Cada país dispõe de um arsenal de argumentos para defender seus interesses domésticos. Heroísmo mesmo será saber equilibrar o local e o global em prol de um acordo ambicioso
Por José Alberto Gonçalves Pereira
Ilustração: Alessandro Romio
Um olho no quintal e outro no mundo. É assim que os países responsáveis por mais de 80% das emissões globais de gases-estufa movem-se no tabuleiro das negociações do acordo climático pós-2012. Nas reuniões da Convenção do Clima, essas nações se articulam em coalizões de interesses comuns, como o G-77, no caso dos países em desenvolvimento, a União Europeia e o Umbrella Group, formado por países desenvolvidos que não fazem parte da UE.
Na geopolítica do clima, o foco está nas articulações que refletem a crescente influência política e econômica das economias emergentes, como o G-20, e a responsabilidade dos maiores emissores de gases-estufa, caso do Fórum das Grandes Economias (MEF, na sigla em inglês). O MEF foi lançado em março deste ano pelo presidente americano Barack Obama para costurar alianças informais que ajudem a desembaraçar as negociações para o acordo do clima. Mas, até o momento, um dos poucos avanços no MEF é o consenso de que o combate ao aquecimento global deve ter como parâmetro o teto de 2 graus no acréscimo da temperatura do planeta até 2100, em relação aos níveis pré-industriais.
A chave para entender o impasse encontra-se na casa do mentor do MEF, o presidente Obama. Como o fórum poderá destravar a negociação climática, se a maior potência econômica e maior emissor histórico continua sem uma proposta corajosa para levar a Copenhague? A posição dos EUA será decisiva para calibrar o tamanho da ambição do novo acordo climático. Quanto mais ousada for sua proposta, o que parece pouco provável, mais ambicioso será o acordo. A recomendação do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) em 2007, de 25% a 40% de redução nas emissões do Anexo 1 em 2020 ante as de 1990, já se mostra insuficiente diante das evidências de agravamento acelerado dos cenários climáticos. Além das metas, a ambição também precisa contemplar um pacote financeiro dos países ricos de pelo menos US$ 150 bilhões anuais para ajudar as nações em desenvolvimento a investir em energia limpa e medidas de adaptação.
Obama não pretende se comprometer com um acordo global enquanto não tiver nas mãos uma lei de clima e energia que instaure um sistema de redução nas emissões do país. Tenta, assim, não repetir o erro de seu colega de partido, o ex-presidente Bill Clinton, que assinou o Protocolo de Kyoto, mas foi derrotado pelo Congresso, que não ratificou o tratado. O projeto da lei climática foi aprovado em junho por margem apertada na Câmara dos Representantes. Agora, tramita no Senado.
Acredita-se que Obama poderá apresentar nas negociações meta um pouco mais ousada do que a prevista no projeto da lei de clima. Para isso, ele tem ao menos três cartas na manga. Uma é o plano da Agência de Proteção Ambiental (EPA) de regular as emissões de CO2 de usinas de energia e indústrias. A segunda, controlar as emissões de veículos. Por fim, o governo Obama vem ampliando investimentos e incentivos para eficiência energética, fontes renováveis de energia e transporte público.
O que explica a imensa dificuldade de Obama em conseguir sinal verde do Congresso para sua política pró-clima? Sua intenção de colocar os EUA nos trilhos da economia de baixo carbono esbarra em um modelo econômico que se beneficiou da energia barata e da fabulosa oferta de alimentos – o país é o maior exportador de produtos agrícolas.
Não à toa os lobbies que mais combatem a lei de clima são os dos setores agrícola, do carvão e do petróleo. A fartura de carvão nos EUA é tanta que ele responde por pouco mais da metade da eletricidade lá gerada. Se a lei for aprovada, esse carvão não mais será tão barato, estimulando investimentos em energias renováveis, como a eólica, a biomassa e a solar, e em tecnologias para capturar CO2 emitido das termelétricas. Para atenuar a pressão contrária à lei na Câmara, os democratas fizeram várias concessões ao poderoso lobby agrícola, como a transferência da EPA para o Departamento de Agricultura (USDA) da incumbência pela definição das atividades que serão aceitas como offsets.
