“Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano
“Deus me livre, meu filho!” – benzeu-se, olhou para o céu e acariciou o siamês no colo Dona Isadora. Isso foi quando o Silvino, morador do prédio, contou que na Holanda as igrejas estão virando livrarias, restaurantes, cafés e até casa de shows Dona Isadora, minha vizinha, faz jus ao nome. Adora tudo. Se existe Deus no meio – ou no alto, ou em toda parte, como queira –, ela não perde a chance de louvar.
Silvino acredita que o neto dela seja “breque broque”, como diz. Juliano no outro dia chegou ao apartamento de Dona Isadora, arremessou a Veja pela janela, lavou as mãos na cozinha e se sentou no sofá verde da avó para conversar. “Vó, o mundo inteiro se mata em nome da religião. Mas há uma salvação. Em Amsterdã, uma pesquisa mostrou que quase metade do povo é formada por ateus”.
“Deus me livre, meu filho” – tirou a bandeja de biscoitos de nata do forno, benzeu-se e serviu o garoto. “Anda, come. Agradece ao Todo-Poderoso antes, peste.” Dona Isadora é de Bom Jesus, vive há mais de 30 anos em São Paulo e mora na Rua Cônego Eugênio Leite, em Pinheiros. Confia nos astros, nas nuvens, no GPS do genro, nos raios, nas cartas de tarô, nas bolas de cristal, nas novelas, nem tanto no próximo, apesar das recomendações para amá-lo.
É capaz de falar “Deus me livre, meu filho” seguidamente durante 40 dias e 40 noites. “Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata Juliano. “Ah, vá para o diabo”, retornou à cozinha e pôs a esquentar a água do chá Dona Isadora.
Ela gosta de morar na Cônego Eugênio Leite, pois se sente protegida. Benze-se diante da igreja e da mesquita instaladas na rua, além do centro de estudos espíritas. Quando a filha conheceu o marido, minha vizinha não escondeu a alegria ao saber que o rapaz trabalhava com incorporação. Até o dia em que Ana Cristina esclareceu. “Ai, mãe, que Chico Xavier? O Otávio é engenheiro civil.” Passado o engano, Dona Isadora consolou-se. “Pelo menos ele vai poder erguer os templos de Deus.”
Não sei naquela época, mas hoje não na Holanda, claro, porque lá isso não tem dado muito resultado. O que tem dado resultado para Ana Cristina são as aulas de Mohamed Cabala, um pensamento desses que vêm lá do oriente. Foi ela quem tocou a campainha e não resistiu a avançar sobre a mesa com os biscoitos de nata, antes até de cumprimentar Juliano.
“Mãe, você sabia que a cabala ensina que Deus tem 72 nomes? E que os muçulmanos creem que Alá tem 99 nomes?” – trouxe as informações sobre a última aula mastigando os biscoitos e procurando a garrafa d’água. “Filha, se está difícil de o Divino atender chamando por um nome só, imagina chamando por tudo isso. Vamos facilitar as coisas” – tirou a água fervente da panela e misturou às folhas de erva-cidreira, com adoçante.
Juliano recebeu no telefone celular o e-mail de um amigo que estava fazendo mochilão na Europa e leu o texto em voz alta para a avó escutar. “Em Maastricht, a pouco mais de 200 quilômetros de Amsterdã, uma igreja de cerca de 700 anos se transformou na Selexyz Dominicanen. De acordo com o jornal The Guardian, a mais bela livraria do mundo. Não é nenhum pecado percorrer também os 40 quilômetros que separam a capital de Utrecht, onde se encontra o Café Olivier. Estabelecido em um antigo templo, tem cervejas belgas e receitas com o tempero de diversos países europeus. Hoje à noite vou a Paradiso, uma igreja do século XIX transformada em casa de shows que contou, certa vez, com a apresentação dos Rolling Stones.”
“Larga esse celular, Juliano, e para de falar nessas coisas que isso ainda vai fazer mal para a sua avó”, ralhou Ana Cristina, segurando o jornal aberto na página do horóscopo. Juliano não acreditava em Deus, idolatrava, porém, Mick Jagger. “Deus me livre, meu filho” – passou o chá da panela para o bule e do bule para as três xícaras Dona Isadora. Deus me livre não pelo fato de o neto desacreditar em Deus, nem pelas terríveis notícias holandesas, mas porque ela preferia mil vezes Roberto Carlos, ou o padre Marcelo Rossi.
Ao interromper o assunto a pedidos da mãe, as palavras de Juliano sobre a Holanda já tinham alcançado o mundo inteiro na forma de um tweet. Ao ler a mensagem, um religioso organizou um protesto no Chile; um homem atirou contra a embaixada americana na Nigéria, em nome de Deus; um cientista liderou um grupo de ateus pela liberdade na Inglaterra; mulheres mostraram os seios na Itália; jogadores de futebol pediram a paz com uma faixa no campo no México.
O chá, que àquela altura esfriava nas três xícaras sobre a mesa da sala de Dona Isadora, estava apenas começando a ferver no resto do mundo.
