Enquanto a WSPA admite o aproveitamento do subproduto mediante abate humanitário, a Peta prega o veganismo
Prover ambiente tranquilo e confortável e eliminar práticas cruéis no manejo do rebanho bovino na fazenda, no transporte até a planta de abate e no frigorífico constituem procedimentos não apenas respeitosos com os animais, mas também fatores de sucesso nos negócios com o couro, subproduto muito rentável do processamento da carne.
Maus-tratos no manejo do gado, economia de gastos nas instalações e descuidos com a mão de obra (alta rotatividade e falta de treinamento) aparecem como traços recorrentes em boa parte do sistema de produção de carne bovina no Brasil, levando a uma série de danos que afetam o volume e a qualidade da produção de carne e do processamento do couro pelos curtumes.
Entre os danos, um veterinário do Ministério da Agricultura, que conversou com a PÁGINA22 e preferiu não se identificar, lista os seguintes: infestações recorrentes de carrapatos nos animais, espancamentos, lesões decorrentes de quedas e escorregamento, cortes, fibrose, cicatrizes, riscos no couro por arame farpado e lotação excessiva de animais no transporte e no frigorífico. “Tudo isso estressa bastante o animal, liberando muita adrenalina, o que leva a um maior gasto de energia e perda de peso”, explica o veterinário.
A associação entre práticas de bem-estar e desempenho econômico tornou-se o chamariz utilizado por algumas organizações ambientalistas e de defesa dos direitos animais para atrair a atenção de grifes de alto padrão para o assunto. Um dos lances mais notáveis dessa estratégia foi o lançamento em março de 2013 pela italiana Gucci de uma coleção de três bolsas de couro da linha de luxo “Desafio do Tapete Verde” [1]. Foram os primeiros produtos fabricados no mundo com couro proveniente do gado bovino de fazendas certificadas pela Rainforest Alliance.
[1] Conheça detalhes do lançamento nos sites da Rainforest Alliance e da consultoria Eco-Age, que criou o projeto “Desafio do Tapete Verde” em 2009
A certificação assegura que as fazendas não promovem desmatamento, protegem o hábitat da vida silvestre, proporcionam tratamento ético aos animais e o bem-estar dos trabalhadores. O couro usado pela Gucci é oriundo dos bois criados nas quatro unidades da Fazenda São Marcelo [2], divisão do Grupo JD em Mato Grosso.
[2] Primeira fazenda de pecuária do mundo a conquistar a certificação da Rainforest Alliance. Também foi pioneira no Brasil na obtenção da Certified Humane, certificação de bem-estar animal da Humane Farm Animal Care. Mais aqui e aqui
Contudo, o tema do uso de animais na indústria do vestuário e dos calçados é controverso no ambientalismo. De um lado, há entidades como a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA), que admite a utilização de couro de animais domesticados para fornecer alimento aos humanos, tais como bovinos e suínos, desde que proveniente de abate humanitário, sublinha Juliana Ribas, supervisora de boas práticas de bem-estar animal da WSPA no Brasil .
De outro lado, um grupo de organizações, entre elas a People for the Ethical Treatment of Animals (Peta), baseada nos EUA, rechaça o emprego de quaisquer animais pela indústria, mesmo bovinos ou suínos direcionados à alimentação humana e às indústrias têxtil e calçadista. WSPA e Peta, entretanto, coincidem na oposição ao uso de animais silvestres na fabricação de roupas, calçados e acessórios. Nesse caso, o apelo às empresas está surtindo respostas mais rápidas, tendo em vista a adesão por escrito de 310 companhias varejistas à campanha da Fur Free Alliance contra o uso de peles, pelos, penas e fibras de animais nas indústrias do vestuário e calçadista [3].
[3] Apenas quatro empresas no Brasil assumiram o compromisso da aliança: American Apparel, Elsien Gringhuis, Geox e Grupo Otto. Veja a lista completa
“O couro é o subproduto mais valioso da indústria da carne. Isso significa que ele é um contribuinte direto para os horrores do sistema de criação industrial e o abate de milhões de animais a cada ano. A melhor coisa que alguém pode fazer pelo meio ambiente e para interromper o sofrimento dos animais é se tornar vegano”, defende Ashley Byrne, especialista em campanhas da Peta. (Leia íntegra de entrevista com Ashley.)
Para a Peta, o sofrimento dos bovinos não é menos chocante que o dos coelhos angorás, alvo de campanha atual da entidade. Até o fechamento desta edição, uma dúzia de empresas – entre elas, Calvin Klein, Tommy Hilfiger, Izod, H&M, Limited Brands e Marks &Spencer – haviam comunicado à Peta que não mais utilizarão a lã do coelho angorá nas suas fábricas.
Conheça os principais usos de animais nos setores de vestuário e calçados:
Partes utilizadas | Proveniência | Produtos |
Couro | Bovino, suíno, ovino, caprino, jacaré, crocodilo, avestruz, cão, gato, zebra, bisão, búfalo-asiático, javali, canguru, elefante, enguia, tubarão, golfinho, foca, morsa, rã, tartaruga, lagarto, cobra | Calçado, cinto, bolsa, carteira, mala, chapéu, luva, jaqueta, calça |
Lã | Ovelha, carneiro, coelho, lhama, alpaca, vicunha, cabra, antílope tibetano | Casaco, blusa, gorro, cachecol, luva, xale |
Pele | Coelho, coiote, raposa, guaxinim, rato almiscarado, cão, gato, castor, focas, mustelídeos (vison, furão, zibelina, ariranha e lontra, entre outras espécies) | Casaco de pele |
Penas e penugem | Gansos, patos, pavão e outras aves | Travesseiro, almofada e trajes de fantasia |
Caxemira | Cabra-da-caxemira | Roupa de frio |
Seda | Bicho-da-seda | Roupa feminina |
Pelo | Urso-negro | Chapéus cerimoniais |