Parte do setor agrícola concorda em apoiar a lei no Senado, desde que mais concessões lhe sejam feitas, tais como a remoção do teto de 1 bilhão de toneladas de CO2 equivalente para os offsets domésticos.
Cansei de liderar
Enquanto Obama vive seu inferno astral no Congresso, onde também tenta aprovar a reforma da Saúde, a União Europeia não pretende prosseguir carregando sozinha o piano das metas do Anexo 1. A UE reitera que ampliaria de 20% a 30% sua proposta de meta de corte nas emissões na segunda etapa de Kyoto, mas somente se os outros países do Anexo 1 seguirem o mesmo caminho.
Uma saída seria aplicar um imposto de carbono sobre importações de países que não implementam cortes nas emissões. Funcionaria como uma maneira de a UE adotar meta mais arrojada e ao mesmo tempo proteger suas empresas de concorrentes livres de obrigações de cortar carbono. A ideia é rechaçada por Reino Unido e Alemanha, a qual a nominou como “ecoimperialismo”, em alusão às perdas que provocaria nas exportações dos países em desenvolvimento. A Europa também se dividiu quanto à partilha da fatura do financiamento aos países em desenvolvimento, visto que os nove países do Leste Europeu não aceitam ajudar emergentes como o Brasil e a China. O único consenso no quesito é a proposta de pacote financeiro global, que será apresentada em Copenhague, de 100 bilhões de euros ao ano, e dos quais a UE entraria com 2 bilhões a 15 bilhões de euros.
Também preocupa a UE a posição sinistra da Rússia, membro do G-20, do MEF e do Grupo Umbrella na Convenção do Clima, ao lado de EUA, Japão, Canadá e Austrália, mas com atuação muito particular no regime climático. O país tenta se recuperar da derrocada econômica pós-comunismo, aproveitando-se de suas gigantescas reservas de petróleo e gás, o que necessariamente promoverá aumento notável nas suas emissões. A dupla que governa a Rússia, o presidente Dmitri Medvedev e o primeiro-ministro Vladimir Putin, tem dito que o país não assinará um acordo climático que não contemple outros grandes emissores como EUA e China. Mas sua posição pode mudar se o acordo permitir a venda após 2012 dos bilhões de créditos de carbono acumulados com o declínio econômico dos países ex-comunistas na década de 1990.
No caso do Japão, outro integrante do Grupo Umbrella, do G-20 e do MEF, o dilemma é de natureza distinta da problemática russa. Logo após o resultado das últimas eleições, no final de agosto, o novo primeiro-ministro, Yukio Hatoyama, do Partido Democrático do Japão (PDJ), de centro-esquerda, anunciou meta mais ambiciosa de redução nas emissões, de 25% até 2020 na comparação com os níveis de 1990. Aparentemente, a mudança foi substancial, ante os 8% propostos pelo governo anterior.
Além dos sinais favoráveis ao acordo emitidos pelas novas administrações dos EUA e do Japão, a grande novidade do ano foi a concordância de países em desenvolvimento em desacelerar o crescimento das emissões de carbono, ideia lançada pela União Europeia na conferência do clima de Poznan, na Polônia, em dezembro de 2008.
A participação dos países em desenvolvimento no acordo climático já é vista como essencial para aumentar a chance de segurar o aumento na temperatura em não mais que 2 graus.
No rastro dos desenvolvidos
O aumento das emissões dos emergentes está associado a elevadas taxas de crescimento nos últimos dez anos, que explicam em parte o descolamento dessas economias dos piores impactos da crise financeira internacional eclodida em setembro de 2008.
Veja na galeria ao lado os maiores emissores e seus grupos.
Mas parte das emissões de carbono também se relaciona à produção de bens de consumo para as economias desenvolvidas, que têm transferido fatias significativas de sua produção a regiões onde os custos da terra e da mão de obra são mais baixos e a aplicação das leis ambientais e trabalhistas é mais frouxa. Já surgem estudos que estimam as emissões de carbono segundo a lógica do consumo, como o publicado em junho pelos pesquisadores Edgar Hertwich e Glen Peters na revista científica Environmental Science & Technology [acesse o artigo Carbon Footprint of nations: a global trade-linked analysis]. O estudo mostra, por exemplo, que as emissões chinesas são bem mais baixas quando descontadas as emissões geradas pela produção de artigos exportados aos EUA.
