No processo de evolução civilizatória, partidos que se embasam na sustentabilidade podem recolocar em nosso senso ético o respeito à natureza, perdido no século XIX
“A maior medida do século XIX. Aprovada por meio de corrupção, com a cumplicidade do homem mais puro da América”, disse ao final do filme Lincoln [1] o personagem que interpreta Thaddeus Stevens [2] . O longa-metragem mostra como Abraham Lincoln – que presidiu os Estados Unidos de 1861 a abril de 1865, quando foi assassinado – faz de tudo (de lobby à venda de cargos) para que os congressistas aprovem a emenda que aboliu a escravidão naquele país, em abril de 1865.
[1] Lançado em 2012, o filme, apesar de favorito, ganhou apenas dois prêmios no Oscar 2013 – o de melhor ator, para Daniel Day-Lewis, e o de melhor design de produção
[2] Stevens foi líder da facção radical do Partido Republicano e um dos maiores apoiadores da abolição da escravatura. No filme, é interpretado por Tommy Lee Jones
Poderíamos condenar Lincoln por usar artifícios imorais [3] para alterar a ordem ética [4] vigente (da escravidão), mas seu posicionamento é complexo, porque, para ele, imoral era aceitar a existência de escravos. A noção que a humanidade tem sobre ética é datada, situada em um momento histórico e é aprendida e modificada, visto que, de tempos em tempos, indivíduos e grupos se colocam contra a ordem vigente. Daí surgem reflexões e revoluções, como no caso do fim da escravidão, que, de país em país, aconteceu no mundo todo.
Grupos que lutam pelos direitos humanos são exemplos desses atores sociais que revolucionam. A eles devemos as conquistas pelos direitos das mulheres e dos gays, por exemplo, ao longo do século XX. De algumas décadas para cá, os ambientalistas entraram nesse rol que dissemina ideias sobre como deveríamos cuidar do espaço em que moramos e questionam éticas vigentes, hábitos e estilos de vida que eram, até então, inquestionáveis.
[3] Moral é a prática da ética. Está na consciência e ação dos indivíduos, que podem segui-la ou ser imorais
[4] Ética: conjunto de valores e princípios coletivos que regem a conduta social. Não existe ética individual ou universal
Para o filósofo Mario Sergio Cortella, professor da Fundação Dom Cabral, a relação das sociedades ocidentais com a natureza mudou após o século XIX, quando a humanidade viveu – e causou – uma explosão de conhecimento científico. Foi a época de conquistas territoriais, como a do Oeste dos Estados Unidos e a da África, do desenvolvimento da energia elétrica, da telefonia e dos motores, entre outros exemplos. “O homem se deu conta de que poderia conquistar todos os lugares. O mundo virou propriedade nossa e passou a ser para nós”, diz Cortella.
A reverência à natureza tornou-se cada vez menos comum, já que tudo era explicado pela razão científica. “Antes, era um hábito que, a cada refeição, as famílias agradecessem pelo alimento servido e jamais permitiam sobras no prato. Hoje, a fartura – que beira o exagero – retirou nosso cuidado até com o alimento”, exemplifica Cortella. E completa: “Perdemos a reverência com a natureza e, com isso, o respeito e a noção de nosso potencial destruidor”.
Na visão de Cortella, partidos com base na sustentabilidade, ao levar esse assunto para a esfera política, promovem uma “sacudida em nossas certezas aquietadas”. Caberia a esses partidos recolocar o respeito à natureza em nosso senso ético. Segundo Roberto Romano, também filósofo e professor de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não há mudança moral e ética sem crise. “São em situações-limite da vida social que propostas de renovação de comportamento aparecem”, diz.
Pelo menos três momentos nos últimos séculos podem ser apontados como esquinas que mudaram a ética do Ocidente. Durante o Renascimento [5] (séculos XIV a XVII), rompeu-se a ideia de que, para uma sociedade ser moralmente correta, precisaria ser necessariamente religiosa.
No fim do século XVIII, a Revolução Francesa substituiu a monarquia pelo regime republicano e imortalizou sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [6], que continha a noção de igualdade entre os homens e a liberdade de opinião.
