesses casos os rótulos ambientais, como o do Forest Stewardship Council (FSC), desempenham uma importante função, deixando ao consumidor fi nal a opção de diferenciação, deve-se perceber que esta é uma alternativa de mercado e não uma abordagem institucional da OMC.
Assume-se, assim, que, embora vivamos em um mundo ecologicamente interconectado, padrões ambientais menos rigorosos podem ser aceitos desde que em regiões distantes dos países desenvolvidos. A política do not in my backyard justifi ca, por exemplo, a exportação de pneus usados para países não desenvolvidos, como o Brasil – fluxo comercial que certamente não seria permitido na mesma direção, mas com sentido inverso.
Nesse cenário, repleto ou não de dissimulação, o Brasil pode desempenhar papel bastante relevante no que diz respeito ao avanço da discussão ambiental no âmbito do comércio internacional, por quatro motivos, ao menos: (i) cerca de 50% das exportações são baseadas em produtos não industriais ou de baixa tecnologia, ambos intensivos em recursos naturais e mão-de-obra, tendo sido responsável em 2005 por 4% das exportações mundiais de produtos agrícolas; (ii) a alta competitividade brasileira no setor agrícola, especialmente em produtos como cana-de-açúcar e soja, é questionada por conta da não internalização de passivos ambientais ao longo da cadeia produtiva, o chamado dumping ambiental; (iii) o País possui parte signifi cativa da biodiversidade mundial; e (iv) é um dos líderes do G20, reconhecido como ator relevante no âmbito da OMC. Na verdade, o G20 reúne 21 países, nove dos quais exportadores líquidos de produtos agrícolas, com destaque para Brasil, Índia, China e África do Sul.
Aposta contra a banca
A postura do País nesse debate, contudo, remete à posição adotada na Conferência de Estocolmo, em 1972, como se percebe pela declaração do então ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Luis Carlos Guedes Pinto (recém-substituído por Reinhold Stephanes), em entrevista à Folha de S.Paulo, em dezembro de 2006: “Temos problemas, mas não podemos aceitar que aqueles que destruíram os recursos naturais do planeta venham nos dar lição de moral e dizer o que fazer. Se a Amazônia tivesse sido ocupada pelas potências européias, difi cilmente o País teria esses 69,4% de florestas”.
Entende-se a necessidade de defesa dos interesses comerciais do Brasil, ainda mais com a representativa participação na pauta de exportações de setores como os ligados ao agronegócio e à mineração.
Mas reduzir a discussão sobre a interface de temas ambientais e comerciais à mera disputa pelo direito de converter capital natural em capital produzido é abdicar do papel de protagonista na defi nição de modelos de inserção internacional de países não desenvolvidos e plenos em biodiversidade, em troca da função coadjuvante que ajuda a repetir modelos de desenvolvimento que, ainda que tenham obtido sucesso localmente, não o fizeram em nível global.
Em um mundo ecologicamente interconectado, essa postura signifi ca apostar contra a banca, ou, retomando Torquato Neto, acreditar que o homem não berrará, sem dissimulação, na hora do perigo.
André Carvalho é pesquisador do GVces, doutorando e mestre em Administração de Empresas pela EAESP-FGV.