Filmes blockbuster usam estereótipos para retratar a fauna marinha, mas dão pouco espaço para os reais problemas enfrentados nos oceanos. E ainda contribuem para legitimar a destruição de algumas espécies
De um lado, um golfinho órfão que vira o melhor amigo de um adolescente rebelde de férias na Flórida. De outro, um tubarão voraz que ataca duas pessoas em menos de 24 horas, nas praias da Ilha de Amity. Ambos são protagonistas de blockbusters sobre animais marinhos que marcaram gerações e ajudaram a desenvolver sentimentos de simpatia e medo pelos mares e suas criaturas. Mas esses filmes clássicos conseguem promover a reflexão sobre a situação dos oceanos e a necessidade de preservação?
No sucesso de bilheteria Tubarão, o clima de suspense das cenas de ataque é comparável a cenas de assassinato, evidenciando uma imagem negativa dos tubarões. Em oposição a esse retrato da crueldade, a saga Flipper idealiza golfinhos como “animais amigos do homem” e transforma-os em mercadoria de entretenimento. As produções cinematográficas ajudam a formar o imaginário coletivo sobre os “vilões” e “mocinhos” da natureza, mesmo que essa classificação não faça sentido no mundo real. Enquanto isso, a superexploração dos recursos dos oceanos é elemento secundário nas histórias, apesar da preponderância desse fator na mortandade da fauna marinha.
Em tempos de notícias alarmantes sobre o aquecimento global, pouco se discute sobre a degradação dos mares e sua influência sobre a mudança climática (leia mais em “Unindo Norte a Sul”). Da mesma forma, a fauna marinha ainda figura no imaginário coletivo com imagens fictícias, pouco ligadas à importância de cada espécie para o equilíbrio dos biomas.
“Tradicionalmente, os tubarões são vistos na mitologia como encarnações do mal. Assim como as baleias eram vistas como monstros, basta ver a história de Moby Dick”, afirma Rex Weyler, um dos fundadores do Greenpeace, no documentário Sharkwater (veja filme na íntegra na coluna ao lado). Já orcas e golfinhos, animais que foram “domesticados” e são produtos de atrações turísticas milionárias, são espécies valorizadas porque humanos enxergam nelas feições e comportamento similares aos seus.
Ambos os estereótipos – de vilões ou mocinhos – contribuem para desequilíbrios de proporções preocupantes nos ecossistemas marinhos. O mais contundente é a matança de golfinhos, tubarões e baleias, que tem reduzido drasticamente essas populações. E se dá por várias vias: caça dos animais para venda da carne (caso das baleias e golfinhos) e barbatanas de tubarões, captura por pesca de arrasto e para criação em cativeiro. Além de outros fatores, como o esgotamento dos estoques de peixe por conta da pesca industrial, contaminação das águas por lixo doméstico e industrial tóxicos e a degradação dos habitats naturais.
Matança legitimada
Em Tubarão, clássico de Steven Spielberg dos anos 1970, três homens tentam, a qualquer custo, eliminar o animal que ataca os visitantes da ilha Amity. Em narrativas como essa, uma relação extremamente delicada pode ser reduzida a uma saga do herói, em que há bandidos e mocinhos, vencedores e perdedores. Na vida real, porém, tubarões e outros predadores são mais vítimas da ação humana do que o contrário.
No documentário Sharkwater, o mergulhador e biólogo apaixonado por tubarões, Rob Stewart, mostra a importância dessa espécie para o equilíbrio do ecossistema marinho. Eles estão no topo da pirâmide alimentar e vivem na Terra há mais tempo que os dinossauros. “Os tubarões moldaram todas as suas presas ao longo da evolução das espécies”, explica o documentário.
Apesar de parecerem feras indomáveis, esses animais respeitam e temem os seres humanos. No vídeo, Rob comenta a dificuldade em filmar tubarões, que sentem a presença humana à distância e fogem. Entretanto, o que provoca o ataque a seres humanos em praias é quase uma ilusão ótica: tubarões veem humanos na superfície da água batendo os braços e pernas e os confundem com presas machucadas ou se debatendo, já que se alimentam de animais feridos.
