[Este artigo foi originalmente publicado em p22on.com.br]
Por Mario Monzoni* e demais autores**
Atualmente, ao aproximar-se de uma realidade plural, contraditória e paradoxal, de mudanças velozes, em que a incerteza foi universalizada, somos impelidos a revisitar o percurso trilhado, a vislumbrar o devir e a inovar.
O principal papel da universidade é participar da grande obra que consiste em ler o livro da vida. Desde sua criação a universidade no Ocidente vem sendo marcada por exigências diferentes, contraditórias e até opostas que a levou a se organizar em áreas de conhecimento, a distinguir as disciplinas e a instaurar dentro delas especialidades. Esse processo revelou uma fragmentação que dificulta a reflexão das disciplinas sobre si mesmas e entre elas. Essa realidade tem se mostrado insuficiente para tratar tal complexidade de sistemas pela ótica da sustentabilidade e, de modo semelhante, instiga a formulação de modelos mais apropriados para encaminhar soluções e inovar.
No âmbito da sustentabilidade é demandada simultaneamente uma mudança de ideias e de estruturas que impulsionem ações que possam atender a legitimidade de um movimento de transformação que não esteja sujeito a interesses políticos ou econômicos que, mesmo apresentados com novas vestimentas e discurso, perpetuam práticas e concepções que se têm mostrado inadequadas para atender a realidade da atualidade.
Após as múltiplas e louváveis pesquisas e reflexões sobre a necessidade de “transatravessar” as fronteiras e o enclausuramento das disciplinas como registrado na bibliografia nacional e internacional, no âmbito da academia é demandado compreender a natureza disciplinar, pluri, multi, inter e transdisciplinar no processo de concepção, gestação e aplicação de conhecimento. O momento exige que as trajetórias inter e transdisciplinar (ITD) estejam cada vez mais presentes na cotidianidade da vida dinâmica das escolas de negócio e das empresas.
No âmbito das empresas cresce a necessidade da fertilização cruzada empresa-academia e a adequação contextualizada, visando aprimorar continuamente o agir humano, para que o sucesso dos negócios seja conjugado cada vez mais à dignidade humana e ao bem da coletividade.
Momento de mudança qualitativa
A emergência de novos modelos e a mudança intencionada são multifacetadas e estão intrinsecamente ligadas a uma governança que necessariamente levará em conta o crescente reconhecimento da complexidade do desenvolvimento humano, sua relação com o conhecimento e, também, sua interação com seu habitat. Isso implica abrir espaço-tempo para tratar temas como descompartimentalização dos saberes, valorização humana, espaço para a transformação, bem-estar e qualidade de vida, valorização do diálogo e reconhecimento da ação humana no ambiente.
Grandes desafios se colocam no processo de descompartimentalização dos saberes, dentre eles: (a) a religação de saberes no contexto da ciência e do conhecimento geral; (b) a verificação das relações existentes entre modalidades de conhecimento inter e transdisciplinar e suas possibilidades de respostas a problemas que não podem ser adequadamente tratados por abordagens monodisciplinares; (c) a exploração e a pesquisa conceitual, empírica e metodológica que acessem conhecimentos que não podem ser abordados pelas disciplinas acadêmicas nem pela interdisciplinaridade; (d) a religação dos saberes acadêmicos e não acadêmicos; (e) e também a religação entre subjetividade e objetividade.
A questão da valorização humana envolve processos de emergência do sujeito, práticas de reciprocidade, cidadania intelectual e a compreensão do corpo como um fenômeno carregado de cognição, enquanto potência vivente e motriz. Segundo Merleau-Ponty, o corpo reflexiona e a reflexão não é um privilégio nem exclusividade da consciência. A emergência do sujeito é um processo, parte de um movimento cultural visionário que diz respeito à perenidade da dinâmica de transformação do humano e à ampliação de consciência da dimensão que nos faz seres humanos.
O espaço para a transformação requer minimamente a abertura a mudanças e capacidade para inovar. Isso exige a compreensão de uma nova atitude de progresso que vá além da visão econômica, científica e tecnológica e abarque questões no âmbito pessoal, cultural, social e ambiental. Nessa perspectiva, o professor mais do que transmissor de conhecimento se engaja em um processo coformativo em que suas funções de pesquisador e mediador do conhecimento são significativamente enobrecidas, ampliadas e valorizadas. Sua atitude é a de um aprendiz permanente e de um inspirador de sentido.