No grupo países em desenvolvimento, que abriga cerca de 80% da população mundial e a maior parte da biodiversidade do planeta, Brasil, China e Índia desempenham papel estratégico nas negociações do acordo climático pelo tamanho de seus territórios, economia e influência política em seus continentes e por suas diversas conexões com organizações multilaterais. Os três fazem parte do heterogêneo G-77, que inclui grupos como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a quem não interessa metas ambiciosas para o Anexo 1, uma vez que isso levaria à diminuição na demanda por petróleo.
Para o professor Eduardo Viola, do Instituto de Relações Internacionais (IRI), da Universidade de Brasília, não faz mais sentido países de renda média como Brasil e China integrarem o G-77. “O lugar ideal para Brasil e China na negociação climática é no MEF, ao lado da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, e não no G-77, que é presidido pelo ditador do Sudão.” Viola também é cético sobre o ritmo das negociações na ONU. “Quando há muitos atores, a tendência é que o ritmo seja muito lento e os avanços, muito pequenos. Um acordo climático com metas ambiciosas só será possível no âmbito do MEF, onde estão reunidos os países que respondem por 80% das emissões globais”, diz.
O Itamaraty tem outra leitura da questão. Antenado com diferentes negociações multilaterais e bilaterais na OMC e a política de aproximação do governo Lula com as economias emergentes e países pobres do Hemisfério Sul, a diplomacia brasileira ainda acha vantajoso permanecer no G-77. Sob o manto do grupo, o Brasil tenta contrapor-se à tentativa dos países ricos de lhe cobrar obrigações em mitigação dos gases-estufa e financiamento às ações dos países mais pobres. Para estes últimos – mais vulneráveis a efeitos como secas, inundações e tufões – a participação no G-77 de gigantes como Brasil, China, Índia e África do Sul é vista como garantia de que não serão esquecidos nas negociações sobre adaptação.
“O que os mais vulneráveis ganharam até o momento nas infindáveis rodadas de conversas na Convenção do Clima? Praticamente nada”, diz Viola. De fato, o Fundo de Adaptação do Protocolo de Kyoto arrecadará anualmente, na melhor das hipóteses, US$ 200 milhões, em média, de 2008 a 2012 da cobrança de 2% dos negócios com créditos de carbono do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). O valor anual desse fundo representará não mais que 0,2% do custo de até US$ 100 bilhões por ano estimado pelo estudo Economics of Adaptation to Climate Change, publicado em setembro pelo Banco Mundial. Haroldo Machado Filho, assessor especial de mudanças climáticas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), considera a estimativa conservadora, pois não agrega gastos com manutenção das medidas.
Outro tema que envolve diretamente os países em desenvolvimento, o mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd) também galgou o topo da agenda climática de 2009. Até mesmo o Brasil, cujo governo resistia a instrumentos de mercado no Redd, já se mostra aberto a uma fórmula que combine doações e créditos de carbono pelo desmatamento evitado. A posição brasileira envolverá limites para a quantidade de créditos a ser ofertada aos países do Anexo 1, de modo a não inundar o mercado derrubando os preços do CO2 e evitar que as nações desenvolvidas deixem de investir na conversão de sua matriz energética. De qualquer maneira, o Redd veio para ficar e faz brilhar os olhos dos negociadores de países do Anexo 1.
O projeto da lei de clima dos EUA, por exemplo, prevê a possibilidade de as empresas cumprirem parte de suas metas com 1 bilhão de toneladas de CO2 ao ano em créditos de offsets de projetos de Redd nos países em desenvolvimento. Europa e Japão também são potenciais candidatos a comprar créditos.
Mas, novamente, repete-se a perigosa combinação mais que sabida por ambientalistas, governos, empresas e cientistas. Enquanto cada país justifica com seus interesses domésticos a dificuldade de assinar um acordo ambicioso, o aquecimento acelera-se e diversos cenários preocupantes do relatório de 2007 do IPCC estão se tornando realidade antes do previsto. Para o bem da vida na Terra, não é hora de a política e a economia prestarem mais atenção aos alertas da ciência?