Segundo o oceanógrafo da Universidade de São Paulo Frederico Brandini, o aumento na recorrência de ataques a humanos se dá por conta da degradação do habitat natural dos tubarões, que chegam cada vez mais perto das praias para buscar o alimento que acabou em alto-mar.
Hoje, a população de tubarões diminuiu 90%, tornando-os uma das espécies marinhas mais ameaçadas. Sharkwater denuncia os lados dessa tragédia ecológica. De um, a gigante e clandestina indústria de comércio de barbatanas. Do outro, a legitimação da matança pela opinião pública, que não reconhece a importância da espécie. Stewart lamenta a tragédia ecológica: “Nós agora somos os maiores predadores, porque decidimos que espécies vamos aproveitar e quais vamos destruir”.
Tristeza em cativeiro
Todos os anos, milhões de visitantes vão a parques temáticos do mundo inteiro assistir orcas e golfinhos amestrados saltarem com perfeição milimétrica, levantarem treinadores e jogarem água na plateia. É uma amostra de como espécies “amigas do homem” podem servir a uma indústria lucrativa.
Nos documentários The Cove e Blackfish, ex-treinadores de cetáceos revelam o estresse a que esses animais são submetidos em cativeiro. Por trás do aparente sorriso dos golfinhos e das orcas, segundo eles, esconde-se a angústia por ter as liberdades naturais restritas. Além da falta de espaço e desgaste pelo excesso de apresentações, os depoimentos revelam o uso de altas doses de antidepressivos e antibióticos para manter os animais na ativa.
Blackfish dedica-se a desvendar o contexto da morte da treinadora Dawn Brancheau pela orca Tilikum, estrela do parque Sea World (veja trailer ao lado). Gabriela Cowperthwaite, diretora do filme, declara que a frustração e o estresse podem motivar orcas a atacar seres humanos quando estão em cativeiro, apesar de não haver registro desse tipo de comportamento no ambiente selvagem. Ela também pontua que o afeto manifestado pelos espectadores nos shows, por mais positivo que pareça, não faz mais felizes animais de cativeiro, que nasceram para viver em liberdade. “Pode ser que as orcas amem seus treinadores sim, mas isso não significa que elas queiram estar ali, e sim que elas se adaptam à única opção que têm.”
A face mais sombria da mercantilização da imagem desses cetáceos é o tema central de The Cove, rodado no Japão (veja ao lado a versão legendada na íntegra). Uma equipe de cinegrafistas, mergulhadores e ativistas denuncia o esquema de captura e matança de golfinhos na baía japonesa de Taiji. Treinadores de parques do mundo todo vão à cidade escolher golfinhos para apresentações. Em seguida, longe dos olhos estrangeiros, os animais capturados e não escolhidos são mortos por pescadores, que vendem sua carne misturada à carne de baleia. Por estar no topo da cadeia alimentar, a carne de golfinho tem uma concentração tóxica de mercúrio, o que também oferece riscos aos seres humanos.
O Japão é um dos protagonistas quando a pauta é caça de cetáceos. The Cove aborda o lobby criado pelas autoridades do país para justificar a continuidade de caça a golfinhos e baleias. Apesar de a maior parte das nações pertencentes à Convenção Internacional de Baleias se oporem à prática, o Japão lidera o bloco com algumas ilhas caribenhas, cujo apoio é comprado, segundo depoimentos do filme. “A defesa da caça a cetáceos é uma forma de o governo japonês impor sua soberania sobre a interferência internacional ocidental”, aponta o ativista Ric O’Barry. (Leia mais sobre a disputa travada pelo Japão em “Tradição, Baleia e Sustentabilidade”.)
Nos enredos do cinema blockbuster não cabem explicações complexas sobre a natureza. Às relações naturais e necessárias entre espécies para a sobrevivência e defesa do território são atribuídos valores. Mas quem assiste a cenas de ataques de tubarões furiosos no cinema ou a golfinhos se apresentando na televisão pode nunca acessar informações sobre a real situação de degradação do ambiente natural desses animais.
Apesar de a indústria cinematográfica ter uma linguagem própria, com menos espaço para explicações científicas, informações relevantes sobre a degradação dos oceanos não podem ser omitidas nos enredos. Os animais marinhos, que não têm nada a ver a necessidade humana de entretenimento nossas necessidades de entretenimento, agradecem.