Enquanto o carro for sinônimo de status e liberdade, a mobilidade nos grandes centros urbanos fica comprometida. A boa notícia é que uma pequena (e crescente) parcela da nova geração já se rende menos a esse apelo
O que significa ter um carro? Para grande parte dos brasileiros, status e ascensão social. Em Fé em Deus e Pé na Tábua, Roberto DaMatta assinala que, mais do que buscar comodidade e praticidade, uma pessoa compra um carro para realizar um desejo: “Quando os motoristas falam sobre o processo de dirigir, voltam-se para esse sentimento e acentuam que dirigir se torna um prazer, independentemente das condições em que isso ocorra. Isso se reflete no trânsito do seguinte modo: apesar da consciência e do sentimento de incômodo com os problemas do trânsito, essas questões não chegam a abalar sua relação com o carro e com as implicações decorrentes do ato de dirigir.”
No conforto e isolamento do carro, o motorista tem a impressão de liberdade, de ir e vir escolhendo seu caminho. Há também a falsa sensação de segurança. Esse ponto em específico parece ser determinante para o comportamento do motorista no trânsito. Afinal, “como é que um Zé da Silva, um sujeito pacífico, pacato, religioso e incapaz de matar uma mosca, como naquele famoso desenho do Pateta, transformava-se num auto- mobilista agressivo e cruel?”, indaga DaMatta.
Thiago Benicchio, diretor da Ciclocidade [1] , lembra que o carro não consegue atingir plenitude no ambiente urbano. “Aí entra a questão psicofisiobiológica de certa síndrome de castração que a pessoa tem ao usar o carro.
[1] Organização que promove a mobilidade e o uso da bicicleta como instrumento de transformação.
Esse veículo estimula a rapidez, e você tem que refrear continuamente esse impulso. O motorista é vítima também, passa todo esse tempo no trânsito eternamente angustiado, e não precisa ser psicopata para descontar em alguém.”
LIBERDADE É OUTRA COISA
Por este e outros motivos, nos Estados Unidos, pesquisas mostram jovens menos interessados nos automóveis, pois o entendimento de liberdade hoje passa pela conectividade, pelas redes sociais, e pelo acesso a informação e bens culturais. A perda de tempo no trânsito também tem levado americanos a optarem por outros modais de deslocamento. (Leia mais no site Outras Palavras)
No Brasil, a maioria dos entrevistados na pesquisa O Sonho Brasileiro enxerga o carro como um vilão que polui e tira espaço da cidade e acredita que a solução está em investimento em transporte público de qualidade. O levantamento foi realizado pela agência de pesquisa Box1824 com milhares de millenials (consumidores nascidos entre 1981 e 2000) sobre sua relação com o País e o que esperam do futuro.
Fenômeno semelhante acontece em São Paulo com o hype das bicicletas, identificado pelos cicloativistas a partir de 2009: “O centro expandido cada vez mais estrangulado fez com que as pessoas que vivem lá, com acesso à mídia e a formadores de opinião, levassem cada vez mais tempo pra se deslocar. Essas pessoas não aguentavam mais ficar dentro do carro, resolveram ousar e usar a bicicleta, o que reverberou na cidade,” analisa Benicchio.
O jornalista Leão Serva e Alexandre Lafer Frankel lançaram recentemente o livro Como Viver em São Paulo Sem Carro, no qual entrevistam pessoas conhecidas que desistiram do transporte exclusivo de carro e descobriram outras formas de mobilidade.
“Quando comecei a participar da bicicletada [2] , vi que a bicicleta era uma ferramenta para discutir a mobilidade em São Paulo,” avalia João Paulo Amaral, do bike anjo . “Muita coisa surgiu agregando ‘tribos’ por causa da bicicleta: o Pedal Verde, que atraiu botânicos e mexeu com arborização; o Bike Anjo, [3] que surgiu em função de acompanhar pessoas na Bicicletada; as Pedalinas, com a questão do direito de a mulher andar na rua sem assédio nem abuso.”
