Muitos perguntam se há o que comemorar no aniversário do Gatt, pois temas importantes de eqüidade social e de respeito ao meio ambiente ainda não foram incorporados adequadamente ao sistema de negociação entre os países
Criado em 1947, o Acordo Geral de Comércio e Tarifas – Gatt, na sigla em inglês – foi definitivamente implantado em 1948. Neste ano, portanto, torna-se sexagenário. Muitos se perguntam se há o que comemorar, pois temas importantes de eqüidade social e respeito ao meio ambiente ainda não foram incorporados adequadamente ao sistema multilateral de comércio, apesar da maior integração global vivida neste século XXI. E há quem aponte uma crise de legitimidade da instituição que rege, entre as nações, a compra e venda de muito mais que mercadorias e serviços.
Antes de avaliar conquistas e dilemas, conhecer a origem do Gatt é uma forma de entender como funciona o atual sistema de comércio, que tanto influencia a vida das pessoas nos diversos países do mundo, na condição de consumidores e cidadãos.
Terminada a Segunda Grande Guerra, começaram os esforços para reconstruir as áreas devastadas e manter um estado de paz duradouro. Nesse sentido, foram formadas entidades intergovernamentais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, e a maior de todas, a Organização das Nações Unidas.
Esperava-se também criar a Organização Internacional do Comércio para administrar regras entre os países e evitar que disputas comerciais se tornassem conflitos bélicos. O protecionismo passou a ser visto em certas esferas como uma ameaça à paz – o que fazia algum sentido, pois em meados do século XIX os EUA haviam forçado a abertura do mercado japonês com a ameaça de canhões.
No pós-Segunda Guerra, devido à recusa do Senado americano, que temia ingerências em suas políticas comerciais internacionais, essa organização deixou de ser criada. Mas o acordo que tratava de regras de comércio de mercadorias foi aprovado em Genebra e entrou em vigor em março de 1948. Esse acordo é o Gatt. Contribuíram para o seu nascimento 23 países, entre eles o Brasil.
De caráter provisório e sem representação institucional, estabelecia regras multilaterais para o comércio internacional, apresentando 45 mil concessões em tarifas, que atingiam US$ 10 bilhões, ou um quinto do comércio internacional de mercadorias à época.
Ao se institucionalizar, o Gatt adquiriu a aparência de uma organização internacional, mas manteve seu formato de acordo provisório até a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se deu, finalmente, na oitava rodada de negociações, a do Uruguai. Constituída por 123 países, a OMC surgiu em 1994 e começou a operar no ano seguinte. Passou a administrar os acordos comerciais multilaterais firmados anteriormente, inclusive o próprio Gatt. Hoje, a OMC engloba mais de 30 acordos, incluindo temas como investimentos, serviços e propriedade industrial.
Para se ter idéia de sua representatividade, entre 1980 e 2006, sob o âmbito da OMC, o comércio de mercadorias cresceu mais de cinco vezes e atingiu a marca dos US$ 11,8 trilhões, enquanto as exportações de serviços, nesse mesmo período, ampliaram- se sete vezes, superando os US$ 2,8 trilhões. A expansão do número de países e de valores transacionados no sistema multilateral de comércio é para muitos uma razão importante a comemorar. Guerras podem ter sido evitadas, bem como crises profundas entre países que levariam a rompimento de relações.
Boi e etanol
Mas há quem não acenda velas ao sistema multilateral inaugurado pelo Gatt.
As reuniões ministeriais da OMC, seu órgão máximo, costumam ser tumultuadas por críticos de muitos matizes. A abertura dos mercados de nações desenvolvidas para os produtos dos demais países ainda é uma promessa e um dos capítulos mais angustiantes das rodadas anteriores e da atual, a de Doha, iniciada em 2001.
Além disso, todo o esforço de redução de tarifas realizado nas últimas décadas tem estimulado os países a adotar uma nova forma de protecionismo, por meio de barreiras não tarifárias baseadas em aspectos sanitários, fitossanitários e ambientais.
Exemplos recentes que envolvem a Comunidade Européia e têm produtos brasileiros como alvo são as restrições à importação de carne bovina e à demanda por certificação socioambiental do etanol.
Outro aspecto controverso refere-se ao acordo sobre Propriedade Intelectual Relacionada com o Comércio (TRIPs, em inglês). Ao reforçar os direitos dos titulares de patentes farmacêuticas, esse acordo trouxe problemas para as políticas públicas de saúde em países não desenvolvidos, onde grande parte da população depende da distribuição gratuita de medicamentos.
Mudanças que favoreçam o acesso dessas nações a medicamentos estarão em pauta nas negociações e até foram incluídas em documento específico, denominado Declaração de Doha sobre o TRIPs e a Saúde Pública. Mas, se prevalecerem os interesses dos países desenvolvidos, que abrigam os principais beneficiados pelo fortalecimento dos direitos dos titulares de patentes, é de esperar uma luta tão árdua como a que os países em desenvolvimento travam contra os subsídios agrícolas praticados, em particular, pelos EUA e pela União Européia.
A questão ambiental também suscita controvérsias, sejam específicas, sejam de ordem geral. Como exemplo do primeiro caso, o GATT permite aos governos impor restrições às importações relacionadas à conservação dos recursos naturais esgotáveis e à defesa da saúde humana, animal ou à preservação de vegetais.
