Para as periferias urbanas do Brasil, a luta cotidiana não é apenas por mais espaço na agenda pública – e sim por mais oportunidades de crescer
“Não podemos romantizar a inventividade das periferias: ela é resultado histórico da falta de política pública. É incrível que a gente consiga se virar, mas seria melhor ainda se o Estado cumprisse com seus compromissos e obrigações”. As palavras do jornalista Tony Marlon, nascido e crescido no Campo Limpo, na Zona Sul da cidade de São Paulo, ilustram a principal carência das periferias das grandes cidades brasileiras: falta de oportunidade.
Os avanços das últimas décadas em matéria de política pública foram sensíveis nestes territórios, mas as melhorias não foram distribuídas de maneira a superar a situação de pobreza e abandono em algumas periferias brasileiras. Pior: com a crise econômica, o risco agora é perder os ganhos recentes e reforçar desigualdades sociais e econômicas que fragilizam as comunidades mais pobres, afastando ainda mais as oportunidades de desenvolvimento de seus moradores.
Na segunda passada (26/6), a Revista PÁGINA22 e a Fundação Tide Setubal promoveram um debate público sobre os desafios e possibilidades das periferias urbanas brasileiras em evento no Auditório Nove de Julho da FGV EAESP, em São Paulo, com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil. O evento também marcou o lançamento da edição 107 da P22, que explorou este tema.
O caminho para reduzir o risco de retrocesso dos ganhos recentes e de aumento das desigualdades está no aprofundamento da atuação do poder público nesses territórios. “As políticas públicas precisam estar voltadas e fundamentadas nas experiências, demandas e necessidades da comunidade local”, apontou a educadora Maria Alice Setubal, a Neca, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal. “O território sempre importa na hora de se definir uma política pública. Por isso, temos que considerar suas histórias, valores e visões, e vislumbrar seus problemas e potencialidades”.
A realidade local é algo essencial para aprofundar as políticas públicas voltadas para as periferias – afinal, não podemos falar de apenas uma periferia. “Nenhuma voz sozinha dá conta da complexidade das periferias. Elas são várias, diversas, convergentes e divergentes entre si em diferentes aspectos”, explicou Tony Marlon.
Geralmente, a formulação de políticas públicas para estes territórios acaba partindo de generalizações que, em última análise, criam e reforçam desigualdades nas camadas mais pobres da sociedade e dificultam um desenvolvimento pleno para as comunidades em questão.
Um exemplo de avanço desigual nas periferias nos últimos anos é a escolarização. Nos últimos anos, a educação vivenciou melhorias expressivas, principalmente no acesso e permanência no ensino básico e na expansão do ensino superior. Os indicadores de aprendizagem também registraram melhoras significativas no mesmo período. Entretanto, a distribuição das melhorias não foi igualitária.
“Apesar de termos conseguido ampliar o acesso à escola, as pesquisas mostram uma estagnação forte do desempenho dos grupos pior posicionados no sistema educacional brasileira”, assinalou Mauricio Érnica, professor de educação da Universidade Estadual de Campinas/SP (Unicamp).
Segundo Érnica, os grupos em situação mais delicada evoluíram pouco, enquanto os grupos mais privilegiados dentro do sistema público de ensino evoluíram significativamente, puxando os números gerais para cima. “Alunos com atributos sociais semelhantes têm desempenho diferente conforme a região em que estudam. Isto significa que temos um enorme potencial de ensino subaproveitado, pressionado pela escassez de oportunidades”.
Assim, para que as políticas públicas tenham efeito adequado sobre a realidade de uma dada comunidade, elas precisam dialogar diretamente com a realidade local. No entanto, de acordo com Neca Setubal, o poder público enfrenta três desafios práticos importantes que dificultam este diálogo e resultam nas generalizações. “Primeiro, apesar de termos uma gama relativa excessiva de indicadores e informações socioeconômicas sobre a periferia, temos pouca informação georreferenciada, que apontem as especificidades de cada território. Segundo, estas informações nem sempre são abertas para a população local. E, por fim, mesmo quando os cidadãos têm acesso aos dados, nem sempre eles estão traduzidos de maneira clara, que faça sentido para todos”.
Por isso, as organizações sociais acabam tendo um papel importante na articulação das políticas públicas com a realidade do território em que atuam. “Muitas vezes, o poder público não tem condições de chegar na ponta da questão, nas comunidades que são o alvo da política, ou não sabem como se comunicar com estes cidadãos. Assim, as organizações sociais acabam servindo como ‘ponte’ entre os formuladores de política pública e a comunidade na periferia”, explicou Setubal.
Para Marlon, a política pública precisa descer do pedestal e conversar diretamente com as comunidades. “O conhecimento técnico é importante, mas não podemos reduzir as pessoas a números. Precisamos nos desapaixonar pelos processos e começar a ver se eles fazem sentido para as pessoas que estão participando deles nas periferias”, argumenta.