[5] Período marcado pela valorização do pensamento racional e da ciência e pelo papel central do homem no mundo, antes submetido aos desígnios divinos
[6] Os artigos referentes dizem: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As destinações sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum” e “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”
Outro documento considerado um marco no pensamento da ética foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), como resultado do pesadelo vivido pelo mundo na Segunda Guerra Mundial. “Governos autoritários, como na Alemanha nazista, entendiam que algumas pessoas eram destituídas de sua condição humana. Quando o mundo se deu conta do absurdo que era aquilo, reagiu e foi estabelecido um padrão de relacionamento dos Estados com os cidadãos e dos cidadãos entre si”, explica Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. (mais em Entrevista “O bottom line da ética)
De acordo com ele, a Declaração fez da luta pelos direitos humanos uma “âncora moral do século XX”. Como os direitos humanos são a expressão de um movimento ético e a ética muda, esse documento não será completamente válido para sempre. “Nem espero isso”, reforça Vilhena.
É o caso dos direitos de crianças e adolescentes. A Declaração da ONU considera a proteção aos direitos de todos, porém menores de idade não eram considerados sujeitos de direito na época em que o documento foi aprovado pelos países, e sim responsabilidade dos pais. Nada se previa contra pais e responsáveis que batiam nas crianças e não as deixavam estudar para que trabalhassem. A condição dos menores só muda com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada em novembro de 1989, que torna obrigatória a matrícula e a manutenção da criança na escola pelos pais. Torna-se um direito básico dela. “Daqui a 50 anos, teremos outras percepções de direitos e deveres. Talvez com os direitos dos animais”, diz Vilhena.
JOGO LIMPO
Vivemos hoje o momento mais democrático da história da humanidade. Como escreveu Renato Janine Ribeiro no livro Política para não ser idiota, passamos de uma Antiguidade em que poucos habitantes de fato viviam na democracia (que excluía mulheres, escravos e estrangeiros) para um “contexto em que metade do mundo vive em ambiente democrático, e a expansão das democracias parece estar continuando”.
Ainda assim, Cortella, coautor do livro, afirma em entrevista à Página22 que a democracia brasileira tem problemas em relação à ética, entre outros motivos por ser uma democracia muito jovem. (A democracia foi um tema explorado pelo cientista político Fernando Abrucio na entrevista “Devagar e Sempre”, publicada na edição 40)
Romano concorda e lembra que por aqui nunca houve uma “revolução democrática”. O País foi Colônia, esteve dominado pela aristocracia até o fim do Império e até hoje possui parte de seu território submisso a oligarquias. Nossa história também é farta de coronelismo, governos ditatoriais e golpes de Estado.
“Como é que poderíamos resolver problemas democráticos com remédios não democráticos?”, questiona. Para Romano, por muito tempo o brasileiro foi submisso ao Estado e temeroso a ele, que tinha poder de prender arbitrariamente, exilar e torturar. Isso teria subtraído da população a possibilidade de amadurecer politicamente.
Um dos problemas da falta de ética por parte de muitos políticos, segundo o professor da Unicamp, é que ainda vivemos uma “ética do Absolutismo”. Nela aqueles que estão dentro do aparelho do Estado comportam-se como superiores aos cidadãos comuns. E falta prestação de contas e responsabilização das autoridades por seus atos nos Três Poderes.
Existe um princípio fundamental para a ética política, difundido em países desenvolvidos, chamado accountability, que significa a responsabilização dos governantes diante dos governados. Foi criado, no século XVII, após a Revolução Puritana na Inglaterra [7], e instituiu a prestação de contas dos reis absolutistas sobre seu trabalho e dinheiro. Até então, eles só “prestavam contas a Deus”, visto que seriam seus representantes na Terra. Hoje, isso cabe aos servidores públicos e chefes de governo, que precisam provar sua idoneidade e ser afastados quando há suspeitas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o U. S. Government Accountability Office é o órgão auxiliar do Congresso que examina o trabalho dos políticos.
[7] Ocorrida durante a Guerra Civil (1642- 1651), quando o Parlamento enfrentou o rei Carlos I, que foi decapitado pelos republicanos em 1649
“A accountability estabeleceu o princípio do Estado democrático moderno, mas é algo que nós, brasileiros, não conhecemos”, lamenta Romano. “Caminhamos a passos lentos nesse tema.” As leis da Transparência Pública, da Improbidade Administrativa e da Ficha Limpa constituem, para Romano, o início da fiscalização dos políticos. Espera-se que atuem com maior correção.
Inserir a ética na política é um discurso há muito difundido, seja em campanhas eleitorais, seja na criação de novos partidos ou em análises filosóficas e políticas. Parece que há sempre alguém (ou alguns) tentando provar que, desta vez, a ética vai imperar. Essa sensação de ciclos não é em vão. Desde o primeiro governo de Getulio Vargas, iniciado em 1930, os movimentos de oposição levantam, entre outras, a bandeira da correção nas instituições públicas.