[2] Versão brasileira da internacional Critical Mass, ganhou as ruas de São Paulo e Florianópolis a partir de 2002. A Critical Mass, que completa 20 anos este mês, reivindica as ruas para os ciclistas e para as pessoas
[3] Bike anjos são ciclistas urbanos experientes que voluntariamente ajudam pessoas interessadas em usar a bicicleta como meio de transporte na cidade, com segurança (bikeanjo.com.br)
COBRANÇA POR MELHORIAS
Outro movimento que vem crescendo em São Paulo é o Dia Mundial Sem Carro – prova disso é que a Bicicletada do evento reuniu em 2011 mais de mil pessoas. Segundo Amaral, a edição 2012 traz uma novidade em relação aos anos anteriores, quando a lógica era convidar o indivíduo a deixar o carro em casa. Agora, a intenção é mobilizar as pessoas a cobrar dos responsáveis melhorias no transporte coletivo e na mobilidade, criando condições para que elas deixem os carros em casa.
Para Renata Florentino, do Observatório das Metrópoles, muda-se a lógica mudando costumes e construindo políticas públicas. O tema da mobilidade vem ganhando espaço por dois caminhos: o do direito à cidade, onde estão grupos como a Bicicletada, o Movimento Passe Livre [4] e outros; e o caminho da eficiência, pois trânsito parado gera perdas para a cidade. “A mudança dos costumes pode ser incentivada por políticas públicas, mas começa pela sociedade. Essa mudança já começou, mesmo sendo desestimulada pelas atuais políticas de IPI Zero para automóveis.”
[4] Movimento social brasileiro que tem como uma das principais bandeiras a migração do sistema de transporte privado para um sistema público, com acesso universal por meio do passe livre
O ciclista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP Ricardo Abramovay avalia que “a maneira como o carro é colocado na propaganda é irresponsável. Ele está sempre sozinho, nunca inserido no trânsito da cidade”. Para ele, esses temas precisam ser discutidos não só pelo setor público e pelas pessoas, mas também pelo setor privado.
“Da mesma forma que se mostrou que o cigarro é prejudicial à saúde, o carro nas cidades começa a ser visto assim também. Algumas montadoras já se dão conta disso. Sabem que o modelo tem que mudar, mas estão tirando uma ‘casquinha’ antes de alguém tomar uma decisão política, diz.”[:en]Enquanto o carro for sinônimo de status e liberdade, a mobilidade nos grandes centros urbanos fica comprometida. A boa notícia é que uma pequena (e crescente) parcela da nova geração já se rende menos a esse apelo
O que significa ter um carro? Para grande parte dos brasileiros, status e ascensão social. Em Fé em Deus e Pé na Tábua, Roberto DaMatta assinala que, mais do que buscar comodidade e praticidade, uma pessoa compra um carro para realizar um desejo: “Quando os motoristas falam sobre o processo de dirigir, voltam-se para esse sentimento e acentuam que dirigir se torna um prazer, independentemente das condições em que isso ocorra. Isso se reflete no trânsito do seguinte modo: apesar da consciência e do sentimento de incômodo com os problemas do trânsito, essas questões não chegam a abalar sua relação com o carro e com as implicações decorrentes do ato de dirigir.”
No conforto e isolamento do carro, o motorista tem a impressão de liberdade, de ir e vir escolhendo seu caminho. Há também a falsa sensação de segurança. Esse ponto em específico parece ser determinante para o comportamento do motorista no trânsito. Afinal, “como é que um Zé da Silva, um sujeito pacífico, pacato, religioso e incapaz de matar uma mosca, como naquele famoso desenho do Pateta, transformava-se num auto- mobilista agressivo e cruel?”, indaga DaMatta.
Thiago Benicchio, diretor da Ciclocidade [1] , lembra que o carro não consegue atingir plenitude no ambiente urbano. “Aí entra a questão psicofisiobiológica de certa síndrome de castração que a pessoa tem ao usar o carro.
[1] Organização que promove a mobilidade e o uso da bicicleta como instrumento de transformação.
Esse veículo estimula a rapidez, e você tem que refrear continuamente esse impulso. O motorista é vítima também, passa todo esse tempo no trânsito eternamente angustiado, e não precisa ser psicopata para descontar em alguém.”
