Todo santo dia perambulo no meu bairro – um reduto de famílias de classe média encurralado entre três reservas naturais, mas em território plenamente urbano. Ontem, saí de casa com as mãos abanando e voltei com um buquê de dálias, figos, um livro (“Snow”, do novelista turco Orhan Pamuk) e uma cópia do filme de catástrofe reptiliana Jurassic Park. Consegui tudo de graça.
Os figos vieram de uma árvore plantada na calçada – pega quem quiser. Só não completei a feira porque é outono, os tomates, ameixas e blackberries, tão abundantes nestas ruas, já se foram. As dálias vieram de um belo jardim. Sobre um banquinho, a dona colocou uma tesoura de jardineiro e um bilhete: “Sirva-se. Assinado: Mulher das Dálias”. O livro saiu de uma pilha de literatura encalhada, oferecida por um sebo local. A dona do estabelecimento, inclusive, me chamou de longe e avisou da oportunidade. E o DVD estava num monte de objetos arrumados no gramado de uma casa. Tudo de primeira, tudo de graça.
Os tais atos de generosidade que a Flávia mencionou no seu texto, na sexta, são corriqueiros onde vivo e não tenho dúvida de que eles contribuem para mudar o mundo. Deixam os beneficiários de bom humor, criam o desejo de retribuição e, mais importante, constróem o sentimento de comunidade.
Aqui em Portland, essa generosidade se manifesta de várias formas. Uma das mais comuns é o que eu chamaria de “serviços residenciais”. Muitas famílias mantêm uma pequena biblioteca circulante junto ao portão de sua casa. É uma pequena estante de madeira com portas envidraçadas e telhado, uma espécie de caixa de correios avantajada. Dentro você encontra todo tipo de literatura, para adultos e crianças. Pode pegar o que quiser – mas o dono sugere que você deixe outro livro no lugar. Outras casas oferecem um mural de poesia. Várias árvores de rua têm balanços – brinca quem quer – e até bancos para que os passantes dêem uma descansada. E o meu quarteirão tem pelo menos três “jardins de fadas” – as crianças da rua se reúnem e montam um habitat para fadas e duendes, com pedras, penas, brinquedos de plástico, mini-caixa de correio para troca de correspondências.
O pequeno comércio também faz suas gentilezas. Portland tem políticas municipais de fomento a lojinhas de bairro e os consumidores também tendem a preferir os empreendimentos locais. Os empresários retribuem, marcando presença em todas as festas de rua – que não são poucas. No último domingo, as crianças do meu bairro fizeram um desfile de monstros. Cada vez que a parada passava em frente a uma lojinha, os donos e funcionários distribuiam balas, cupons de descontos, tocavam música. É, claro, um recurso publicitário – mas esse corpo-a-corpo do comerciante com o consumidor tem um charme e um calor humano inegáveis.
A participação do pequeno comércio na vida das pessoas é real e importante. Vários cafés das redondezas têm área para as crianças brincarem, com jogos, papel e lápis de cor e abundância de livros. Alguns promovem eventos que reúnem, por exemplo, grupos de pais que cuidam dos seus bebês enquanto as mães trabalham (algo comum por aqui). Os restaurantes fazem promoções em que toda a renda de uma determinada noite vai para a escola pública do bairro.
Parece até que estou falando de uma cidade pequena, uma Pirinópolis americana, não da 28a maior cidade dos Estados Unidos. O que teria criado esse ambiente e como replicá-lo? Os artigos que escrevi anteriormente sobre Portland dão algumas pistas (particularmente Utopia Real) – foco no local, no artesanal, na natureza, nos pedestres e ciclistas. Na minha opinião, isso só foi possível porque a região atrai há mais de um século gente que tem interesse nesse tipo de interação calorosa. A Costa Oeste se destaca do resto dos Estados Unidos pela descontração e por ser um grande pólo de não-conformidade (Portland fica entre San Francisco, a terra da contracultura, e Seattle, o lar do grunge). Dá para replicar esse jeitão? Acho possível, mas tem que vir de baixo.[:en]
Todo santo dia perambulo no meu bairro – um reduto de famílias de classe média encurralado entre três reservas naturais, mas em território plenamente urbano. Ontem, saí de casa com as mãos abanando e voltei com um buquê de dálias, figos, um livro (“Snow”, do novelista turco Orhan Pamuk) e uma cópia do filme de catástrofe reptiliana Jurassic Park. Consegui tudo de graça.