*JORNALISTA E AUTOR DO LIVRO AMOR DO MUNDO
Leia mais:
“Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude”, por Aron Belinky em “Nascemos cowboys, viramos astronautas”
“O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta”, por Ricardo Abramovay em “Com açúcar, sem afeto“
[:en]“Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano
“Deus me livre, meu filho!” – benzeu-se, olhou para o céu e acariciou o siamês no colo Dona Isadora. Isso foi quando o Silvino, morador do prédio, contou que na Holanda as igrejas estão virando livrarias, restaurantes, cafés e até casa de shows Dona Isadora, minha vizinha, faz jus ao nome. Adora tudo. Se existe Deus no meio – ou no alto, ou em toda parte, como queira –, ela não perde a chance de louvar.
Silvino acredita que o neto dela seja “breque broque”, como diz. Juliano no outro dia chegou ao apartamento de Dona Isadora, arremessou a Veja pela janela, lavou as mãos na cozinha e se sentou no sofá verde da avó para conversar. “Vó, o mundo inteiro se mata em nome da religião. Mas há uma salvação. Em Amsterdã, uma pesquisa mostrou que quase metade do povo é formada por ateus”.
“Deus me livre, meu filho” – tirou a bandeja de biscoitos de nata do forno, benzeu-se e serviu o garoto. “Anda, come. Agradece ao Todo-Poderoso antes, peste.” Dona Isadora é de Bom Jesus, vive há mais de 30 anos em São Paulo e mora na Rua Cônego Eugênio Leite, em Pinheiros. Confia nos astros, nas nuvens, no GPS do genro, nos raios, nas cartas de tarô, nas bolas de cristal, nas novelas, nem tanto no próximo, apesar das recomendações para amá-lo.
É capaz de falar “Deus me livre, meu filho” seguidamente durante 40 dias e 40 noites. “Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata Juliano. “Ah, vá para o diabo”, retornou à cozinha e pôs a esquentar a água do chá Dona Isadora.
Ela gosta de morar na Cônego Eugênio Leite, pois se sente protegida. Benze-se diante da igreja e da mesquita instaladas na rua, além do centro de estudos espíritas. Quando a filha conheceu o marido, minha vizinha não escondeu a alegria ao saber que o rapaz trabalhava com incorporação. Até o dia em que Ana Cristina esclareceu. “Ai, mãe, que Chico Xavier? O Otávio é engenheiro civil.” Passado o engano, Dona Isadora consolou-se. “Pelo menos ele vai poder erguer os templos de Deus.”
Não sei naquela época, mas hoje não na Holanda, claro, porque lá isso não tem dado muito resultado. O que tem dado resultado para Ana Cristina são as aulas de Mohamed Cabala, um pensamento desses que vêm lá do oriente. Foi ela quem tocou a campainha e não resistiu a avançar sobre a mesa com os biscoitos de nata, antes até de cumprimentar Juliano.
“Mãe, você sabia que a cabala ensina que Deus tem 72 nomes? E que os muçulmanos creem que Alá tem 99 nomes?” – trouxe as informações sobre a última aula mastigando os biscoitos e procurando a garrafa d’água. “Filha, se está difícil de o Divino atender chamando por um nome só, imagina chamando por tudo isso. Vamos facilitar as coisas” – tirou a água fervente da panela e misturou às folhas de erva-cidreira, com adoçante.
Juliano recebeu no telefone celular o e-mail de um amigo que estava fazendo mochilão na Europa e leu o texto em voz alta para a avó escutar. “Em Maastricht, a pouco mais de 200 quilômetros de Amsterdã, uma igreja de cerca de 700 anos se transformou na Selexyz Dominicanen. De acordo com o jornal The Guardian, a mais bela livraria do mundo. Não é nenhum pecado percorrer também os 40 quilômetros que separam a capital de Utrecht, onde se encontra o Café Olivier. Estabelecido em um antigo templo, tem cervejas belgas e receitas com o tempero de diversos países europeus. Hoje à noite vou a Paradiso, uma igreja do século XIX transformada em casa de shows que contou, certa vez, com a apresentação dos Rolling Stones.”
“Larga esse celular, Juliano, e para de falar nessas coisas que isso ainda vai fazer mal para a sua avó”, ralhou Ana Cristina, segurando o jornal aberto na página do horóscopo. Juliano não acreditava em Deus, idolatrava, porém, Mick Jagger. “Deus me livre, meu filho” – passou o chá da panela para o bule e do bule para as três xícaras Dona Isadora. Deus me livre não pelo fato de o neto desacreditar em Deus, nem pelas terríveis notícias holandesas, mas porque ela preferia mil vezes Roberto Carlos, ou o padre Marcelo Rossi.
Ao interromper o assunto a pedidos da mãe, as palavras de Juliano sobre a Holanda já tinham alcançado o mundo inteiro na forma de um tweet. Ao ler a mensagem, um religioso organizou um protesto no Chile; um homem atirou contra a embaixada americana na Nigéria, em nome de Deus; um cientista liderou um grupo de ateus pela liberdade na Inglaterra; mulheres mostraram os seios na Itália; jogadores de futebol pediram a paz com uma faixa no campo no México.
O chá, que àquela altura esfriava nas três xícaras sobre a mesa da sala de Dona Isadora, estava apenas começando a ferver no resto do mundo.
*JORNALISTA E AUTOR DO LIVRO AMOR DO MUNDO
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“Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude”, por Aron Belinky em “Nascemos cowboys, viramos astronautas”
“O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta”, por Ricardo Abramovay em “Com açúcar, sem afeto“