No fim da Era Vargas, uma parcela da classe média urbana organizou-se em torno da União Democrática Nacional, a UDN. Em 1964, em defesa do golpe militar estava o discurso de que o novo governo acabaria com os corruptos. A corrupção permaneceu e a oposição, insatisfeita com a forma de governar, uniu-se no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em 1966.
Na campanha à Presidência da República em 1989, Fernando Collor de Mello ficou conhecido como “o Caçador de Marajás”, que pretendia acabar com os altos e desproporcionais salários de uma elite do funcionalismo público. A ética também foi uma das principais bandeiras de Lula, quando concorreu e venceu as eleições presidenciais de 2002 pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “Mas esses movimentos de mãos limpas nunca resistiram à chegada ao poder”, afirma Roberto Romano.
PARA NÃO SER IDIOTA
Uma das soluções para manter a qualidade da política e dos políticos é educação e qualificação, segundo os entrevistados. “Política não é só partido. Fazemos política ao ir à reunião de condomínio, ao jogar óleo de cozinha na pia sabendo que isso vai gerar poluição, ao colar na prova. E ao não fazer essas coisas também”, diz Mario Sergio Cortella.
Na Grécia Antiga, chamava-se de idiótes aqueles que só se preocupavam com sua vida privada, sem interesse na vida pública e na política. É essa a razão do nome do livro Política para não ser idiota. “Mudamos o significado dessa palavra e precisamos reinvertê-lo”, ensina Cortella a Página22.
Em outro trecho do livro, ele explica: “(…) na escola, não conseguimos fazer com que o jovem se encante com a política sem contar a presença do adversário, do inimigo. Existe um asco pela política, pois ela é associada à política partidária de acordos espúrios e da corrupção”.
De tempos em tempos, mudamos a ética e a noção de moral de nossas sociedades. Apesar de alguns tropeços, caminhamos. É preciso pessoas corajosas, como Abraham Lincoln, revoluções que acabem com equívocos históricos como a escravidão e muitas páginas nos livros de História para entender como e por que o homem é o que é.[:en]No processo de evolução civilizatória, partidos que se embasam na sustentabilidade podem recolocar em nosso senso ético o respeito à natureza, perdido no século XIX
“A maior medida do século XIX. Aprovada por meio de corrupção, com a cumplicidade do homem mais puro da América”, disse ao final do filme Lincoln [1] o personagem que interpreta Thaddeus Stevens [2] . O longa-metragem mostra como Abraham Lincoln – que presidiu os Estados Unidos de 1861 a abril de 1865, quando foi assassinado – faz de tudo (de lobby à venda de cargos) para que os congressistas aprovem a emenda que aboliu a escravidão naquele país, em abril de 1865.
[1] Lançado em 2012, o filme, apesar de favorito, ganhou apenas dois prêmios no Oscar 2013 – o de melhor ator, para Daniel Day-Lewis, e o de melhor design de produção
[2] Stevens foi líder da facção radical do Partido Republicano e um dos maiores apoiadores da abolição da escravatura. No filme, é interpretado por Tommy Lee Jones
Poderíamos condenar Lincoln por usar artifícios imorais [3] para alterar a ordem ética [4] vigente (da escravidão), mas seu posicionamento é complexo, porque, para ele, imoral era aceitar a existência de escravos. A noção que a humanidade tem sobre ética é datada, situada em um momento histórico e é aprendida e modificada, visto que, de tempos em tempos, indivíduos e grupos se colocam contra a ordem vigente. Daí surgem reflexões e revoluções, como no caso do fim da escravidão, que, de país em país, aconteceu no mundo todo.
Grupos que lutam pelos direitos humanos são exemplos desses atores sociais que revolucionam. A eles devemos as conquistas pelos direitos das mulheres e dos gays, por exemplo, ao longo do século XX. De algumas décadas para cá, os ambientalistas entraram nesse rol que dissemina ideias sobre como deveríamos cuidar do espaço em que moramos e questionam éticas vigentes, hábitos e estilos de vida que eram, até então, inquestionáveis.
