Entre as Várzeas do Rio Tietê, com uma história que remonta aos índios Guaianazes e à migração nordestina atraída pelos empregos da indústria química, São Miguel Paulista pulsa vibrante como um polo local de comércio e serviços no Extremo Leste de São Paulo. O distrito populoso, com 369 mil moradores, abriga o Jardim Lapenna, bairro localizado entre a linha do trem da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e um terreno público, parcialmente ocupado pela população ao longo das últimas três décadas. A região carrega o ônus comum às periferias das grandes metrópoles: baixo IDH em comparação à média paulistana; maior índice de desemprego, especialmente entre os jovens; falta de equipamentos de lazer; saneamento básico precário, com baixa cobertura da rede de esgotos e vulnerabilidade a enchentes.
É do Jardim Lapenna que deverá sair o primeiro Plano de Bairro da cidade de São Paulo depois da revisão do Plano Diretor Estratégico, aprovada em 2014. Desde o ano passado, diversos atores ligados ao bairro estão tomando parte nesse novo eixo de atuação no território. Especialistas em participação e planejamento urbano apontam o Plano de Bairro como o mais promissor mecanismo de participação popular nas metrópoles. Mas, afinal, o que é um plano de bairro?
Fundação Getulio Vargas (FGV), Fundação Tide Setubal, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), Parque Várzeas do Tietê, Secretaria Municipal de Habitação, Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e ONG Águas Claras
Considerado a primeira instância de participação da população no planejamento da cidade, o Plano de Bairro é um dos instrumentos trazidos pelo Plano Diretor do Município de São Paulo (artigos 43 e 44 da Lei nº 13.885/04), que prevê a divisão da cidade em bairros, o estímulo à participação das prefeituras regionais (antigas subprefeituras) e conselhos de representantes na elaboração de planos locais. Além disso, fornece diretrizes para a participação popular.
Para o cidadão, é a oportunidade de ter representatividade nas decisões que dizem respeito ao local onde vive e de canalizar diversas demandas para uma só direção. “O benefício mais óbvio do Plano de Bairro consiste no fato de que ele permite unir várias demandas em um só movimento participativo. Nas periferias as necessidades são muitas – é o problema da drenagem, do lixo, da escassez de serviços públicos”, afirma Ciro Biderman, coordenador do Centro de Política e Economia do Setor Público da FGV.
Segundo ele, os cidadãos brasileiros hoje dispõem de poucos instrumentos de mediação com o poder público. Nas grandes cidades, as prefeituras regionais ajudam a reduzir essa distância, mas, na prática, contam com pouco poder de decisão. Quando se trata dos moradores das periferias, o abismo é ainda maior – eles veem o Estado e os entes públicos como ineficazes e apenas interessados em arrecadar impostos sem dar uma contrapartida aos cidadãos, especialmente os que vivem longe dos bairros centrais e em condições mais precárias. Isso ficou evidente na recente pesquisa conduzida pela Fundação Perseu Abramo, Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo.
Para Biderman, é neste momento que o processo de construção de planos de bairro, como o que está sendo desenhado no Jardim Lapenna, torna-se significativo: permite unir a comunidade local, que já tem um histórico de participação e mobilização social, em torno de novas questões que afetam a vida dos moradores.
Nos últimos anos, o bairro recebeu um intenso fluxo de ocupação, o que contribuiu para que a população saltasse de cerca de 1.100 moradores em 2010 para os mais de 3 mil atuais. Com novas moradias erguidas em condições irregulares, praticamente dentro de um córrego afluente do Rio Tietê, essa fração do bairro, conhecida como “Baixo Lapenna”, está ainda mais vulnerável a enchentes, o que gera um quadro de tensão entre os antigos moradores e os recém-chegados.
Engajamento
O trabalho participativo do Plano de Bairro ainda está no início. Além das instituições convidadas, o desafio agora, segundo Biderman, é comunicar a população do Lapenna sobre as instâncias de participação e conseguir uma boa adesão para os fóruns e discussões. “Usaremos desde mídias sociais até aplicativos de celular que exijam baixa conectividade para garantir que as pessoas do bairro sejam informadas de todos os passos e participem do processo”, diz ele. A expectativa é de que a adesão dos moradores seja representativa, graças ao histórico de engajamento dos moradores do bairro na luta por melhorias para o território.
