Comunidades ribeirinhas no Amazonas preparam-se para receber de volta peixes-boi resgatados da captura ilegal, graças a projetos de conservação
Por Sérgio Adeodato
O Rio Uatumã, “boca grande” na língua indígena, tornou-se símbolo do apetite predatório na maior floresta tropical do planeta e hoje luta para reverter a má fama. Seus 660 quilômetros desde a nascente, no Planalto das Guianas, até a foz, no Rio Amazonas, cruzam a área da qual o pau-rosa foi extraído indiscriminadamente para a indústria de cosméticos até chegar à beira da extinção, com grave prejuízo ao sustento da população. A região foi também reduto da matança do peixe-boi-da-amazônia, que teve ápice no início do século XX. O couro do animal servia à fabricação de correias para máquinas e até dobradiças de portas. Com a banha, produzia-se óleo para lamparinas e iluminação pública. Assim, entre 1930 e 1950 mais de 200 mil exemplares da espécie teriam sido abatidos como alternativa econômica à decadência da borracha.
Apesar da proibição legal, a captura ocorre ainda hoje para subsistência e venda da carne em feiras populares. A oferta é maior na estação de seca, entre agosto e dezembro, quando os peixes-boi se tornam alvos fáceis nos rios mais rasos. Mas essa situação começa a mudar, com a adesão de aliados ribeirinhos que se engajam em projetos de conservação em busca de novas fontes de renda, como a proporcionada pelo extrativismo de baixo impacto e pelo turismo comunitário. “Vigiamos os lagos contra forasteiros que chegam com arpões”, conta Claudomiro dos Santos, o Cacá, liderança do povoado Maracanarã, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã.
Muitos aprenderam com as lições do passado. E já perceberam que a captura indiscriminada ameaça também tambaquis, matrinxãs, jaraquis e outras espécies básicas da alimentação regional. “É chave a conscientização das comunidades, principalmente das novas gerações”, ressalta Stella Lazzarini, pesquisadora do Centro de Preservação e Pesquisa de Mamíferos Aquáticos (CPPMA), que abriga animais resgatados após ferimentos, maus-tratos ou morte da mãe por caçadores. O local foi construído como compensação por impactos ambientais provocados pela Usina Hidrelétrica de Balbina, implantada pelo governo militar na década de 1980, no Rio Uatumã, mediante alagamento de uma imensa área de floresta.
Hoje superlotado, o centro acolhe 54 peixes-boi, dos quais 37 têm plenas condições de voltar à natureza — e são exatamente esses que representam o maior desafio, envolvendo conhecimento científico e novos hábitos da população. “Na reintrodução ao ambiente natural, é preciso todo cuidado para que os animais não sejam caçados”, argumenta Stella, ao lembrar que já foi definido o refúgio para a soltura: o Lago Carabá, marginal ao Uatumã, onde hoje tartarugas amazônicas são protegidas.
Como preparativo, uma embarcação tipicamente amazônica percorre os povoados três vezes ao ano, para atividades de educação nas escolas. O trabalho de mobilizar crianças para mudanças no comportamento dos adultos é de longo prazo. “Se antes a garotada tinha orgulho ao desenhar o pai com um arpão, hoje a expressão é de defesa e ternura em relação a esses mamíferos”, conta Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak, patrocinadora do projeto.
Em paralelo, cientistas desenvolvem técnica inovadora para o futuro monitoramento dos peixes-boi soltos na natureza, mediante GPS. Apoiada pela Amazonas Energia, a iniciativa permite acompanhá-los à distância, com uso de boias que captam os sinais emitidos por eles ao longo dos rios.