[3] Moral é a prática da ética. Está na consciência e ação dos indivíduos, que podem segui-la ou ser imorais
[4] Ética: conjunto de valores e princípios coletivos que regem a conduta social. Não existe ética individual ou universal
Para o filósofo Mario Sergio Cortella, professor da Fundação Dom Cabral, a relação das sociedades ocidentais com a natureza mudou após o século XIX, quando a humanidade viveu – e causou – uma explosão de conhecimento científico. Foi a época de conquistas territoriais, como a do Oeste dos Estados Unidos e a da África, do desenvolvimento da energia elétrica, da telefonia e dos motores, entre outros exemplos. “O homem se deu conta de que poderia conquistar todos os lugares. O mundo virou propriedade nossa e passou a ser para nós”, diz Cortella.
A reverência à natureza tornou-se cada vez menos comum, já que tudo era explicado pela razão científica. “Antes, era um hábito que, a cada refeição, as famílias agradecessem pelo alimento servido e jamais permitiam sobras no prato. Hoje, a fartura – que beira o exagero – retirou nosso cuidado até com o alimento”, exemplifica Cortella. E completa: “Perdemos a reverência com a natureza e, com isso, o respeito e a noção de nosso potencial destruidor”.
Na visão de Cortella, partidos com base na sustentabilidade, ao levar esse assunto para a esfera política, promovem uma “sacudida em nossas certezas aquietadas”. Caberia a esses partidos recolocar o respeito à natureza em nosso senso ético. Segundo Roberto Romano, também filósofo e professor de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não há mudança moral e ética sem crise. “São em situações-limite da vida social que propostas de renovação de comportamento aparecem”, diz.
Pelo menos três momentos nos últimos séculos podem ser apontados como esquinas que mudaram a ética do Ocidente. Durante o Renascimento [5] (séculos XIV a XVII), rompeu-se a ideia de que, para uma sociedade ser moralmente correta, precisaria ser necessariamente religiosa.
No fim do século XVIII, a Revolução Francesa substituiu a monarquia pelo regime republicano e imortalizou sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [6], que continha a noção de igualdade entre os homens e a liberdade de opinião.
[5] Período marcado pela valorização do pensamento racional e da ciência e pelo papel central do homem no mundo, antes submetido aos desígnios divinos
[6] Os artigos referentes dizem: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As destinações sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum” e “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”
Outro documento considerado um marco no pensamento da ética foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), como resultado do pesadelo vivido pelo mundo na Segunda Guerra Mundial. “Governos autoritários, como na Alemanha nazista, entendiam que algumas pessoas eram destituídas de sua condição humana. Quando o mundo se deu conta do absurdo que era aquilo, reagiu e foi estabelecido um padrão de relacionamento dos Estados com os cidadãos e dos cidadãos entre si”, explica Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. (mais em Entrevista “O bottom line da ética)
De acordo com ele, a Declaração fez da luta pelos direitos humanos uma “âncora moral do século XX”. Como os direitos humanos são a expressão de um movimento ético e a ética muda, esse documento não será completamente válido para sempre. “Nem espero isso”, reforça Vilhena.
É o caso dos direitos de crianças e adolescentes. A Declaração da ONU considera a proteção aos direitos de todos, porém menores de idade não eram considerados sujeitos de direito na época em que o documento foi aprovado pelos países, e sim responsabilidade dos pais. Nada se previa contra pais e responsáveis que batiam nas crianças e não as deixavam estudar para que trabalhassem. A condição dos menores só muda com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada em novembro de 1989, que torna obrigatória a matrícula e a manutenção da criança na escola pelos pais. Torna-se um direito básico dela. “Daqui a 50 anos, teremos outras percepções de direitos e deveres. Talvez com os direitos dos animais”, diz Vilhena.
JOGO LIMPO
Vivemos hoje o momento mais democrático da história da humanidade. Como escreveu Renato Janine Ribeiro no livro Política para não ser idiota, passamos de uma Antiguidade em que poucos habitantes de fato viviam na democracia (que excluía mulheres, escravos e estrangeiros) para um “contexto em que metade do mundo vive em ambiente democrático, e a expansão das democracias parece estar continuando”.
Ainda assim, Cortella, coautor do livro, afirma em entrevista à Página22 que a democracia brasileira tem problemas em relação à ética, entre outros motivos por ser uma democracia muito jovem. (A democracia foi um tema explorado pelo cientista político Fernando Abrucio na entrevista “Devagar e Sempre”, publicada na edição 40)
Romano concorda e lembra que por aqui nunca houve uma “revolução democrática”. O País foi Colônia, esteve dominado pela aristocracia até o fim do Império e até hoje possui parte de seu território submisso a oligarquias. Nossa história também é farta de coronelismo, governos ditatoriais e golpes de Estado.