Há casos em que as instâncias de participação popular são canalizadas com a ajuda de uma organização, que cumpre o papel de direcionar a energia local para objetivos específicos. Atuante no Jardim Lapenna há mais de uma década, a Fundação Tide Setubal começou seu trabalho no bairro como agente tradicional do Terceiro Setor, buscando contribuir com escuta, criação de vínculos, presença e diálogo. Aproximou-se de lideranças locais, ajudou a estabelecer equipamentos públicos locais e realizou atividades culturais e esportivas. Depois, voltou-se para uma maior oferta de serviços à população, intervenções em escolas públicas e a construção do Galpão de Cultura e Cidadania, um marco para os moradores.
O passo seguinte foi expandir sua atuação nas escolas, com a formação de professores desenvolvida com metodologias próprias. A partir de 2011, a Fundação passou a atuar de forma mais intensa em articulação e na ampliação de parcerias com agentes locais, instituições privadas e o poder público. Assim, procurou fortalecer instâncias de participação social, como o Fórum de Moradores do Jardim Lapenna, e ajudou a intermediar a relação do bairro com atores externos ao território. Segundo José Luiz Adeve, coordenador de projeto da Fundação Tide Setubal, o primeiro momento de mobilização no Jardim Lapenna realizou-se pela educação e pela saúde, que foi bem-sucedido graças a uma grande vocação solidária no bairro.
“O Fórum de Moradores foi fundamental para que a população conquistasse equipamentos públicos importantes. Quanto mais qualificadas e conscientes de seus direitos as pessoas se tornam, mais ganhos são possíveis”, conta Adeve, mais conhecido na vizinhança como “Cometa”. A mobilização social, articulação e interlocução institucional ajudaram a trazer creches, a UBS e pontos de leitura para o bairro. Hoje a Fundação Tide Setubal também faz a gestão compartilhada com a comunidade de dois equipamentos sociais: o Galpão de Cultura e Cidadania e o CDC Tide Setubal, que está dando lugar à construção de um Centro de Educacional Unificado (CEU).
Agora, com a elaboração do Plano de Bairro, o desafio é encarar as demandas atuais, como a melhora dos indicadores de habitação e infraestrutura urbana, e desenvolver articulações para influenciar políticas públicas que assegurem um futuro sustentável. Além disso, o trabalho tem outro objetivo, que é construir uma metodologia para a montagem de um plano de bairro que possa ser replicada em outras periferias – nesse sentido, já há conversas em andamento com lideranças do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo.
Os meios de organização e participação popular diferem de acordo com características próprias de cada região, como perfil demográfico, histórico de mobilização social ou região geográfica. Mas há um ponto em comum que une as periferias ou mesmo regiões centrais socialmente desassistidas do Oiapoque ao Chuí: a necessidade de representatividade. “O processo participativo é algo ainda muito novo para o Brasil, são poucas décadas em que esses mecanismos estão se desenrolando e essas capacidades estão sendo construídas”, afirma Letícia Arthuzo, pesquisadora do programa de Desenvolvimento Local do GVces.
No âmbito do programa Cidades Sustentáveis – uma cooperação entre o GVces e o Instituto Arapyaú –, Arthuzo mapeou mais de 200 experiências de participação da sociedade civil, e esteve presente em iniciativas em regiões tão diferentes quanto Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul, e Sobral, no Ceará. Com experiência também em trabalhos de desenvolvimento local entre comunidades ribeirinhas na Amazônia, a pesquisadora afirma que a interferência de atores externos (como ONGs, academia ou agentes públicos) precisa ser cuidadosa, para que não agrida a dinâmica local.
Na prática, é preciso entender a região, a comunidade e como seus diferentes atores se comunicam, antes de qualquer intervenção – seja de caráter formativo, seja de agregação das pessoas. Um grupo de ribeirinhos da Amazônia terá um processo participativo muito diferente de um grupo de uma periferia da cidade grande, exemplifica. “O princípio básico de um processo participativo é construir algo com o grupo, e não para ele. Não pode ser top-down [de cima para baixo], é aí que muitas instituições erram em suas tentativas de organizar mecanismos participativos”, diz.