Saúde e cultura e ressignificação do espaço-tempo são temas nucleares no âmbito do bem-estar e qualidade de vida. Fidelização de parcerias, fertilização cruzada academia-academia; academia-empresa e academia-alunos e ex-alunos são vias de diálogo a serem fortemente cultivadas. Finalmente, e nem por isso de menos importância, coloca-se o reconhecimento da ação humana no ambiente como de vital relevância na convivência estético-ética na condução das operações institucionais a curto, médio e longo prazos.
O chamado das Nações Unidas
Desde 2009, a FGV-Eaesp, de forma a atender a iniciativa da ONU Principles for Responsible Management Education (PRME), concebeu, gestou, formulou e implementou ação formativa para a sustentabilidade, a saber: a eletiva Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS). O primeiro ponto levado em consideração na criação desse projeto foi a abordagem da relação sujeito-objeto, ou seja, a relação do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o mundo que o circunda, pois parece aqui estar presente a questão nuclear de qualquer desafio que envolve sustentabilidade.
O FIS emerge e se materializa dentro de uma dinâmica complexa, por excelência não linear, em que conteúdo, valores, crenças e vivências são conjugados a partir de e de forma a articular dois projetos: 1. Projeto Referência, que trata de um problema real de uma empresa real, onde um desafio proposto deve ser investigado e respondido; 2. Projeto de Si Mesmo, que instiga uma autorreflexão, o mergulho sobre o conhecimento “do si” (identidade enquanto ser humano) e “de si” (identidade pessoal) e do percurso que norteia o entendimento do “eu” com o mundo.
Inovação
Sem inovação será impossível tratar as questões de sustentabilidade. Existem algumas condições favoráveis e desfavoráveis para inovar: físicas, psicológicas, afetivas, sociais, econômicas e certamente cognitivas que concernem às nossas percepções, nossas memórias, nossas linguagens. A inovação deve estar integrada ao processo de maturação e de domínio progressivo de nossa tripla relação com o mundo: integrada à nossa relação com o contexto (aos objetos, aos acontecimentos, ao espaço-tempo), integrada à nossa relação com os outros, e integrada à nossa relação com nós mesmos.
Para a filósofa Hannah Arendt, “o homem, se bem que ele deve morrer, não nasceu para morrer, nasceu para inovar”. Os cientistas Humberto Maturana e Francisco Varela, que cunharam a expressão “autopoieses”, trouxeram a confirmação de que uma forma criativa independente existe em todo organismo vivo e constitui a base de uma autonomia mínima. Segundo o pintor Georges Brunon, “o gesto criador está latente em nós”. Para o lógico Stéphane Lupasco e o físico Basarab Nicolescu, a capacidade de inovar indica que existe uma fase potencial, do “ainda não criado”, do “ainda não atualizado”, de nosso potencial de inovação ‒ que concerne a todos nós, a universidade incluída.
No âmbito da cognição, o processo de inovação se inscreve pela articulação do sensível ‒nossos sentimentos e imaginação; do experiencial – nossa historicidade e vivências, tanto as passadas como as presentes ou as futuras; e do pensamento formal – ideias, conteúdos, conceitos e lógicas. Referenciais cognitivos e instrumentos de investigação se mostram de grande valor nesse processo de criação, bem como a fundamentação transdisciplinar, a arte e as teorias de sistemas, a Teoria U e a da resiliência.
Vivência e experiência
É uma tarefa da maior importância e que sempre permanecerá incompleta ilustrar no que consiste uma formação integrada para a sustentabilidade destinada a alunos de uma escola de negócios e a pessoas que atuam em empresas. Articular teoria e prática para tratar dessa questão é essencial quando se propõe pensar o cenário contemporâneo em um mundo político e econômico tão marcado por uma crise de valores, uma crise de modelos e recursos metodológicos e pela ausência generalizada, no ambiente institucional, de um olhar sobre o conhecimento de si mesmo.
“Não temos dúvidas de que o progresso técnico – a racionalidade instrumental – possui um poder de difusão muito maior do que a criação de valores substantivos. […] O gênio inventivo do homem foi canalizado para a criação técnica. […] No entanto, o desenvolvimento deve ser entendido como um processo de transformação da sociedade não só em relação aos meios, mas também aos fins […].” Celso Furtado (2000). Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
* Coordenador do FGVces
** Este texto foi uma criação conjunta da equipe de formação para a sustentabilidade do FGVces, para fazer parte de um artigo apresentado pela FGV em evento internacional. Participaram dessa equipe, além de Mario Monzoni, Érica Gallucci, Maria de Mello e Ideli Domingues.