“Como é que poderíamos resolver problemas democráticos com remédios não democráticos?”, questiona. Para Romano, por muito tempo o brasileiro foi submisso ao Estado e temeroso a ele, que tinha poder de prender arbitrariamente, exilar e torturar. Isso teria subtraído da população a possibilidade de amadurecer politicamente.
Um dos problemas da falta de ética por parte de muitos políticos, segundo o professor da Unicamp, é que ainda vivemos uma “ética do Absolutismo”. Nela aqueles que estão dentro do aparelho do Estado comportam-se como superiores aos cidadãos comuns. E falta prestação de contas e responsabilização das autoridades por seus atos nos Três Poderes.
Existe um princípio fundamental para a ética política, difundido em países desenvolvidos, chamado accountability, que significa a responsabilização dos governantes diante dos governados. Foi criado, no século XVII, após a Revolução Puritana na Inglaterra [7], e instituiu a prestação de contas dos reis absolutistas sobre seu trabalho e dinheiro. Até então, eles só “prestavam contas a Deus”, visto que seriam seus representantes na Terra. Hoje, isso cabe aos servidores públicos e chefes de governo, que precisam provar sua idoneidade e ser afastados quando há suspeitas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o U. S. Government Accountability Office é o órgão auxiliar do Congresso que examina o trabalho dos políticos.
[7] Ocorrida durante a Guerra Civil (1642- 1651), quando o Parlamento enfrentou o rei Carlos I, que foi decapitado pelos republicanos em 1649
“A accountability estabeleceu o princípio do Estado democrático moderno, mas é algo que nós, brasileiros, não conhecemos”, lamenta Romano. “Caminhamos a passos lentos nesse tema.” As leis da Transparência Pública, da Improbidade Administrativa e da Ficha Limpa constituem, para Romano, o início da fiscalização dos políticos. Espera-se que atuem com maior correção.
Inserir a ética na política é um discurso há muito difundido, seja em campanhas eleitorais, seja na criação de novos partidos ou em análises filosóficas e políticas. Parece que há sempre alguém (ou alguns) tentando provar que, desta vez, a ética vai imperar. Essa sensação de ciclos não é em vão. Desde o primeiro governo de Getulio Vargas, iniciado em 1930, os movimentos de oposição levantam, entre outras, a bandeira da correção nas instituições públicas.
No fim da Era Vargas, uma parcela da classe média urbana organizou-se em torno da União Democrática Nacional, a UDN. Em 1964, em defesa do golpe militar estava o discurso de que o novo governo acabaria com os corruptos. A corrupção permaneceu e a oposição, insatisfeita com a forma de governar, uniu-se no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em 1966.
Na campanha à Presidência da República em 1989, Fernando Collor de Mello ficou conhecido como “o Caçador de Marajás”, que pretendia acabar com os altos e desproporcionais salários de uma elite do funcionalismo público. A ética também foi uma das principais bandeiras de Lula, quando concorreu e venceu as eleições presidenciais de 2002 pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “Mas esses movimentos de mãos limpas nunca resistiram à chegada ao poder”, afirma Roberto Romano.
PARA NÃO SER IDIOTA
Uma das soluções para manter a qualidade da política e dos políticos é educação e qualificação, segundo os entrevistados. “Política não é só partido. Fazemos política ao ir à reunião de condomínio, ao jogar óleo de cozinha na pia sabendo que isso vai gerar poluição, ao colar na prova. E ao não fazer essas coisas também”, diz Mario Sergio Cortella.
Na Grécia Antiga, chamava-se de idiótes aqueles que só se preocupavam com sua vida privada, sem interesse na vida pública e na política. É essa a razão do nome do livro Política para não ser idiota. “Mudamos o significado dessa palavra e precisamos reinvertê-lo”, ensina Cortella a Página22.
Em outro trecho do livro, ele explica: “(…) na escola, não conseguimos fazer com que o jovem se encante com a política sem contar a presença do adversário, do inimigo. Existe um asco pela política, pois ela é associada à política partidária de acordos espúrios e da corrupção”.
De tempos em tempos, mudamos a ética e a noção de moral de nossas sociedades. Apesar de alguns tropeços, caminhamos. É preciso pessoas corajosas, como Abraham Lincoln, revoluções que acabem com equívocos históricos como a escravidão e muitas páginas nos livros de História para entender como e por que o homem é o que é.