LIBERDADE É OUTRA COISA
Por este e outros motivos, nos Estados Unidos, pesquisas mostram jovens menos interessados nos automóveis, pois o entendimento de liberdade hoje passa pela conectividade, pelas redes sociais, e pelo acesso a informação e bens culturais. A perda de tempo no trânsito também tem levado americanos a optarem por outros modais de deslocamento. (Leia mais no site Outras Palavras)
No Brasil, a maioria dos entrevistados na pesquisa O Sonho Brasileiro enxerga o carro como um vilão que polui e tira espaço da cidade e acredita que a solução está em investimento em transporte público de qualidade. O levantamento foi realizado pela agência de pesquisa Box1824 com milhares de millenials (consumidores nascidos entre 1981 e 2000) sobre sua relação com o País e o que esperam do futuro.
Fenômeno semelhante acontece em São Paulo com o hype das bicicletas, identificado pelos cicloativistas a partir de 2009: “O centro expandido cada vez mais estrangulado fez com que as pessoas que vivem lá, com acesso à mídia e a formadores de opinião, levassem cada vez mais tempo pra se deslocar. Essas pessoas não aguentavam mais ficar dentro do carro, resolveram ousar e usar a bicicleta, o que reverberou na cidade,” analisa Benicchio.
O jornalista Leão Serva e Alexandre Lafer Frankel lançaram recentemente o livro Como Viver em São Paulo Sem Carro, no qual entrevistam pessoas conhecidas que desistiram do transporte exclusivo de carro e descobriram outras formas de mobilidade.
“Quando comecei a participar da bicicletada [2] , vi que a bicicleta era uma ferramenta para discutir a mobilidade em São Paulo,” avalia João Paulo Amaral, do bike anjo . “Muita coisa surgiu agregando ‘tribos’ por causa da bicicleta: o Pedal Verde, que atraiu botânicos e mexeu com arborização; o Bike Anjo, [3] que surgiu em função de acompanhar pessoas na Bicicletada; as Pedalinas, com a questão do direito de a mulher andar na rua sem assédio nem abuso.”
[2] Versão brasileira da internacional Critical Mass, ganhou as ruas de São Paulo e Florianópolis a partir de 2002. A Critical Mass, que completa 20 anos este mês, reivindica as ruas para os ciclistas e para as pessoas
[3] Bike anjos são ciclistas urbanos experientes que voluntariamente ajudam pessoas interessadas em usar a bicicleta como meio de transporte na cidade, com segurança (bikeanjo.com.br)
COBRANÇA POR MELHORIAS
Outro movimento que vem crescendo em São Paulo é o Dia Mundial Sem Carro – prova disso é que a Bicicletada do evento reuniu em 2011 mais de mil pessoas. Segundo Amaral, a edição 2012 traz uma novidade em relação aos anos anteriores, quando a lógica era convidar o indivíduo a deixar o carro em casa. Agora, a intenção é mobilizar as pessoas a cobrar dos responsáveis melhorias no transporte coletivo e na mobilidade, criando condições para que elas deixem os carros em casa.
Para Renata Florentino, do Observatório das Metrópoles, muda-se a lógica mudando costumes e construindo políticas públicas. O tema da mobilidade vem ganhando espaço por dois caminhos: o do direito à cidade, onde estão grupos como a Bicicletada, o Movimento Passe Livre [4] e outros; e o caminho da eficiência, pois trânsito parado gera perdas para a cidade. “A mudança dos costumes pode ser incentivada por políticas públicas, mas começa pela sociedade. Essa mudança já começou, mesmo sendo desestimulada pelas atuais políticas de IPI Zero para automóveis.”
[4] Movimento social brasileiro que tem como uma das principais bandeiras a migração do sistema de transporte privado para um sistema público, com acesso universal por meio do passe livre
O ciclista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP Ricardo Abramovay avalia que “a maneira como o carro é colocado na propaganda é irresponsável. Ele está sempre sozinho, nunca inserido no trânsito da cidade”. Para ele, esses temas precisam ser discutidos não só pelo setor público e pelas pessoas, mas também pelo setor privado.
“Da mesma forma que se mostrou que o cigarro é prejudicial à saúde, o carro nas cidades começa a ser visto assim também. Algumas montadoras já se dão conta disso. Sabem que o modelo tem que mudar, mas estão tirando uma ‘casquinha’ antes de alguém tomar uma decisão política, diz.”