Mas, na prática, são medidas insuficientes para a defesa eficaz do meio ambiente. A primeira, por centrar a questão apenas nos recursos esgotáveis. A segunda, por visar o produto e não o processo de produção.
Outro tipo de problema específico refere-se aos conflitos que podem ocorrer entre os acordos da OMC e os multilaterais, relativos ao meio ambiente, com cláusulas comerciais.
A Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio e a Convenção da Biodiversidade são exemplos de acordos que apresentam cláusulas restritivas ao comércio e, com isso, ferem os princípios da OMC, que se propõe a liberalizá-lo.
Os problemas específicos não param por aí, mas muitos deles podem chegar a soluções amigáveis ao meio ambiente, por conta de adequações do processo produtivo de mercadorias, do transporte e do desenho de cadeias de suprimento, entre outras possibilidades. O desenvolvimento de modelos e instrumentos de gestão ambiental, como análise de ciclo de vida, ecoeficiência, produção limpa e design for environment, contribui para a proposição de arranjos produtivos mais racionais.
Questão de fundo
Já os aspectos ambientais controversos de ordem geral são mais difíceis de equacionar, pois estão nas raízes da própria existência do sistema multilateral iniciado com o Gatt. Um dos pilares de sustentação desse sistema é o entendimento de que o comércio livre de restrições é a melhor maneira de promover o desenvolvimento dos países, resultando daí a idéia de que quanto mais comércio, melhor. Essa é uma importante tese do liberalismo econômico.
Mas a ampliação do comércio internacional nessas bases aumenta os impactos ambientais negativos pela maior exploração de recursos naturais para dar conta do aumento da produção e dos transportes, e pelo maior volume de poluentes gerados em todas as fases do processo produtivo e de consumo. Essa idéia caminha no sentido contrário ao consumo sustentável, uma das práticas mais difíceis de ser alcançada.
Existe ainda a idéia de que os países sempre se beneficiam com a liberdade de comércio, pois assim podem se concentrar nas atividades produtivas em que são mais eficientes, e adquirir os demais produtos de quem os fabrica melhor. Esta é uma importante tese para os defensores do livrecomércio e um ideal que a OMC persegue.
O fato de países se dedicarem ao que melhor sabem fazer, em princípio é bom, mas acaba por consolidar uma divisão internacional do trabalho desigual, na qual alguns poucos países produzem bens e serviços de alto valor agregado, enquanto outros se restringem a bens primários e produtos industrializados intensivos em recursos naturais e energia, com pouca agregação de valor (leia mais sobre agregação de valor em reportagem à página 58).
Como se percebe, o coro dos descontentes com o sistema multilateral de comércio pode valer-se de uma lista farta de motivos para questionar os avanços que os seus defensores exibem ao longo dos últimos 60 anos. Deve-se levar em consideração, ainda, que a maior integração global que caracteriza o século XXI oferece, por si só, uma série de novos desafios não apenas à OMC, mas também a várias entidades supranacionais, que devem basear suas ações em legitimidade e apoiar o desenvolvimento a partir de um patamar mínimo de boas práticas de gestão e de cooperação internacional.
Pesquisadores representativos da área de comércio e meio ambiente, como Daniel Esty, professor de Direito Ambiental da Yale Law School, reconhecem que a OMC passa por uma crise de legitimidade e que as medidas para contorná-la dependem do sucesso da organização em tornar mais transparentes seus processos, decisões e posições acerca de temas de interesse global.
Esse seria o único caminho para reforçar o mandato da organização como formuladora de políticas internacionais de comércio.
Tal crise é reconhecida também por autores vinculados à liberalização comercial, como Jagdish Bhagwati, professor da Universidade Colúmbia, para quem a associação do ideal de livre-comércio ao processo de globalização, ao longo da década de 1990, fez esse tema entrar para o rol das grandes ameaças à manutenção das culturas nacionais, tornando- se alvo de um crescente movimento jovem antiglobalização e anticapitalismo.
Há de se considerar, contudo, que, desde sua criação até a rodada atual, tudo que se refere ao sistema multilateral de comércio avança de forma lenta e controversa, enquanto o rio de asfalto e gente/ entorna pelas ladeiras,/ entope o meio-fio – como escreveu Márcio Borges, na canção Clube da Esquina nº 2. Se a temática socioambiental se mostra urgente em cada esquina do planeta, é importante que os compromissos com a sustentabilidade não fiquem esquecidos em preâmbulos ou sejam lembrados de forma efêmera.
Desta efeméride do Gatt/OMC sexagenário, entre as aclamações de seus defensores e as pedradas que virão dos seus críticos mais exacerbados, espera-se por mudanças que permitam ao comércio entre os países promover de fato eqüidade entre os povos e respeito ao meio ambiente, em conformidade com os objetivos do desenvolvimento sustentável – como prevê o Acordo Constitutivo da OMC.
*André Carvalho – Pesquisador do Gvces, doutorando e mestre em Administração de Empresas pela FGV-Eaesp
*José Carlos Barbieri – Professor do Departamento de Produção e Operações da FGV-Eaesp