Fazer junto
Esse ponto de partida de construir uma história junto com e não para a comunidade está na atuação da Fa.Vela, de Belo Horizonte, ONG que tem como objetivo identificar e estimular o “empreendedorismo de base favelada” em três grandes comunidades da Região Metropolitana de BH e capacitar os moradores em gestão de negócios e na economia criativa e solidária. Ainda que os temas como participação social e política não fossem do escopo inicial do grupo, hoje eles perpassam os fóruns e workshops realizados pelo Fa.Vela. “A descrença na política tradicional e a vontade de fazer a diferença dentro da própria comunidade são elementos que a gente vê cada vez mais presente no discurso dos moradores”, diz o administrador de empresas João Souza, cofundador e presidente do Fa.Vela.
A ONG trabalha com quatro programas de aceleração de pequenos negócios. O primeiro envolve capacitação para microempresas tradicionais (das áreas de alimentação, construção civil, serviços de estética). O segundo, o Favela Resiliente, é voltado para o incentivo de negócios de impacto socioambiental, e já gerou novas empresas na área de reciclagem e serviços de lavagem de veículos sem uso de água.
Outro programa dedica-se aos “hackers da favela”, jovens com interesse e inclinação tecnológica, para que desenvolvam suas habilidades e potencial empreendedor nesse campo. Por fim, há também o Fala Fa.Vela, onde moradores de sucesso – os “heróis e heroínas da favela” – dão palestras que inspiram outras pessoas. Em dois anos de atividade, já foram realizadas ações de educação empreendedora com 60 pequenos negócios locais, e todos os treinamentos são realizados com recursos de financiamento coletivo e algum apoio de organismos internacionais, como o Consulado dos Estados Unidos.
O Fa.Vela surgiu como um coletivo de 12 amigos que tinham em comum o fato de serem egressos de áreas pobres de Belo Horizonte e terem tido acesso à educação universitária. A motivação inicial desses jovens foi usar seus conhecimentos para ajudar na transformação social das periferias, dando mais dinamismo à economia local. Mas a proximidade com o modo de vida das comunidades fez com que outras questões, além da econômica, viessem à tona.
Além de ensinar a gerir um negócio, os programas da ONG também discutem questões étnicas e de gênero, bem como a autoestima de quem vive em favelas e tem de lidar com o preconceito do restante da cidade. “Em um país com agudas desigualdades, é impossível falar em empreendedorismo sem lidar com as dificuldades que um jovem pobre e negro, ou uma mulher negra, encontra em sua trajetória. Aqui eles se sentem um pouco mais acolhidos”, diz Souza, ele mesmo morador do Morro do Papagaio, aglomerado de comunidades pobres que se tornou a maior favela de Belo Horizonte, na Zona Sul da cidade (leia mais sobre disparidades de gênero e etnia no quadro abaixo).
Mulheres e negros: recorte das desigualdades
Mesmo com a melhora dos indicadores sociais nos últimos anos, como a redução da pobreza e da miséria absoluta no Brasil, não houve expressiva redução das desigualdades sociais – em parte pelo fato de o tema ser complexo, pois compreende questões econômicas, sociais, políticas e educacionais. E, quando é feito o recorte de territórios, de etnia e gênero, essas desigualdades se tornam ainda mais contundentes. Habitantes das periferias enfrentam todos os dias uma cruzada para vencer dificuldades, que se acentuam mais quando é solicitado o CEP de sua residência.
As estatísticas recentes reforçam o quão desigual a sociedade brasileira ainda é – em termos sociais e também em relação às questões de gênero e etnia. Lançado em abril de 2017, o mais recente ranking do IDH da ONU analisa a desigualdade entre homens e mulheres nas nações, e estamos na 92ª posição entre 159 países analisados. No Brasil, a renda per capita das mulheres é 66,2% inferior à dos homens, mesmo elas tendo mais escolaridade e maior expectativa de vida do que os homens.
Na questão étnica, as ações afirmativas, tais como as cotas para afrodescendentes nas universidades, vêm trazendo avanços importantes, segundo dados do estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): entre 1995 e 2015, a população adulta negra com 12 anos ou mais de estudo passou de 3,3% para 12%. O salto foi grande no Ensino Superior: em 2000, havia apenas 6,3% de estudantes pretos entre 18 e 24 anos frequentando universidades; em 2010 o percentual saltou para 30,4% (pretos), embora os bancos das universidades ainda sejam ocupados por 60,7% de estudantes brancos. Segundo uma projeção do Ipea, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007, seria necessário manter o mesmo ritmo de queda durante pelo menos 40 anos para que se consolidasse uma sociedade mais igualitária do ponto de visto etnorracial.