Só depois de toda a logística pronta e testada será possível finalmente devolvê-los ao habitat de origem, o que deverá ocorrer em 2016. Além dos que aguardam por esse momento no CPPMA, há outros 54 animais nos tanques do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Lá, pesquisadores preservam células-tronco de peixes-boi, com o objetivo de garantir a continuidade da espécie no futuro. Assim, o trabalho de resgate e retorno dos animais aos rios terá mais chances de sucesso – para a sorte do Andirazinho, que chegou recém-nascido ao cativeiro, salvo pelo professor de uma comunidade que o alimentou por mamadeira. Ao seu lado está o Castanho, em recuperação após ferimento por flecha, e a Bumbá, que viveu amarrada à cerca de uma casa ribeirinha. Todos comem diariamente fartas porções de frutas e capim aquático. E o atendimento inclui até tratamento com florais de Bach para a redução do estresse.[:en]Comunidades ribeirinhas no Amazonas preparam-se para receber de volta peixes-boi resgatados da captura ilegal, graças a projetos de conservação
O Rio Uatumã, “boca grande” na língua indígena, tornou-se símbolo do apetite predatório na maior floresta tropical do planeta e hoje luta para reverter a má fama. Seus 660 quilômetros desde a nascente, no Planalto das Guianas, até a foz, no Rio Amazonas, cruzam a área da qual o pau-rosa foi extraído indiscriminadamente para a indústria de cosméticos até chegar à beira da extinção, com grave prejuízo ao sustento da população. A região foi também reduto da matança do peixe-boi-da-amazônia, que teve ápice no início do século XX. O couro do animal servia à fabricação de correias para máquinas e até dobradiças de portas. Com a banha, produzia-se óleo para lamparinas e iluminação pública. Assim, entre 1930 e 1950 mais de 200 mil exemplares da espécie teriam sido abatidos como alternativa econômica à decadência da borracha.
Apesar da proibição legal, a captura ocorre ainda hoje para subsistência e venda da carne em feiras populares. A oferta é maior na estação de seca, entre agosto e dezembro, quando os peixes-boi se tornam alvos fáceis nos rios mais rasos. Mas essa situação começa a mudar, com a adesão de aliados ribeirinhos que se engajam em projetos de conservação em busca de novas fontes de renda, como a proporcionada pelo extrativismo de baixo impacto e pelo turismo comunitário. “Vigiamos os lagos contra forasteiros que chegam com arpões”, conta Claudomiro dos Santos, o Cacá, liderança do povoado Maracanarã, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã.
Muitos aprenderam com as lições do passado. E já perceberam que a captura indiscriminada ameaça também tambaquis, matrinxãs, jaraquis e outras espécies básicas da alimentação regional. “É chave a conscientização das comunidades, principalmente das novas gerações”, ressalta Stella Lazzarini, pesquisadora do Centro de Preservação e Pesquisa de Mamíferos Aquáticos (CPPMA), que abriga animais resgatados após ferimentos, maus-tratos ou morte da mãe por caçadores. O local foi construído como compensação por impactos ambientais provocados pela Usina Hidrelétrica de Balbina, implantada pelo governo militar na década de 1980, no Rio Uatumã, mediante alagamento de uma imensa área de floresta.
Hoje superlotado, o centro acolhe 54 peixes-boi, dos quais 37 têm plenas condições de voltar à natureza — e são exatamente esses que representam o maior desafio, envolvendo conhecimento científico e novos hábitos da população. “Na reintrodução ao ambiente natural, é preciso todo cuidado para que os animais não sejam caçados”, argumenta Stella, ao lembrar que já foi definido o refúgio para a soltura: o Lago Carabá, marginal ao Uatumã, onde hoje tartarugas amazônicas são protegidas.
Como preparativo, uma embarcação tipicamente amazônica percorre os povoados três vezes ao ano, para atividades de educação nas escolas. O trabalho de mobilizar crianças para mudanças no comportamento dos adultos é de longo prazo. “Se antes a garotada tinha orgulho ao desenhar o pai com um arpão, hoje a expressão é de defesa e ternura em relação a esses mamíferos”, conta Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak, patrocinadora do projeto.
Em paralelo, cientistas desenvolvem técnica inovadora para o futuro monitoramento dos peixes-boi soltos na natureza, mediante GPS. Apoiada pela Amazonas Energia, a iniciativa permite acompanhá-los à distância, com uso de boias que captam os sinais emitidos por eles ao longo dos rios.
Só depois de toda a logística pronta e testada será possível finalmente devolvê-los ao habitat de origem, o que deverá ocorrer em 2016. Além dos que aguardam por esse momento no CPPMA, há outros 54 animais nos tanques do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Lá, pesquisadores preservam células-tronco de peixes-boi, com o objetivo de garantir a continuidade da espécie no futuro. Assim, o trabalho de resgate e retorno dos animais aos rios terá mais chances de sucesso – para a sorte do Andirazinho, que chegou recém-nascido ao cativeiro, salvo pelo professor de uma comunidade que o alimentou por mamadeira. Ao seu lado está o Castanho, em recuperação após ferimento por flecha, e a Bumbá, que viveu amarrada à cerca de uma casa ribeirinha. Todos comem diariamente fartas porções de frutas e capim aquático. E o atendimento inclui até tratamento com florais de Bach para a redução do estresse.