Os figos vieram de uma árvore plantada na calçada – pega quem quiser. Só não completei a feira porque é outono, os tomates, ameixas e blackberries, tão abundantes nestas ruas, já se foram. As dálias vieram de um belo jardim. Sobre um banquinho, a dona colocou uma tesoura de jardineiro e um bilhete: “Sirva-se. Assinado: Mulher das Dálias”. O livro saiu de uma pilha de literatura encalhada, oferecida por um sebo local. A dona do estabelecimento, inclusive, me chamou de longe e avisou da oportunidade. E o DVD estava num monte de objetos arrumados no gramado de uma casa. Tudo de primeira, tudo de graça.
Os tais atos de generosidade que a Flávia mencionou no seu texto, na sexta, são corriqueiros onde vivo e não tenho dúvida de que eles contribuem para mudar o mundo. Deixam os beneficiários de bom humor, criam o desejo de retribuição e, mais importante, constróem o sentimento de comunidade.
Aqui em Portland, essa generosidade se manifesta de várias formas. Uma das mais comuns é o que eu chamaria de “serviços residenciais”. Muitas famílias mantêm uma pequena biblioteca circulante junto ao portão de sua casa. É uma pequena estante de madeira com portas envidraçadas e telhado, uma espécie de caixa de correios avantajada. Dentro você encontra todo tipo de literatura, para adultos e crianças. Pode pegar o que quiser – mas o dono sugere que você deixe outro livro no lugar. Outras casas oferecem um mural de poesia. Várias árvores de rua têm balanços – brinca quem quer – e até bancos para que os passantes dêem uma descansada. E o meu quarteirão tem pelo menos três “jardins de fadas” – as crianças da rua se reúnem e montam um habitat para fadas e duendes, com pedras, penas, brinquedos de plástico, mini-caixa de correio para troca de correspondências.
O pequeno comércio também faz suas gentilezas. Portland tem políticas municipais de fomento a lojinhas de bairro e os consumidores também tendem a preferir os empreendimentos locais. Os empresários retribuem, marcando presença em todas as festas de rua – que não são poucas. No último domingo, as crianças do meu bairro fizeram um desfile de monstros. Cada vez que a parada passava em frente a uma lojinha, os donos e funcionários distribuiam balas, cupons de descontos, tocavam música. É, claro, um recurso publicitário – mas esse corpo-a-corpo do comerciante com o consumidor tem um charme e um calor humano inegáveis.
A participação do pequeno comércio na vida das pessoas é real e importante. Vários cafés das redondezas têm área para as crianças brincarem, com jogos, papel e lápis de cor e abundância de livros. Alguns promovem eventos que reúnem, por exemplo, grupos de pais que cuidam dos seus bebês enquanto as mães trabalham (algo comum por aqui). Os restaurantes fazem promoções em que toda a renda de uma determinada noite vai para a escola pública do bairro.
Parece até que estou falando de uma cidade pequena, uma Pirinópolis americana, não da 28a maior cidade dos Estados Unidos. O que teria criado esse ambiente e como replicá-lo? Os artigos que escrevi anteriormente sobre Portland dão algumas pistas (particularmente Utopia Real) – foco no local, no artesanal, na natureza, nos pedestres e ciclistas. Na minha opinião, isso só foi possível porque a região atrai há mais de um século gente que tem interesse nesse tipo de interação calorosa. A Costa Oeste se destaca do resto dos Estados Unidos pela descontração e por ser um grande pólo de não-conformidade (Portland fica entre San Francisco, a terra da contracultura, e Seattle, o lar do grunge). Dá para replicar esse jeitão? Acho possível, mas tem que vir de baixo.